Obituário de Daniel Bensaïd

Publicamos série de obituários pela ocasião do aniversário da morte do marxista.

Tariq Ali 21 jan 2019, 18:10

O filósofo francês Daniel Bensaïd, que morreu aos 63 anos de idade de câncer, foi um dos mais dotados intelectuais marxistas de sua geração. Em 1968, junto com Daniel Cohn-Bendit, ele ajudou a formar o Mouvement du 22 Mars (Movimento 22 de Março), a organização que ajudou a detonar o levante que abalou a França em maio e junho daquele ano. Bensaïd estava em seu auge explicando ideias para largas multidões de estudantes e trabalhadores. Ele podia segurar um público fascinado, como eu testemunhei em sua natal Toulouse em 1969, quando ele dividiu uma plataforma em uma manifestação de 10.000 pessoas para apoiar Alain Krivine, um dos líderes dos levantes, em sua campanha presidencial, em nome da Ligue Communiste Révolutionnaire [Liga Comunista Revolucionária] (LCR).

A análise penetrante de Bensaïd jamais foi apresentada de um modo paternalista, seja qual fosse a composição do público. Suas ideias derivavam do marxismo clássico – Marx, Lenin, Trótski, Rosa Luxemburgo, como era típico naqueles dias – mas seu modo de olhá-las e apresentá-las era próprio. Seus escritos filosóficos e políticos têm um toque lírico – em reuniões de comitê central particularmente entediantes, ele podia ser frequentemente visto imerso em Proust – e suportam fácil tradução para o inglês.

Como um líder da LCR e da Quarta Internacional, à qual ele foi filiado, Bensaïd viajou um tanto para a América do Sul, especialmente para o Brasil, e teve parte importante em ajudar a organizar o Partido dos Trabalhadores (PT), atualmente no poder sob a presidência do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Um imprudente encontro sexual encurtou a vida de Bensaïd. Ele contraiu AIDS e, nos últimos 16 anos, esteve dependente dos medicamentos que o permitiram ir seguindo, com efeitos colaterais fatais: um câncer que por fim o matou.

Fisicamente, ele se tornou uma sombra de seu antigo eu, mas o seu intelecto não foi afetado e ele produziu mais de uma dúzia de livros sobre política e filosofia. Ele escreveu sobre seu judaísmo e de vários de seus camaradas e como isso não havia nunca o levado, ou à maioria deles, a seguir o caminho de um cego e irrefletido sionismo. Ele desgostava das políticas identitárias e seus dois últimos livros – Fragments Mécréants (An Unbeliever’s Discourse, 2005) e Eloge de la Politique Profane (In Praise of Secular Politics, 2008) – explicaram como isso se tornou um substituto para um pensamento crítico sério.

Ele era o principal intelectual público marxista da França, muito procurado para conferências e ensaios e análises escritas no Le Monde e Libération. Em um tempo em que uma ampla seção da intelligentsia francesa havia mudado de lado e abraçado o neoliberalismo, Bensaïd permaneceu firme, mas sem um traço de dogma. Mesmo nos anos 1960 ele evitou clichês de esquerda e pensou criativamente, frequentemente questionando as verdades da extrema esquerda.

Ele estudou nas escolas Bellevue e Fermat em Toulouse, mas a influência formativa foi aquela de seus pais e de seu meio. Seu pai, Haim Bensaïd, foi um judeu sefardita de uma família pobre na Algéria e se mudou de Mascara para Oran, onde ele conseguiu um trabalho como garçom em um café, mas rapidamente descobriu sua real vocação. Ele treinou como um boxeador, tornando-se o campeão de peso médio do norte da África.

A mãe de Daniel, Marthe Starck, era uma forte e enérgica mulher francesa de uma família da classe trabalhadora em Blois, França central. Aos 18 anos se mudou para Oran. Conheceu o boxeador e se apaixonou. Os colonos franceses ficaram chocados e tentaram fortemente persuadi-la a não se casar com um judeu. Ela estava fadada a pegar IST e ter crianças anormais, eles disseram.

Com a França ocupada pelos alemães e a maioria das elites dos países no modo colaboracionista com sua capital em Vichy, a administração colonial francesa caiu na linha. Como um judeu, o pai de Daniel foi preso, mas ele conseguiu escapar do campo de prisioneiros de guerra, e apressadamente decidiu ir para Toulouse, onde Marthe o ajudou a obter falsos documentos. Armado com uma nova identidade, ele comprou um bistrô, Le Bar des Amis. Diferentemente de seus dois irmãos, que foram mortos durante a ocupação, ele sobreviveu, graças em grande medida à sua esposa, que tinha um certificado Vichy oficial atestando sua “não filiação à raça judaica”.

Em sua memória afetiva, Une Lente Impatience (2004), Daniel notou que estas barbaridades tinham tido lugar no solo francês somente algumas décadas antes de 1968. Le Bar des Amis, ele escreveu, era um lugar cosmopolita frequentado por refugiados espanhóis, italianos antifascistas, antigos lutadores da resistência e uma variedade de trabalhadores, com o núcleo local do partido comunista tendo suas reuniões lá também. Devido às visões fortemente republicanas e jacobinas de sua mãe (quando uma parente, depois de um programa de televisão francês sobre a monarquia britânica, expressou dúvidas com relação à guilhotinagem de Louis XVI e Maria Antonieta, Marthe não falou com ela durante 10 anos), teria sido estranho se o jovem Bensaïd tivesse se tornado um monarquista.

Indignado com o massacre dos argelinos no Metrô Charonne em 1961 (ordenado por Maurice Papon, chefe de polícia e antigo colaborador nazista), ele entrou na União dos Estudantes Comunistas, mas rapidamente se irritou com a ortodoxia partidária e se juntou a uma oposição de esquerda dentro da organização liderada por Henri Weber (atualmente um senador do partido socialista na câmara alta) e Alain Krivine. A revolução cubana e a odisseia de Che Guevara fizeram o resto. Os dissidentes foram expulsos do partido em 1966.

Naquele mesmo ano, Bensaïd foi aceito na Ecole Normale Supérieure em Saint-Cloud e se mudou para Paris. Ali ele ajudou a fundar a Juventude Comunista Revolucionária (JCR), jovens dissidentes inspirados por Guevara e Trótski, que depois se transformou na LCR.

A última vez em que eu o encontrei, alguns anos atrás, em seu café favorito na Quartier Latin de Paris, ele estava com fluxo total. A doença não havia minado sua vontade de viver ou de pensar. A política era sua força vital. Nós conversamos sobre agitações sociais na França e se elas seriam suficientes para trazer a tona mudanças importantes. Ele balançou seus ombros. “Talvez não em nosso tempo de vida, mas nós seguimos lutando. O que mais há para se fazer?”

– Daniel Bensaïd, filósofo, nascido em 25 de março de 1946; morreu em 12 de janeiro de 2010.

Artigo originalmente publicado no jornal inglês The Guardian na ocasião da morte de Daniel Bensaïd. Tradução de Pedro Barbosa, militante da Comuna (PSOL), a quem agradecemos a contribuição. 


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