O desmonte da rede de atenção à Saúde Mental na era Temer-Bolsonaro

As principais conquistas da Reforma Psiquiátrica podem estar ruindo diante dos nossos olhos

Essa semana a Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, ligada ao Ministério da Saúde, tornou pública a nota técnica n°11/2019 em que reuniu uma série de alterações implementadas nos últimos dois anos na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas.  

Antes de mais nada é necessário explicar que, Nota Técnica, trata-se de um documento de análise sobre uma política pública ou programa de governo, que tem como intuito avaliar o seu funcionamento e propor alternativas para superação de possíveis dificuldades.  

A Nota Técnica, assinada por Quirino Cordeiro Junior, Coordenador-Geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, atesta o perigoso caminho que o Cuidado em Saúde Mental já vinha trilhando desde o ano passado, quando as Comunidades Terapêuticas foram reinseridas na RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) e passaram a receber financiamento federal. Vale lembrar que Cordeiro Junior foi nomeado, pelo governo Bolsonaro, Secretário Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas da Secretaria Especial de Desenvolvimento Social, e que durante sua atuação, desde o governo Temer, sempre se baseou na perspectiva de aumentar as internações.  

Agora, as principais conquistas da Reforma Psiquiátrica podem estar ruindo diante dos nossos olhos, em um contexto nacional de extrema disputa ideológica, com os setores mais reacionários da sociedade dando as cartas da política nacional e as diretrizes dos serviços públicos. 

A volta dos Hospitais Psiquiátricos e Diretrizes Manicomiais

Infelizmente, a Nota Técnica recoloca o Hospital Psiquiátrico como um serviço da Rede a ser fortalecido. Agora, é preciso explicar o porquê dessa diretriz ser um problema. Em 1987, trabalhadores da Saúde Mental formulam e assinam um manifesto que foi o marco do início da luta antimanicomial no país. Basicamente, o que a luta antimanicomial defendia e, ainda nos dias de hoje defende, é o combate à estigmatização do louco e da loucura, a garantia dos direitos e cidadania dessas pessoas e o acesso a um cuidado humanizado, que não exclua ou enclausure, o que, na época, se desdobrou concretamente na luta pelo fechamento dos manicômios. 

A instalação da RAPS e seus serviços (a chamada rede substitutiva) foram pensados como mecanismos alternativos ao tratamento nos Hospitais Psiquiátricos, e aponta para um cuidado que não exile a pessoa portadora de qualquer transtorno mental, com o objetivo de garantir os direitos desses indivíduos, suas vivências com familiares e em seus territórios de moradia, dando a condição para que essas pessoas convivam em sociedade, à sua maneira, mas fazendo laços com o mundo real. Infelizmente, ao dizer que o Hospital Psiquiátrico voltará a fazer parte da rede de atenção, destinando verbas ao mesmo, o Ministério da Saúde não deixa dúvidas de que as diretrizes da Reforma Psiquiátrica estão sendo destruídas.  

Se utilizando da justificativa de apresentar “serviços diversificados”, o Ministério da Saúde acaba com a própria ideia de rede substitutiva, e  coloca na roda a volta dos Manicômios, isso é um problema relacionado a experiência concreta e, infelizmente, ainda é, dos Hospitais Psiquiátricos. Violações gravíssimas de Direitos Humanos, milhares de mortes por negligência e um cenário de extermínio. Além disso, diversas internações sem qualquer critério ou mesmo indicação para tal, as pessoas que fugiam do padrão normativo eram mandadas para os Manicômios. Inclusive, durante a história muitas mulheres foram trancadas em Manicômios por questionarem a autoridade de seus “maridos” ou mesmo por se levantarem contra o modo de organização tradicional da sociedade.   

Há um número alarmante de pessoas que passaram vidas inteiras em Manicômios, privadas de qualquer contato com o restante da sociedade, isoladas e exiladas, escondidas e marginalizadas. Tortura, sedação excessiva por uso de psicotrópicos e trabalho escravo eram a realidade dos manicômios. Quem teve a oportunidade de acessar o trabalho de Daniela Arbex, autora do livro “O Holocausto Brasileiro”, sabe da magnitude dessa realidade cruel. 

É importante colocar o que o manicômio significou e ainda significa  historicamente na sociedade brasileira. O lugar do “louco” não está descolado das nossa estrutura desigual, patriarcal e racista. Cumprindo um papel de certa forma semelhante ao papel cumprido hoje pelos presídios, os manicômios eram depósitos de indesejáveis de toda sorte: mulheres que se rebelavam, ou que eram consideradas estorvos pelos familiares,  trabalhadores que se levantavam contra explorações, pessoas em sofrimento psíquico e/ou usuários de álcool que se tornavam “inaptos” para uma rotina fixa de trabalho, crianças de rua, negros e negras considerados “problemáticos”. Essas instituições, além de isolar, frequentemente também se aproveitavam da força de trabalho gratuita dessas pessoas. 

Inspeções realizadas a partir de iniciativa conjunta do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), expôs o que já era um temor previsto, as violações aos direitos humanos ainda hoje são graves e a implementação da Reforma Psiquiátrica ainda não se concretizou por completo, com importantes medidas ainda a serem realizadas. 

Não é comprovado, muito pelo contrário, que o tratamento em exílio seja benéfico para os usuários desses serviços. O exílio e a exclusão só servem a propósitos higienistas, daqueles que não suportam cruzar com um louco no meio da rua. A Nota Técnica demonstra de forma categórica seu caráter retrógrado e violento quando impõe, por exemplo, que os trabalhadores em Saúde Mental voltem a usar a eletroconvulsoterapia como forma de tratamento. Alegadamente benéfica aos pacientes que não respondem mais a medicamentos psicotrópicos, é uma alternativa que vai exatamente na contramão da ideia de um cuidado em saúde mental libertador, não excludente e não violento, que promova emancipação, cidadania e fortalecimento das capacidades de auto-cuidado. 

O Retrocesso no Cuidado a Usuários de Substâncias Psicoativas

Não bastasse que recentemente as Comunidades Terapêuticas tenham voltado à RAPS, (entende-se Comunidades Terapêuticas como instituições não governamentais que funcionam como espaços de internação temporária), recebendo financiamento federal, a nova diretriz apresentada pela Nota Técnica e aprovada pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas – CONAD, aponta que a base do cuidado a usuários de substâncias psicoativas deve ser a diretriz da busca pela abstinência, em detrimento da diretriz de redução de danos, que imperava até então.

 Os argumentos apresentados para sustentar tal decisão não tem amparo clínico, pelo contrário. A estratégia de redução de danos, ou seja, implementação de políticas que visam diminuir o risco e danos associados ao uso de drogas mesmo que os usuários não pretendam ou não possam interromper imediatamente o consumo, é parte de um movimento internacional pautado em evidências científicas que demonstram que é possível assumir medidas não proibicionistas ou não repressivas para se enfrentar o fenômeno do consumo drogas. 

Infelizmente, a manutenção das Comunidades Terapêuticas é uma medida que responde somente aos anseios mais moralistas, daqueles que consideram a questão das drogas como um problema moral e não um problema de saúde pública. 

É a partir dessa justificativa, inclusive, que é possível compreender o porquê de as Comunidades Terapêuticas terem sido inseridas na RAPS. A ampla maioria dessas instituições orienta o cuidado e tratamento baseado na abstinência a partir de fundamentos religiosos, majoritariamente cristãos. Isso significa que os internados não tem um cuidado baseado em qualquer critério clínico, senão de espiritualidade religiosa. Assim temos instituições religiosas privadas recebendo verbas e doações públicas para exercerem cuidados religiosos, o que é inconstitucional e incompreensível do ponto de vista clínico e científico, e fere frontalmente a laicidade do Estado.

A diretriz abstinente imposta aos CAPS AD, responsáveis pelos cuidados de usuários de substâncias psicoativas, impõe um retrocesso no que é a função de um serviço de saúde, que deve oferecer um cuidado e direito de escolha aos usuários e não uma imposição sem critério clínico. 

Inclusive, é preciso compreender que a diretriz de redução de danos não significa, necessariamente, que a abstinência não seja um objetivo, senão que não é o primeiro passo nem a condição para um cuidado. A redução de danos considera o uso de substâncias dentro de um contexto social, familiar, individual e psicológico, dando ao usuário o direito de escolha do melhor tipo de cuidado a ser realizado, com um propósito e projeto clínico e terapêutico.

A combinação da diretriz abstinente e o fortalecimento das Comunidades Terapêuticas nos coloca em um cenário preocupante, o mesmo vivenciado quando foi imposta a internação compulsória aos moradores das Cracolândias. A diretriz abstinente e o enclausuramento desses usuários em Comunidades Terapêuticas, muitas delas também com graves denúncias de violação de Direitos Humanos, não responde às necessidades dos usuários, mas a uma lógica que visa marginalizar ainda mais os dependentes químicos, colocando essas pessoas longe do alcance dos olhos dos grandes centros urbanos. Não é uma resolução do problema, mas um profundo processo de higienização numa tentativa de exilar e esconder essa parcela da população, que precisa de cuidado e não de mais exclusão.

Defender as Diretrizes da Reforma Psiquiátrica

É preciso dizer que a partir da Reforma Psiquiátrica o cuidado em Saúde Mental avançou e permitiu uma nova perspectiva de cuidado, porém permanecem ainda muitos desafios pela frente. A questão é que, infelizmente, a Nota Técnica publicada pelo Ministério da Saúde, aponta caminhos absolutamente equivocados para avançar na resolução destes problemas. Muito pelo contrário, a perspectiva é que os problemas se agudizem a partir das novas resoluções.

E não é somente nas resoluções que a Nota Técnica se equivoca, mas também ao identificar erroneamente quais os problemas atuais do Cuidado em Saúde Mental. Não foi o fechamento de Hospitais Psiquiátricos, nem as diretrizes da antiga Política Nacional em Saúde Mental, que resultaram nos problemas que enfrentamos atualmente, como colocado. Aliás, é preciso reafirmar que o fechamento dos Manicômios foi a mais importante resolução da Reforma, ao lado das diretrizes de cuidado humanizado com garantia de direitos e cidadania, tirando o louco do lugar marginalizado que ocupava.

A Reforma Psiquiátrica permitiu que se instalasse uma diretriz de Reabilitação Psicossocial, possibilitando que centenas de pacientes pudessem retornar às suas casas e ao convívio em sociedade. A lógica da reclusão foi substituída pela lógica da inclusão, garantindo um viés humanizado, que não demonizasse os transtornos mentais e garantisse o direito à cidadania a essas pessoas. 

O Cuidado em Saúde Mental, que é parte do SUS, padece do mesmo mal que o sistema de saúde como um todo sofre: a falta de investimentos, fator talvez decorrente da ideia de que a saúde não é um direito, mas uma mercadoria altamente lucrativa. Não à toa o novo Ministro da Saúde é Luiz Henrique Mandetta, um político de carreira, que já foi financiado por duas grandes redes da saúde privada, a Amil e a Unimed. Sua escolha não é obra do acaso, sequer atestado de competência, mas sim uma evidência de qual é o objetivo do Governo nos próximos quatro anos: sucatear a Saúde Pública para, posteriormente, avançar na privatização. 

Também é importante colocar que o fortalecimento das Comunidades Terapêuticas é mais um movimento importante do governo Bolsonaro no sentido da consolidação do poder político e social de grandes igrejas neopentecostais. Essas Comunidades são, em grande parte, pertencentes a líderes religiosos, que as utilizam não apenas como fonte de captação de recursos públicos da área da saúde, como também meios importantes de captação de novos fiéis e manutenção do poder sobre famílias vulneráveis, que procuram esses locais quando se encontram com um familiar em uso abusivo de drogas e sem acesso à rede pública de saúde mental, cronicamente insuficiente e subfinanciada. 


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Pedro Micussi