A luta de classes pela seguridade social

O capital portador de juros transforma a aposentadoria de arrecadação solidária dos assalariados em ativo para “apostar” no mercado de ações.

Ricardo Souza 8 fev 2019, 16:09

Na  atual  crise estrutural  do Capital o  programa da burguesia rentista a nível  mundial  é claro: Desmontar  os regimes de previdência  pública e  transformar em  lucrativos  fundos de pensão. O Estado reafirma seu papel de “comitê gestor” de interesses burgueses, lançando mão do Fundo Público, para remunerar estes capitais através de títulos da dívida pública, como também flexibiliza direitos trabalhistas e previdenciários para reduzir o custo da produção, garantindo a reprodução ampliada e a superexploração dos trabalhos.  

O capital portador de juros transforma a aposentadoria de arrecadação solidária dos assalariados em ativo para “apostar” no mercado de ações. Tal  modalidade de fundo de pensão, devido ao risco das aplicações, levam a resultados desastrosos aos beneficiários como nos casos da Aeros, dos trabalhadores da Varig, e da Petros dos trabalhadores da Petrobras, que contribuíram  por anos sem o  retorno esperado.

Em 2019, a  prioridade do Governo Bolsonaro,com o Ministro Paulo Guedes,conhecido investidor de fundos de pensão, é destruir a Previdência Pública no Brasil, convertendo  gradualmente para o  sistema de capitalização similar  à tragédia social e que assistimos no Chile. Em plena ditadura foi imposto um  modelo de capitalização  ultraliberal, que tem levado  milhares de idosos ao  suicídio devido  a falta de condições de vida com as baixas aposentadorias. Cabe recapitular parte da história recente  da Previdência no Brasil, bem como a permanente pressão para entregar o  sistema aos fundos de pensão.

Os governantes e a grande mídia sustentam que o sistema previdenciário estaria “falido” e vem  passando por sucessivas contrarreformas, muitas delas favorecendo justamente com  o excedente acumulado entregue ´para tais fundos de pensão. Para desmentir estas narrativas é fundamentar recapitular a história recente da Previdência Social no Brasil, analisar a minuta de proposta do  novo  governo e pensar perspectivas para a luta e a resistência.
           
Previdência na Nova(velha) República: Breve Histórico
           

No Brasil viveu-se uma redemocratização limitada e tardia, que estabeleceu na Carta Magna de 1988,  uma série de conquistas sociais e democráticas, fruto do ascenso das mobilizações do período que levaram ao  fim da Ditadura Civil-Militar. Entre as principais conquistas foi a criação de um sistema de Seguridade Social que incorpora Saúde, Assistência Social e Previdência Social, com caráter público, universal, gratuito e solidário, com diversas fontes de financiamento. No entanto, este projeto foi inviabilizado por uma sucessão de contrarreformas neoliberais. Os vários governos até hoje sempre buscam artifícios para burlar a constituição no que tange à garantia dos serviços públicos, atendendo ao receituário neoliberal de desresponsabilização do Estado.

No âmbito da política de previdência se estabeleceu o princípio de repartição e solidariedade intergeracional, em que o conjunto das contribuições dos assalariado dos empregadores e do Estado garantiriam o pagamento dos benefícios dos segurados. Também  houve o  desmembramento  em dois regimes: O Regime Geral(RGPS), para os celetistas e o  Regime Próprio (RPPS), destinado  aos servidores públicos estatutários, com intuito de segmentar os trabalhadores e muitas vezes  utilizado pela propaganda oficial como  “espantalho” alegando que os estatutários tinham  muitos “privilégios” para  justificar ataques.

Nos governos Collor e Fernando Henrique Cardoso (FHC) se estabeleceu o Plano Real, com ele, o tripé macroeconômico sob a égide de redução máxima das despesas (sociais) do Estado, priorizando poupar recursos para o pagamento do serviço financeiros da dívida pública. Este período foi de intensa privatização de setores estratégicos, terceirização e desmonte de vários órgãos públicos. Cabe destacar no que tange à Previdência Social duas medidas: A Desvinculação da Receita da União (DRU),a Emenda Constitucional (EC) nº 20.

A DRU foi criada em 1994 que  desloca 20% da verba destinada ao Orçamento da Seguridade Social (OSS) para compor o Superávit Primário mantida até hoje e reajusta  em 2017 para 30%. A Emenda nº 20,de 1998. foi a primeira medida a impor restrições à aposentadoria por tempo de contribuições e coloca a idade mínima, bem como inclui no texto constitucional “Regime de Previdência Complementar Privado” como o terceiro pilar do Sistema Previdenciário, abrindo uma importante brecha para a atuação dos fundos de pensão, que já operavam na legalidade desde 1977.

O Compromisso social-liberal com o capital fictício e a atuação dos fundos de pensão também se manifestou ao longo dos governos petistas Lula e Dilma manteve-se os fundamentos macroeconômicos e fiscais acompanhado de políticas de transferência de renda, havendo uma nova série de ataques à Previdência. Tal  medida  foi  um importante divisor na  história da esquerda brasileira: uma primeira experiência de governo de um partido  de origem operário que inicia atacando os trabalhadores. Parte da bancada foi expulsa do partido por não apoiar tais medidas, os  chamados radical( entre estes Luciana Genro, Babá, Heloísa Helena) e  a fundação do PSOL na perspectiva de construir uma esquerda que não  traia a classe trabalhadora.

No governo Lula  os  ataques foram  principalmente endereçados aos servidores públicos, conforme a EC nº 41,  de 2003, e, a EC nº 47, de 200,  colocando  o fim da integralidade e a paridade nas  aposentadorias e  estabelecendo o  “teto” de benefícios, além do  aumento de idade mínima para  novos servidores, e a aposentadoria integral foi substituída pela opção de associar-se a um fundo de previdência complementar.

 Ao final de 2014, o Governo Dilma edita as Medidas Provisórias (MP) nº 664 e 665, que foram apreciadas pelo Congresso Nacional e regulamentadas por meio das leis: Lei Ordinária nº 13.135 e nº 13.134, respectivamente que impõe novas alterações no seguro-desemprego e nas pensões, além de revogar o “fator previdenciário” substituindo-o pela “fórmula 85/95” cujos somatórios de idade e tempo, de contribuição,conforme o gênero do segurado, teriam que ser completados para fazer jus à aposentadoria.

Em 2016, com o aprofundamento da crise econômica global, o governo de Michel Temer, fruto de um golpe parlamentar que destitui a presidenta,impõe retrocessos em históricos direitos trabalhistas, sociais e previdenciários e retoma a ortodoxia neoliberal. Em 2016 é aprovada a EC 95, que institui o “Novo Regime Fiscal” (NRF), que proíbe qualquer reajuste real às despesas não-financeiras nos próximos vinte anos, inviabilizando a vinculação constitucional dos recursos para as políticas sociais. Em 2017, a DRU foi prorrogada até 2023 e aumentada a alíquota para 30%. Além da tentativa de aprovação de nova Reforma da Previdência, ainda mais restritiva, com imposição de idade mínima de 65 anos e 49 anos de contribuição, que foi motivo de ampla rejeição e resistência da população, não  sendo  votada no legislativo.

Ao longo de toda a Nova República, todos os governantes e a mídia corporativa buscaram convencer que haveria um “rombo” na Previdência Social e que novas contrarreformas deveriam ser realizadas. Os dados são apresentados de forma incompleta, pois é apenas considerado as contribuições previdenciárias sobre “folha de pagamento” referente ao trabalhador e ao empregador,e não são consideradas as múltiplos tributos e contribuições sociais como Cofins e a CSLL como fontes de financiamento,muitas vezes renunciadas, desoneradas ou simplesmente sonegadas, além dos efeitos da DRU, como  aponta a CPI da previdência,que estima mais de 400  bilhões em dívidas de empresas.

Segundo  estudo Associação Nacional do Auditores Fiscais (ANFIP, 2016) apresenta o impacto  da DRU e as renúncias tributárias, como apontam os dados, totalizaram a perda para a Seguridade Social de um montante de R$ 269,50 bilhões em 2016, em favor do capital financeiro.

Logo é uma falácia que a Previdência estaria “falida”, uma vez que caso a Constituição fosse cumprida integralmente e não houvesse esses desvios de recursos via DRU a mais de vinte anos, nem as renúncias fiscais, o Orçamento da Seguridade Social seria superavitário, podendo inclusive ampliar a cobertura de serviços,não apenas no âmbito previdenciário, como para o conjunto das políticas de Seguridade Social. Ficando assim evidente que se trata de uma opção de política de desmontar os direitos sociais conquistados para favorecer o grande capital.

Primeiras impressões das Medidas do novo  governo

Em 2018 em uma conjuntura ainda mais conturbada e polarizada elege-se presidente Jair Bolsonaro, com fortes vieses autoritários e neoliberais. Sua equipe econômica,chefiada por Paulo Guedes, indica a reformar a Previdência como pauta prioritária, aprofundando  a  proposta de Temer e  seguindo a cruzada dos fundos de pensão  contra a previdência pública.O recente texto  vazado á  imprensa  aponta  uma série de ataques, que   mesmo que ocorra  mudanças no  projeto é possível  apontar algumas tendências que devemos nos apropriar para organizar a resistência:

a) Tempo de Contribuição

Elevação  de tempo mínimo de contribuição  para 20  anos(25 para servidores) com direito a 60% do benefício subindo em 2% a  cada ano  chegando a 100%(limitado ao  teto do INSS) após 40 anos de contribuição.

b)Idade

Progressiva transição (idade+ tempo de contribuição) até  atingir  idade mínima  única de 65 anos tanto  para homens quanto mulheres. Outra mudança  proposta é o  reajuste periódico da idade mínima conforme aumenta a expectativa de sobrevida média da população.

Professores e Trabalhadores Rurais: idade mínima de 60 anos

Policiais: 55 anos

c)Benefícios Assistenciais
Desvinculação  do  BPC ao  salário mínimo  com valores fixos(sem garantia de reajuste)

Pessoa com deficiência: 1000 reais

Idoso: a partir de 55 anos 500 reais

 A partir de 65: 750 reais
 Limite  no  acúmulo pensão e aposentadoria com desconto progressivo.

-Pensão por morte prevê cota familiar de 50% mais 10% por dependente.


d)Capitalizaçã
>O  projeto  deixa em  aberto   para ser  regulamentado em Lei complementar(assim como  outras medidas) sem a necessidade de quorum qualificado(308  votos).
“ Podendo definir que o regime de previdência social seja organizado com base em sistema de capitalização, de caráter obrigatório, com a previsão de conta vinculada para cada trabalhador e constituição de reserva individual para o pagamento do benefício”
Abre margem para:
->contribuição definida mas  sem a garantia do benefício
->Diferentes modalidades taxas e  riscos
 ->Admite-se o Uso doFGTS
 ->Com  Possibilidade de gestão  por bancos e fundos  públicos e privados(a escolha do  trabalhador)

De  modo  geral,sob a  falsa narrativa de combate a  “privilégios” e correção de deficit  são  inúmeras os retrocessos contra camadas vulneráveis da população caso  tal pacote vigore.

Assim como  outras reformas, busca-se  protelar o  tempo de aposentadoria,tanto em idade quanto  tempo de contribuição, e acompanhada de medidas como a reforma trabalhista e a terceirização irrestrita  o próprio governo incentiva a informalidade, reduzindo o  montante de contribuições e dificultando  o  cumprimento do  requisito de tempo, principalmente para o  trabalhadores informais e mais precarizados.

A média etária também  é desigual  social e regionalmente, em que muitos trabalhadores em  condições insalubres sequer atingiriam a idade mínima. No  caso  das mulheres o retrocesso é mais gritante, que não é  considerado  o desgaste desigual da dupla ou tripla  jornada vividas pelas  trabalhadoras. Trabalhadores rurais, professores, policiais e servidores   públicos são  categorias com tradição  de  luta  e  serão  diretamente  atingidos e vão  reagir com força. Atividades insalubres(mineração, radiologia etc..) terão regra diferenciada de tempo de serviço mas idade mínima de 60 anos.

A Reforma também ataca os benefício sócio-assistenciais para pessoas em condição de miserabilidade, desvinculando BPC do salário mínimo(retoma proposta original de Temer) oferecendo valores nominais a idosos e pessoas com deficiência sem garantia de reajuste.

A Capitalização talvez sirva de “cortina de fumaça”  mas é o  elemento mais temerário do  projeto.Primeiro  porque a PEC não  detalha, mas prevê  regulamentação  em lei  complementar de mais fácil aprovação em Plenário. A  proposta tornaria o  regime individual  compulsório em que o  trabalhador seria “livre” para escolher o  banco(público ou privado) e bem a rentabilidade(e o risco) ao  aplicar seu dinheiro. A  posição de “investidor” é a arapuca perfeita, ideológica e fetichista para que os verdadeiros operador do Capital  lucrem com estas transações sem garantia de uma aposentadoria digna, pois a contribuição é prefixada, mas o benefício não.


Luta e Resistência

O  governo e o  capital  financeiro se valem de mecanismos cada vez mais sofisticados para sanar sua demanda de lucro,transformando um direito social em um produto bancário,cujo valor está sujeito às flutuações do mercado. Todos os governos  da Nova República atacaram a Seguridade Social e entregaram parte do seus recursos para os rentistas,a Bolsonaro e Paulo Guedes  foi  confiada a tarefa do ajuste fiscal que Dilma e Temer não  conseguiram  concluir.

Apesar da burguesia estar  unificada nesta agenda o custo  político é  alto, o  governo já tem como  aliados os presidentes das duas casas legislativas e busca apoio em um congresso  corrupto e conservador.Por isso é um desserviço como  oposição o   papel que  Ciro e seu assessor econômico ,Mauro Benevides, cumprem ao  reunirem com  Guedes e servirem de “fiadores” do  desgaste político de uma contrarreforma na Previdência. Com  certeza seu eleitorado  progressivo não apoiaria tais medidas.

Apesar do  resultado eleitoral as pesquisas apontam que a maioria da população não  apoia a agenda econômica ultraliberal, majoritariamente contrária às privatizações  e já se mostrou contrária à tentativa de Temer,governo  mais impopular da história, de atacar a Previdência. Em 2017  houve um ascenso de lutas importante, um grande 8 de março,uma grande greve geral  e marchas à Brasília, não  fosse a traição de grandes centrais burocráticas que recuaram em dois chamados de Greve Geral, talvez não  estaria aprovada a reforma trabalhista e a previdenciária estaria mais longe no  horizonte.

Para além da negação da  reforma também cabe à esquerda socialista o papel pedagógico de propor alternativas ao projeto liberal com medidas anticapitalistas para a crise que passam pela revogação da Dru e da Pec do Teto que drenam orçamento, reforma tributária progressiva com taxação de dividendos e grandes fortunas bem como o  fim das isenções e a cobrança das empresas com dívidas previdenciárias.

Parte da  neste momento luta é reoxigenar  este descontentamento. Do  ponto de vista político talvez o  ponto mais frágil da reforma é justamente o  fato,mesmo que de forma de desigual, de atingir a todos: servidores públicos de todas as esferas,celetistas,autônomos, urbanos, rurais etc.permitindo  uma rejeição e uma resistência unitária.Também de forma desigual são atingidas as mulheres, que se mostraram linha de frente, ainda no  primeiro  turno com mobilizações multitudinárias  em todo o país no  movimento #Elenão.

É imperativo a construção da  unidade das  centrais sindicais, movimentos sociais ,partidos de esquerda, , em torno  da  luta contra o ajuste, que já vem se desenhando com a plenária do Fórum Nacional dos Servidores Federais e a Plenária das Centrais sindicais.Grande também o  desafio de dialogar com massas de trabalhadores autônomos, muitos que já mostraram capacidade de mobilização  como  os caminhoneiros motoristas de aplicativos etc. além do povo em geral que não se vêem representada nos partidos e nas centrais sindicais, ou até iludidos com o  discurso anticorrupção ou antiviolência, votaram no atual governo e ao longo do processo  façam a experiência. A  agitação para a massa  precisa desmentir as narrativas,provando que não  há rombo na Previdência, que a Reforma não  ataca privilégios, mas os direitos , principalmente dos mais pobres.


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Pedro Micussi