Fracasso escolar é culpa do aluno? Uma reflexão do liberalismo ao marxismo

O Brasil foi o que mostrou maior índice de alunos tidos como problemas por seus professores.

Introdução

Pergunte a qualquer professor e possivelmente ele poderá listar os estudantes que considerou difíceis, talvez até se lembre deles como “alunos-problema”. Ao sair da graduação e assumir sua própria turma é comum que um educador faça a constatação: uma classe formada por alunos “perfeitos” é uma ilusão. A sala de aula do imaginário ideal, onde todos ficam quietos na carteira durante a aula expositiva, conversam apenas nos momentos de intervalo ou do trabalho em grupo, acatam as ordens e entregam todas as tarefas bem-feitas, rapidamente desaparece no ar já nos primeiros dias de aula.

A quantidade de alunos-problema passa de 10% nas salas de aula, de acordo com 60% dos professores ouvidos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O dado é da Pesquisa Internacional sobre Ensino e Aprendizagem, que ouviu mais de 15 mil professores e diretores de 33 países. O Brasil foi o que mostrou maior índice de alunos tidos como problemas por seus professores. Tais problemas podem ser evidenciados por

altos índices de repetência e evasão, baixo rendimento. De acordo com algumas teorias estabelecidas, a culpa pelo fracasso escolar é do aluno e suas condições físicas, cognitivas, sociais e psicológicas. Para a especialista em Psicologia do Ensino e da Aprendizagem Maria Helena Souza Patto, do Instituto de Psicologia (IP) da USP, o problema reside na “complexidade das concepções baseadas em preconceitos e práticas cotidianas da instituição escolar no processo de escolarização dos alunos” (PARRINI, 2007, s/p).

Mas, esse imaginário ideal de alunos “perfeitos” não pode estar atrelado ao um modelo social e histórico? É o estudante a causa principal das dificuldades de comportamento e aprendizagem? Preconceitos históricos no que diz respeito ao fracasso escolar nos permeiam ainda hoje?

Um pouco da história do fracasso escolar

Mesmo em uma síntese da história do fracasso escolar aqui, perceberemos que estamos nos debruçando em uma questão: no século XIX, a crença de que a divisão social em classes superiores e inferiores teriam como critério o talento individual – mais adiante isso toma bases científicas, como a psicologia, testes psicológicos e teses, já que era uma época envolta pelo iluminismo, adesão ao anticlericalismo e ao cientificismo –, desvela uma característica presente no liberalismo, que ganhou força desde a Revolução Francesa.

Dentro desse espírito iluminista e liberal, a psicologia, ainda na Europa, junto à Sir Francis Galton (1822-1911), contribui com seus testes psicológicos, “criando vários testes e medidas de processos sensoriais, precursores dos testes de inteligência. No entanto, seu objetivo principal era medir a capacidade intelectual e comprovar a sua determinação hereditária” (PATTO, 1999, p. 60), e isso, como veremos, vai refletir na instituição escolar no Brasil.

Cabe salientar que essa

preocupação com as diferenças individuais e seus determinantes, com a detecção científica dos normais e anormais, dos aptos e inaptos, só poderia ocorrer no âmbito da ideologia de igualdade de oportunidades como característica distintiva das sociedades de classes (PATTO, 1999, p. 61).

Ou seja, uma das crenças fundamentais no século XIX era a de que o mundo da classe média estava aberto para todos. Dessa forma, os que não conseguissem alcançá-la demonstrava uma falta de inteligência pessoal, até de força moral. E, dentre esses supostos inaptos, estavam os trabalhadores pobres das cidades industriais (PATTO, 1999).

É entorno dessa ideologia ou espírito da época que se congregaram “psicólogos e pedagogos que, na virada do século, sonharam com uma psicometria e uma pedagogia a serviço de uma sociedade (de classes) igualitária” (PATTO, 1999, p. 63). Nesse contexto, surge uma raiz psicopedagógica, plantadas em laboratórios de psicologia muitas vezes anexos a estabelecimentos de ensino, portanto, as explicações do rendimento escolar desigual receberam como principal contribuição os instrumentos de avaliações das aptidões (PATTO, 1999). Entendemos que essas aptidões eram testadas no sujeito em si, isolado do seu contexto histórico e social, ou seja, nem as instituições escolares, nem os professores assumiriam uma responsabilidade, já que a ciência da época, e ingênua por sinal, com seus testes, mostrava que poderia testar de fato a inteligência humana. Portanto, “medir as aptidões naturais tornara-se o grande desafio que os psicólogos se colocavam na virada do século” (PATTO, 1999, p. 65).

Para termos uma ideia de como essa ideologia teve uma ressonância na nossa história, vejamos que um dos grandes nomes estudados na educação até hoje é o Piaget, o qual, este, fundou o Instituto J.J. Rousseau, tendo como seu contemporâneo o professor Edouard Claparède, tornando-se, “um autor obrigatório entre as obras de referência de psicólogos e pedagogos voltados para o estudo e a mensuração das diferenças individuais de rendimento escolar em todo o mundo” (PATTO, 1999, p. 65).

Ou seja, muitos foram os que dedicaram com afinco as tentativas de medir, com objetividade e precisão, as verdadeiras aptidões das pessoas, independentemente das influências ambientais, entre elas as de natureza socioeconômica (PATTO, 1999).

É sabido ainda que no decorrer da história, esses testes psicológicos contribuíram não só pela culpabilização do aluno, como para o fortalecimento do racismo também no Brasil, no que se refere ao fracasso escolar, e isso está presente até nos tempos de hoje.

A especialista em Psicologia Escolar Maria Helena de Sousa Patto (1999), ao escrever o livro “A produção do fracasso escolar – histórias de submissão e rebeldia”, revelou a falta de assentimento com o processo de exclusão (evasão e repetência) nas escolas brasileiras. As relações interpessoais entre alunos e professores são muito difíceis e, principalmente por isso, os alunos se desinteressam pela escola e o discurso melancólico toma conta dos professores, discurso este contaminado pelo preconceito histórico que tecemos há pouco: “que o aluno não quer nada”, “é desinteressado” etc., acarretando ainda mais a exclusão das crianças e jovens das camadas mais desprotegidas da sociedade.

A autora [Maria Helena de Sousa Patto] lamenta o fracasso escolar, não só pelas reprovações, mas pela barbárie como esse fracasso acontece, ela afirma que os alunos são discriminados, tratados com grosseria pelos professores, a avaliação é feita sem os professores conhecerem a subjetividade dos alunos, os pais desprotegidos de capital cultural não entendem porque a reprovação acontece (AGUIAR, 2014, p. 205)

Diante disso, constatamos que o passado continua presente. Ou seja, as ideias liberais já transitavam nos meios políticos e intelectuais brasileiros desde o Império, só que a “sua presença mais articulada na vida do país ocorre com o advento do Brasil republicano, período da história brasileira que tem início em 1889 e nasce sob o patrocínio intelectual do liberalismo” (PATTO, 1999, p. 79). Dentro dessa visão liberalista, se encontra também as raízes nacionais da maneira dominante de explicar as diferenças entre as “raças” e grupos e, por extensão, as diferenças de rendimento escolar: devido à crença do negro “livre” da escravidão e a invenção de um trabalhador livre no seio do capitalismo, dá-se condições para que a ascensão social de indivíduos seja pautada apenas por suas aptidões naturais, como já podemos perceber desde o início deste texto, mas considerando, agora, o Brasil, e não somente a Europa (PATTO, 1999).

No Brasil, como na Europa, havia uma necessidade de explicar o fracasso escolar, já que havia uma ideologia predominante de que todos tinham aptidões para sua ascensão ou “sucesso” escolar. Dentre outros, nos trinta primeiros anos do século XX predominou, nos textos especializados de intelectuais brasileiros, o primeiro tipo de complementaridade entre a psicologia e a pedagogia, com intuito de explicar tal fenômeno escolar. Um adendo: só que antes de prosseguirmos com isso, cabe salientar que a pedagogia e a psicologia científica nasceram imbuídas do espírito liberal e propuseram-se a identificar os mais capazes, como ligeiramente já comentamos aqui (PATTO, 1999).

Portanto, na década de 1920 – por o liberalismo brasileiro ter como princípio a igualdade de oportunidades e a afirmação de que “o único critério válido de divisão social eram as diferenças individuais de aptidão” (PATTO, 1999, p. 91) –, podemos inferir, como veremos mais a frente, que o fracasso escolar não está na instituição escolar, mas na aptidão de cada aluno, ou seja, o “aluno-problema” é culpa do aluno e não da instituição.

Temos, então, teses de intelectuais brasileiros que sofrem reflexos da ideologia colonialista européia para descrever a cultura da pobreza até a década de 1950 (década esta bastante recente, por sinal). Com efeito, no decorrer da história, não é por acaso que na Bahia o intelectual Nina Rodrigues dedicou-se à demonstração da tese da inferioridade racial do negro e do mestiço. “Leitor aplicado da obra de Spencer, abraçou as teses do darwinismo social e acreditou com elas provar que ao negro e seus descendentes não cabia outro destino que não o que sempre tivera” (PATTO, 1999, p. 95). Havia, para essa ideologia, um povo que não tinha aptidão para o sucesso escolar, ou seja, o fracasso escolar ao invés de vir da instituição e da sociedade com falhas, viria do próprio indivíduo.

Dessa forma encontramos o seguinte quadro: como os brancos ou os burgueses tinham no seio familiar e em outros ambientes elitizados um vasto contato com os estudos, com a literatura, estes eram estudantes que obtinham sucesso escolar; já os negros, advindos de uma recente escravidão e privação de um mundo intelectual advindo dos brancos, obtinham o fracasso escolar. Porém, o problema, ainda, não era uma questão social, mas uma questão de raça, de aptidão etc. Assim, através de teses de intelectuais da época, a culpa recai, obviamente, no aluno “fracassado”. O que fica evidente é que o racismo, o preconceito de uma forma geral e, quem sabe, uma “fuga” das responsabilidades que poderia pesar nos ombros dos mais abastados, “contaminavam” tais estudos de tais especialistas da época que buscavam explicar o fracasso escolar, já que, no liberalismo, há uma ideologia de que todos poderiam conquistar seu espaço social ou “sucesso” sócio-econômico-educacional com seus próprios esforços.

Daí, poderemos, mesmo que breve, nos situar no contexto atual, no qual ainda se culpa o aluno pelo seu fracasso, e exime a instituição de sua responsabilidade. Os discursos que podemos presenciar ainda hoje por professores ou pela sociedade em geral, na sua maioria, é a de que o aluno não estuda porque “não quer nada”. Mas até onde se pode dizer isso? Até que ponto esse discurso não está impregnado de um modelo social, histórico que discorremos até aqui? Acreditamos que mesmo que velado, tal discurso carrega em si um aparato histórico preconceituoso que é reproduzido até hoje.

Para entendermos isso, buscaremos uma crônica que tem como base a experiência real de nosso estágio em Psicologia da Educação na Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS, em um colégio público de Feira de Santana-BA.

Um caso de experiência em um estágio escolar a respeito de fracasso escolar

Aqui teceremos uma crônica com o título “Professora, senti seu grito”, que reflete a preocupação de um formando em psicologia em seu estágio sobre sua função e papel dentro da instituição escolar, que vê a angústia de uma professora que procura sair da concepção demonstrada anteriormente aqui, sobre a ideologia do “fracasso escolar” que culpa o estudante e que está presente até hoje. Essa crônica é fundamentada em fatos reais no nosso estágio em Psicologia da Educação na UEFS, em um colégio público de Feira de Santana:

Professora, senti seu grito

Diante de tantas percepções, de tantas sensações, exponho aqui uma delas:

Pisei naquele solo de concreto, mas me vi sem chão e sem teto. Pensei: “Qual é o meu exercício neste lugar”?, “Qual é a minha tarefa”?

Antes daquele momento, tive outros a refletir: “como ajudaria alguém que se dispõe a mudar e transformar a sala de aula num ambiente que seus alunos precisam, num ambiente que atrairia os olhares, não somente para o quadro, mas para o aprender, e o enchessem de entusiasmo e gozo”?

Senti seu grito de socorro.

O abandono que todos dão, ela disse “Não”!

“Não serei mais uma nesta multidão

Multidão de professores que desistirão

Ouçam meu grito, então”!

            A crônica acima se volta a uma experiência em estágio em Educação. Observe que o estagiário refere-se à professora como “alguém que se dispõe a mudar e transformar a sala de aula num ambiente que seus alunos precisam, num ambiente que atrairia os olhares, não somente para o quadro, mas para o aprender, e o enchessem de entusiasmo e gozo”, demonstrando que a responsabilidade do bom rendimento escolar não está somente no estudante, mas há uma transferência de responsabilidade, na qual ela busca se envolver para melhorar o ambiente da sala de aula, a forma como ensinar, o relacionamento com seus alunos, se diferenciando daquela ideologia histórica a qual já tecemos aqui. Contudo, o grito de socorro da professora, escutado pelo estagiário que também está buscando uma maneira de ajudá-la, do mesmo modo reflete o quanto a história está presente e nos dificulta a agir, nos aliena, porque, de antemão, não sabemos como agir diferente do que já foi dado historicamente.

Explicitamente ou implicitamente estamos tão contaminados por essa ideologia histórica, demonstrada aqui via Maria Helena de Sousa Patto (1999), que não conseguimos, pelo menos não facilmente, criar algo para que possa transgredir essa ideologia. O que não é impossível, mas a mudança requer um esforço enorme e paulatino.

            A professora da crônica também disse, ou melhor, gritou “não” ao sistema dominante, a essa ideologia. A professora ao gritar “não” revela sua consciência de que o modelo escolar vigente e dominante não é mais válido, de que a responsabilidade não é resumida ao aluno que “fracassou”, mas que todos, como professores, instituições escolares e sociedade em geral, são responsáveis. Diante disso, ela diz “não”, um não que demonstra uma consciência a respeito do fracasso escolar que marginaliza o aluno, porém que, ao mesmo tempo, não sabe como agir diferente disso.

            Também o pedido de ajuda para tentar mudar essa ideologia sobre o fracasso escolar que sacrifica somente o estudante, demonstra que a consciência humana não é abstrata, que está “contaminada” pela história, pela matéria e, por isso, há uma dificuldade de agir e, portanto, o tal grito de socorro da professora se fez presente. Karl Marx afirmou a respeito dessa consciência: “mas esta também não é, desde o início, consciência ‘pura’. O ‘espírito’ sofre, desde o início, a maldição de estar ‘contaminado’ pela matéria” (MARX; ENGELS, 2007, p. 34). Isto é, não há separação nítida entre a consciência e a matéria. O sujeito e o mundo estão “intricados” ou correlacionados. O sujeito é o sujeito concreto, e não o do idealismo; a consciência é aquela “contaminada” pela matéria, e não aquela abstrata.

            Se o “espírito” ou a consciência sofre a maldição de estar “contaminada” pela matéria (MARX; ENGELS, 2007), então, a ideologia histórica, apontada por Maria Helena de Sousa Patto (1999), de que a ascensão social de indivíduos seja pautada apenas por suas aptidões, a priori nos contamina de tal forma que mesmo nos questionando a respeito do modelo de educação, ao mesmo tempo não conseguimos fazer algo que contraria o status quo. Portanto, o grito da professora ao proferir “não” e o questionamento do estagiário “Qual é o meu exercício neste lugar”? demonstram que mesmo que tenhamos boa vontade para mudar a educação, nos sentimos em uma espécie de camisa-de-força-social e não sabemos o que fazer, já que estamos “engessados”. Contudo, Marx também afirma que “cada geração recebe condições de vida e as transmite a gerações futuras, sempre modificadas – para pior ou para melhor” (MARX; ENGELS, 2007, p. 14). As condições são sempre modificadas, devido ao fato de que o sujeito ao ser afetado por tais condições já dadas historicamente por outros, ele as transcende, as modifica. Logo, percebemos que as inquietações presentes nessa crônica já é um grande salto para uma mudança social e educacional. Pelo menos aquela escola, aquela sala de aula ou aquele estudante ali presente poderá ter uma nova condição.

            Considerando a Patto, que denuncia uma ideologia histórica de fracasso escolar que culpabiliza somente o aluno, e Marx, que nos mostra que somos um sujeito também histórico, permitem que entendamos que o empecilho mais próximo que dificulta uma mudança na educação é a própria instituição de ensino na qual estamos inseridos como estagiário(a) ou como professor(a). A instituição de ensino, como “braço do Estado”, está contaminada também pela matéria, pela história e é ela que engessa nossas ações naquele ambiente, se caso busquemos transformar os padrões já estabelecidos.

            Mas, como visto, se para Marx é verdade que o ser humano está na história, como também é verdade que é ele que faz a história (senão não poderíamos tecer sobre mudanças, resistências, lutas ou até revoluções sociais), são ainda nas “pequenas” ações, como a indignação presente na crônica deste texto, que algo começará a se modificar na sala de aula, por exemplo.

Referências

AGUIAR, M, M, M. A gestão da escola e o processo ensino-aprendizagem. Revista
CAMINE: Caminhos da Educação, Franca, v. 6, n. 1, 2014.
MARX, K; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
PARRINI, L. Culpa do fracasso escolar gera discursos conflitantes. Agência USP de
Notícias. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017. Disponível em:
<http://www.usp.br/agen/?p=5934>. Acesso em: 14/11/17.
PATTO, M, E, S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia.
São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.

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