O sofrimento ético-político no contexto universitário: uma inclusão que exclui o outro
A anulação do outro no âmbito universitário é um fenômeno recorrente.
Ao analisarmos o sofrimento psíquico social no contexto educacional, que não é totalmente diferente de outros contextos, devemos levar em conta as relações humanas ou as intersubjetividades que, no caso, se referem aos estudantes e professores (sejam relações professores com professores, professores com estudantes e estudantes com estudantes) que muitas vezes passam por despercebidas entre os membros do mundo acadêmico ou são colocadas em segundo plano. Nesse quesito, as relações humanas levam em considerações a afetividade que pode gerar sentimento de exclusão ou anulação do outro enquanto ser humano, enquanto sujeito dotado de direitos, de cidadanias, que é tudo aquilo que está presente na constituição.
Mas não se trata somente de direitos ou constituições, como também de empatia, respeito, ética, ou melhor: de consciência social, a qual envolve tudo aquilo que não exclua o outro simbolicamente ou fisicamente no âmbito universitário, pois toda ação humana é carregada de afetividade de forma que, “ao falar de exclusão, fala-se de desejo, temporalidade e de afetividade, ao mesmo tempo que de poder, de economia e de direitos sociais” (SAWAIA, 2001, p. 98).
Dessa forma, mostra-se o poder que a afetividade ocupa na existência humana como um lugar privilegiado. A afetividade nas relações humanas é considerada um fenômeno ético-político também, por ser sempre significada e ressignificada, dando um sentido que conduzirá o fazer humano nas suas ações para com o outro. Isso porque os afetos são constantemente construídos nas relações com o outro, mediados no modo como o sujeito afeta e é afetado pelo outro, já que tais sujeitos são ainda sentimentos, emoções, desejos e paixões que lhes situam existencialmente.
Mas a anulação do outro no âmbito universitário é muito presente, apesar de ser velada pelo discurso de empatia e respeito ou por atitudes “altruístas” que criam engodos, fechando os olhos para a exclusão do outro, aliás, ao se fechar e ao se blindar em certos discursos ditos de empatias ou até de direitos humanos, que não correspondem com as ações, já é um processo de pseudo-inclusão que se revela como exclusão de fato, mesmo que se fale em inclusão, respeito ou humanização. Esse fato social de exclusão velada, por estar em um ambiente acadêmico que prega um discurso de empatia e justiça, provoca, de qualquer forma, o sofrimento psíquico que é originado da situação social em questão, como ser tratado como “inferior”, subalterno ou a falta de respeito às diferenças, sejam elas por orientação sexual, gênero ou formas diversas de pensar e agir. Há uma relação de poder que evoca sofrimento psíquico nos membros acadêmicos. Isso tudo é um sofrimento ético-político, já que é constituído nas relações sociais e de poder.
Por ser uma construção social ou por ser uma significação mutável socialmente, é pelo sujeito
que se objetivam as várias formas de exclusão, a qual é vivida como motivação, carência, emoção e necessidade do eu. Mas, ele não é um mônada responsável por sua situação social e capaz de, por si mesmo, superá-la. É o indivíduo que sofre, porém, esse sofrimento não tem a gênese nele, e sim em intersubjetividades delineadas socialmente
(SAWAIA, 2001, pp. 98-99).
O mundo acadêmico delineia intersubjetividades de forma social que geram sofrimentos que não são somente ignorados muitas vezes pela comunidade acadêmica, como também pela sociedade em geral. Parece que onde se pretende desconstruir o sofrimento ético-político, é onde ainda o produz bastante.
Como exemplos de fatos a respeito do que discorremos até agora, podemos iniciar com as situações dos professores na academia. Em suma, consideramos uma pesquisa de Claudiane Zandoná, Fernanda Beheregray Cabral e Cintia Cristina Sulzbach para analisar o bem-estar dos professores brasileiros. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, de natureza qualitativa. Os dados foram coletados mediante consulta na Biblioteca Virtual de Saúde – BVS/ Bireme, nas bases de dados da Literatura Latino-Americana e do Caribe, em Ciências da Saúde (LILACS), Medline, Periódicos Eletrônicos de Psicologia (PEPsic) e na biblioteca eletrônica Scientific Eletronic Library Online (SCIELO). O estudo mostrou que umas das principais causas de sofrimento estão relacionadas à Síndrome de Burnout (distúrbio psíquico de caráter depressivo, precedido de esgotamento físico e mental intenso) e o Assédio Moral (ZANDONÁ; CABRAL; SULZBACH, 2014). Percebeu-se, então, que os resultados dessa pesquisa
demonstraram que o sofrimento dos docentes estava relacionado com a sobrecarga de trabalho, ritmo de trabalho, disputas profissionais, a pressão por prazos, pela cobrança por produtividade, pela falta de integração e reconhecimento profissional. Observou-se que estes fatores estavam impactando de forma negativa a vida e a saúde dos professores, favorecendo o adoecimento, seja na forma de ausência de controle emocional, falta de concentração mental, irritabilidade ou cansaço
(ZANDONÁ; CABRAL; SULZBACH, 2014, p. 127).
Nessa amostra já se percebe a falta de afetividade bastante evidente nas relações humanas na academia como uma forma de exclusão ou anulação do outro, a saber: as disputas profissionais, a falta de integração e a ausência de reconhecimento. Por isso, então, essa “opção do presente texto em refletir a exclusão a partir da afetividade, de qualificá-la de ético-política” (SAWAIA, 2001, p. 99), em um ambiente onde se discute ética e política, no caso, o ambiente universitário.
Outro exemplo a respeito do sofrimento ético-político pode ser constatado com os estudantes da Universidade. Uma pesquisa intitulada “Subjetividade e Sofrimento Psíquico na Formação do Sujeito na Universidade”, desenvolvida por meio de estudo de caso a partir de relato oral de um aluno de graduação junto ao Núcleo de Atendimento e Práticas Psicológicas (NAPP) da Universidade Estadual do Ceará, nos apresenta um dado importante a respeito da exclusão simbólica geradora de sofrimento psíquico. O caso é o seguinte: Pedro (nome fictício) tem 23 anos, mora com a mãe, uma tia e um primo que usa drogas, com o qual relata alguns atritos. Seu pai saiu de casa quando ele era criança. Pedro é adepto do esoterismo, fala que demora muito a confiar nas pessoas (XAVIER, NUNES, SANTOS, 2008). Essa é a vida pessoal dele, que de certa forma é também social. Dentre outros, Pedro é mais um estudante que resolveu procurar ajuda,
porque não consegue amar, está sofrendo por não conseguir manter nenhum relacionamento duradouro. Precisa também encontrar um professor orientador de monografia que se disponha a “suportá-lo”, pois entra em profunda angústia quando precisa produzir a monografia de conclusão de curso. Tenciona escrever sobre um elemento representativo da identidade brasileira na literatura e orixás. Nesta tentativa, busca, por meio do conhecimento e da produção de monografia, conseguir organizar um saber de si, uma identidade sensível a partir da construção teórica.
A dificuldade de encontrar um orientador lança-o em uma situação de desamparo, pois, para se formar, ser autorizado, é necessária a presença de alguém que o oriente, que o assuma, que legitime o seu conhecimento, que dê o seu nome para a co-responsabilidade de maternagem da monografia. Ser aceito como orientando envolve as mesmas vicissitudes da aprovação por parte das figuras de amor idealizadas e temidas
(XAVIER, NUNES, SANTOS, 2008, p. 438).
Nesse caso da pesquisa, mais uma vez no âmbito acadêmico, encontra-se a questão da afetividade, pois a dificuldade de encontrar um orientador, lança Pedro em uma situação de desamparo, e o orientador, no caso, é o outro na relação humana perante o mundo universitário. Assim, é necessária a presença de alguém que o oriente, que o assuma, que o legitime, mas que Pedro não encontra. Aqui fica evidente um exemplo de relação humana e como os sujeitos afetam e são afetados: ser aceito como orientando envolve as mesmas vicissitudes da aprovação por parte das figuras de amor idealizadas e temidas por Pedro. Ser aceito inverte a lógica da exclusão, que, na verdade, é o que Pedro vive, já que ele é excluído. Em resumo,
Pedro é um sujeito em situação de vulnerabilidade psíquica e social. Concludente na Universidade, desloca para a monografia de final do curso muitos dos seus desejos, angústias e o próprio mal-estar ante a sua situação de miséria econômica, de falta de perspectivas, de exclusão social e acadêmica
(XAVIER, NUNES, SANTOS, 2008, p. 440).
Assim, o que parece rotineiro ou banal nas Universidades – que é um estudante como Pedro em busca de um orientador –, esconde um sofrimento ético-político. Ninguém o enxergou até que a tal pesquisa foi realizada e o relato de Pedro foi considerado. Ele busca, na posse de um diploma de graduação e na tentativa de ser respeitado no espaço universitário, uma identidade distinta daquela que lhe causa sofrimento acadêmico (XAVIER, NUNES, SANTOS, 440).
Obtemos aqui alguns casos, tanto por parte de professores quanto de alunos, para percebermos como o sofrimento ético-político vem ocorrendo em nossas universidades que, contraditoriamente, pregam exatamente o discurso contra o sofrimento ético-político. Ás vezes nos falta prática ou práxis. Também encontramos, diversas vezes, os casos de suicídios nas universidades, os quais tornam notícias, mas que, de forma geral, logo são esquecidos pela comunidade acadêmica. A respeito disso há o caso de um estudante que cometeu suicídio na residência universitária da UEFS:
o estudante de Geografia Rogério Aires de Lima Souza, 23 anos, cometeu suicídio no banheiro da residência universitária, da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), na madrugada de hoje (15), por volta das 2h40
(ACORDA CIDADE, 2010).
Esses casos, até aqui demonstrados, afirmam que o corpo “é matéria biológica, emocional e social, tanto que sua morte não é só biológica, falências dos órgãos, mas social e ética. Morre-se de vergonha, o que significa morrer por decreto da comunidade” (SAWAIA, 2001, p. 101). Ou seja, a morte não é só biológica, como no caso do estudante Rogério; como também é social e ética, como no caso do estudante Pedro e dos professores aqui comentados.
Seguindo, então, o pensamento de Sawaia, o sofrimento ético-político abrange as múltiplas afecções do corpo e da subjetividade que mutilam a vida de diferentes formas, e, que muita vezes, paradoxalmente, está no cerne de um ambiente social que discute sobre o a prevenção do sofrimento ético-político, a saber: o contexto educacional, que, em tese, deveria ser o ambiente mais acolhedor, gerando bem-estar para todos.
Enfim, é possível dizer que o sofrimento psíquico manifesto por esses sujeitos, nas pesquisas e notícia citadas aqui, não pode ser compreendido sem que se considere a organização das universidades a que estão submetidos. Se, por acaso, tais sofrimentos forem apresentados como natural por alguns membros acadêmicos, isso revela, de antemão, a desconsideração da organização desse ambiente educacional (as intersubjetividades, as afetividades, as exclusões, as inclusões etc.) como fator relevante no processo de formação, em relação aos estudantes, ou de reconhecimento e pertencimento ao ambiente de trabalho, em relação aos professores, por exemplo. Além disso, ignora-se o conceito de sofrimento ético-político discutido aqui, pelo viés de Sawaia, que também ultrapassa os muros das universidades, sem deixarmos de considerar que o contexto destas é também, obviamente, de relações humanas / sociais / éticas / políticas.
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Referências
ACORDA CIDADE. (2010). Estudante comete suicídio em residência universitária. 15/09/2010. Disponível em: < http://www.acordacidade.com.br/noticias/66703/estudante-comete-suicidio-em-residencia-universitaria.html>. Acesso em: 17 agosto de 2016.
SAWAIA, B, B. O Sofrimento Ético-Político como categoria de análise da Dialética Exclusão/Inclusão. In_ As Artimanhas da exclusão: Análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Editora Vozes, 2001.
XAVIER, A; NUNES, L, B, I, A; SANTOS, S, M. Subjetividade e sofrimento psíquico na formação do Sujeito na Universidade. Revista Mal-estar e Subjetividade – Fortaleza – Vol. VIII – Nº 2 – p. 427-451 – jun/2008.
ZANDONA, C; CABRAL, B, F; SULZBACH, C, C. Produtivismo acadêmico, prazer e sofrimento: um estudo bibliográfico. PERSPECTIVA, Erechim. v. 38, n.144, p. 121-130, dezembro/2014.