O feminismo nas ruas e nos palácios do poder

Parlamentares do PSOL tratam da ascensão de governos de extrema-direita no mundo e da força da luta das mulheres.

O levante feminista, que tem se desenvolvido nesta década ao redor do mundo, teve no Brasil sua principal expressão de luta em 29 de setembro de 2018 com as multitudinárias marchas do Ele Não, nas quais milhões de mulheres se colocaram nas ruas contra as saídas autoritárias e reacionárias representadas nas eleições por Jair Bolsonaro. Ele se tornou presidente, mas o avanço de consciência conquistado pelas mulheres não retrocederá facilmente. Prova disso são as conquistas de diversas cadeiras nos parlamentos brasileiros por mulheres de esquerda e feministas. Comprovando a tendência que já apontavam as eleições de 2016, o PSOL cresceu sua bancada e elegeu expressões legítimas da latente luta feminista brasileira. Nesta entrevista conversamos com quatro dessas mulheres que iniciaram em 2019 seus mandatos como trincheiras das lutas das mulheres e dos trabalhadores. As parlamentares falaram sobre a ascensão de governos de extrema-direita em diversos países, a força do feminismo, os exemplos internacionais, as principais pautas das mulheres trabalhadoras, a luta por Justiça para Marielle e a necessidade de conectar as feministas internacionalmente. Sâmia Bomfim, Fernanda Melchionna, Luciana Genro e Mônica Seixas são a expressão mais genuína de que o feminismo é mais do que a defesa dos direitos das mulheres. É uma nova maneira radicalmente democrática e transformadora de fazer política.

Nos últimos anos vemos ao redor do mundo diversos governos de extrema-direita com características autoritárias subindo ao poder. Trump nos Estados Unidos, Órban na Hungria, Duterte nas Filipinas e Bolsonaro no Brasil são alguns destes exemplos. No entanto, a ascensão de governos reacionários se dá no mesmo momento em que as feministas ganham força nas ruas e nos parlamentos. No Brasil a eleição de feministas para assembleias estaduais e Congresso Nacional se soma a anos de crescimento da luta feminista. Nos EUA, depois de marchas multitudinárias das mulheres, vemos exemplos de mulheres de esquerda ocupando o parlamento de um país que é centro do capitalismo. Como você explicaria este fenômeno?

Luciana Genro: Eu acho que esse reacionarismo emergente que se expressou na eleição do Bolsonaro é também uma reação à explosão do feminismo, ao crescimento da consciência feminista, assim como da consciência LGBT (pois os LGBTs saíram do armário e se recusam a voltar) e da luta anti-racista (pois a negritude se recusa a voltar para a senzala). No que diz respeito às mulheres, há um fenômeno que é mundial que se expressou no movimento Me Too, que teve muita repercussão em todo o mundo, assim como também teve aqui na América Latina, a exemplo das universidades chilenas, que foram ocupadas contra o assédio sexual, e na Argentina com o Ni una a menos, que foi também a luta contra o feminicídio e pelo direito ao aborto legal. Esses movimentos acabaram demonstrando a existência de uma efervescência feminista que atingiu as mulheres, principalmente as mais jovens, e que aqui no Brasil se expressou na campanha eleitoral no movimento Ele Não. Mas, antes disso, já havia também o desenvolvimento dessa consciência feminista. Eu senti isso, por exemplo, na campanha de 2014, quando botei o dedo na cara do Aécio dizendo que ele não podia botar o dedo na minha cara. Eu recebi ali uma onda de manifestações de mulheres que se sentiram identificadas com essa necessidade de não deixar os homens colocarem o dedo na nossa cara. Então, na eleição do Bolsonaro o Ele Não acabou concentrando esse sentimento feminista. O próprio grupo das mulheres unidas contra Bolsonaro tinha 4 milhões de mulheres. Mas é evidente que essa consciência feminista provoca uma reação dos setores mais conservadores e reacionários. Porque enquanto as mulheres estavam apanhando caladas, as LGBTs estavam no escuro do armário e a negritude seguia silenciada pelo racismo, estava tudo bem para eles. No momento em que a gente começa a erguer nossa voz e a exigir visibilidade e direitos, eles se sentem na obrigação de reagir e de tentar impedir a nossa ascensão enquanto agentes políticos desse momento. Então, há um confronto de ideologias, mas também um confronto de visões de mundo. Uma visão de mundo atrasada e reacionária contra uma visão de mundo que exige direitos iguais, condições dignas de vida para todas e todos. E as mulheres são protagonistas fundamentais nesse processo.

Nesse contexto, a eleição das parlamentares feministas foi resultado dessa emergência do movimento feminista, da luta feminista, da consciência maior de uma nova geração de mulheres, que tem um elemento de idade (já que as meninas mais jovens já estão se formando enquanto feministas desde cedo), mas também as mulheres de mais idade, que estão se sentindo mais fortes para reivindicar seus direitos e para se identificar enquanto feministas. Então, se a gente foi derrotada, em certo sentido, com a eleição do Bolsonaro, nós também somos vitoriosas, no sentido que também estamos mais fortes, mais conscientes e mais dispostas a lutar pelos nossos direitos.

Diante do fortalecimento das alternativas conservadoras e reacionárias nas instituições, quais principais tarefas você apontaria para as feministas neste cenário político internacional?

Luciana Genro: A primeira questão é a necessidade de nós estreitarmos os laços internacionais entre as mulheres e o movimento feminista. Eu chamo atenção para um fenômeno muito expressivo que é o da Alexandra Ocasio-Cortez nos EUA, que é uma mulher latina, do Bronx e que expressa uma luta muito concreta das mulheres, com um discurso que dialoga com os problemas da classe trabalhadora, do emprego da segurança da saúde, ao mesmo tempo em que ela fala das dificuldades da vida cotidiana – ou seja, ela toca em temas que são básicos da luta das mulheres. Essa pauta é fundamental para que a gente possa unificar o movimento de mulheres a nível internacional. Além disso, devemos buscar com intelectuais que são ativistas, como a própria Angela Davis, essa unidade sem esquecer que o movimento feminista precisa ser também um movimento antirracista. Aqui no Rio Grande do Sul, nós tivemos a experiência da Emancipa Mulher, que é uma escola de formação feminista e antirracista e o feedback que nós temos recebido é muito positivo, porque sempre houve um certo distanciamento do movimento feminista com o movimento de mulheres negras. Nós precisamos amalgamar esses dois movimentos, porque não há feminismo consistente se ele não for também antirracista. Alexandra Ocasio-Cortez é uma expressão disso, porque ela define bem essa luta como uma luta antirracista e anti-xenofóbica. Essa unidade internacional que nós precisamos construir deve partir, portanto, da constatação de que o que nos une é a luta feminista, a partir das reivindicações concretas das mulheres trabalhadoras, das mulheres que enfrentam o sistema patriarcal e o sistema capitalista de forma muito intensa a partir de unidades que serão fundamentais numa construção coletiva que precisa ser internacional.

Temos visto no Brasil o esforço dos setores conservadores de avançar sobre os direitos das mulheres. Vimos isso em 2015, quando Eduardo Cunha tentou dificultar a distribuição das pílulas contraceptivas e, mais recentemente, há a tentativa de eliminar o debate sobre gênero nas escolas com o projeto Escola Sem Partido. Agora, o governo Bolsonaro colocou nas mãos da fundamentalista Damares Alves o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Na sua opinião, por que os governos conservadores priorizam os ataques aos direitos das mulheres? Para você, como deve se dar a resistência à retirada destes direitos?

Fernanda Melchionna: Eu acredito que os setores conservadores priorizam tanto os ataques aos direitos das mulheres justamente porque o patriarcado é um dos pilares de sustentação da sociedade capitalista, da lógica da exploração de classes e da perpetuação das opressões como forma de nos superexplorar. E, ao mesmo tempo em que o patriarcado tem esse papel fundamental na sociedade capitalista atual, também esses setores reacionários condensam uma reação à latência da luta das mulheres potencializada pelas jornadas de junho em 2013, que abriu uma fissura no regime e colocou no centro da política sujeitos de luta por liberdades democráticas e em defesa de mais direitos. No caso das mulheres, junho abriu espaço para a Primavera Feminista com as lutas contra o PL do Eduardo Cunha, bem como o fortalecimento da Marcha das Vadias. Enfim, uma série de mobilizações feministas que há muito tempo não víamos e que compõe uma nova onda do feminismo, expressa no Brasil e no mundo. Isso formou um sujeito reativo que conseguiu condensar as vozes da indignação popular, potencializado pela crise econômica profunda e uma crise de representatividade em que a população não se via representada pelo sistema político atual.

É importante destacar que o processo de eleição do Bolsonaro abarcou mais gente do que este setor reacionário. Muita gente comprou gato por lebre achando que estava votando em um sujeito que é contra a corrupção quando, na verdade, votou na expressão do mais baixo nível do sistema apodrecido brasileiro. No entanto, é verdade que Bolsonaro condensou as vozes da reação conservadora, dos machistas, dos LGBTfóbicos, dos racistas e, por isso, partem para ofensiva na tentativa de retirada de direitos, colocando figuras com pensamento absolutamente reacionário nos costumes, nos direitos das minorias sociais e na educação para retroceder os direitos já conquistados.

É verdade que tivemos uma derrota política com a eleição do Bolsonaro, mas também é verdade que a maior manifestação feminista da história do Brasil foi o Ele Não, foram as mulheres em reação ao Bolsonaro. As mulheres têm sido a pedra no sapato contra os planos da extrema-direita no mundo inteiro. O Brasil entrou em uma rota internacional. Trump é a expressão de um fenômeno mundial de auto-promoção enquanto “renovação” por parte do que há de mais velho na política: a representação das elites e dos interesses dos ricos. E, ao mesmo tempo, a primeira grande derrota do Trump foi protagonizada em 2018 pela vitória das mulheres na Câmara dos Deputados e pela expressão da Women’s March. Então, acredito que, antevendo a força que as feministas podem ter diante de um governo reacionário, Damares e os fundamentalistas no Congresso jogam suas forças para aglutinar os sujeitos reativos e tentar conter algo que é imparável.

Imparável, porque é evidente que as mulheres não vão voltar pra casa, é evidente que as LGBTs não vão voltar para o armário, é evidente que os negros e negras não vão aceitar o racismo estrutural que marca a história do Brasil. Mas, ao mesmo tempo, a medida que as vozes do ódio foram referendadas pela urna, a possibilidade de aumento de feminicídio, de crimes LGBTfóbicos e de crimes de racismo se potencializa. Esses primeiros dias de 2019 já mostram isso. Cada vez se faz mais necessária a máxima “Ninguém solta a mão de ninguém”. É preciso ter unidade na diversidade sem perder a peculiaridade de cada movimento ou setor que luta contra a opressão. É hora de potencializar a luta de cada setor oprimido de maneira unificada em ações conjuntas para que vençamos o mais rápido possível essa situação política lamentável do nosso país. Por isso, o 8 de março, Dia Internacional de luta das mulheres, tem uma importância fundamental. Mas também tem grande importância o 14 de março, dia que lamentavelmente completamos um ano da morte da Marielle e que, infelizmente, ainda não alcançamos justiça. Justiça para Marielle não significa apenas justiça para os seus familiares e seus companheiros de partido, mas também significa não dar carta branca para que crimes políticos sigam acontecendo em um país como o nosso, que tem estruturas criminosas como as milícias no Rio de Janeiro aterrorizando as comunidades e ao mesmo tempo com peso político, com representação e com contatos inclusive no Senado Federal.

No governo Bolsonaro, as pautas conservadoras têm um espaço importante. No entanto, elas vêm acompanhadas de um programa ultra neoliberal que tem como carro-chefe a proposta da Reforma da Previdência, que representa um ataque profundo aos direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras. Qual é o papel das feministas no parlamento e nas ruas diante deste cenário preocupante de retirada de direitos?

Fernanda Melchionna: O papel das feministas é central. Nós acreditamos na ideia de que o feminismo deve ter classe. Um feminismo da classe trabalhadora, que tem raça e que sabe, portanto, que a opressão das mulheres negras é muito maior que a das mulheres brancas, que são as que menos recebem no mercado de trabalho e sofrem com a violência doméstica. É um feminismo que é trans e que tem dentro de si a liberdade, o respeito e o apoio à identidade de gênero e à liberdade de orientação sexual. Um feminismo que sabe a importância da luta das indígenas num país como o nosso, que viveu um verdadeiro genocídio dos povos originários. Nesse sentido, o feminismo dos 99% contra 1%, esse feminismo que tem lado, enfrenta um cenário com o fortalecimento de uma agenda burguesa unificada na ideia da Reforma da Previdência, que quer tirar direitos. Diante da proposta de aumentar a idade mínima pra 65 anos pra homens e 62 para mulheres, precarizando ainda mais a vida dos trabalhadores e, sobretudo, das mulheres trabalhadoras – que são as que menos recebem e as que mais sofrem com a informalidade, com a precariedade das condições de trabalho e com a dupla ou tripla jornada de trabalho – esse feminismo tem que estar conectado com a luta dos trabalhadores contra a reforma da previdência. Nós, feministas, devemos lutar contra as tentativas dos bancos de ganhar mais um filão das previdências complementares com um regime de capitalização que já levou, no Chile, vários aposentados a perder sua aposentadoria ou receber menos de um salário mínimo.

Portanto, o 8 de março, que é a nossa data, tem que pautar o combate à violência contra a mulher, a desigualdade salarial, a participação das mulheres na política, mas também precisa estar vinculado com as pautas do momento. Temos que construir um forte 8 de março contra a Reforma da Previdência. As mulheres devem ser a linha de frente na construção desta pauta nos locais de trabalho, no debate com a população trabalhadora, na luta de resistência à retirada de direitos, mostrando a perversidade dessa reforma e mostrando que ela só atende aos interesses dos ricos. Precisamos de uma verdadeira revolução tributária no Brasil que taxe os ricos, que taxe os lucros e dividendos, que ataque aqueles que construíram essa crise econômica e política e que, ao mesmo tempo, seguem enriquecendo às custas das mulheres e dos homens trabalhadores.

O Brasil é um dos países com o maior índice de feminicídios no mundo. Até o momento, já foram registrados em 2019 mais de 20 casos de assassinatos de mulheres por motivo de gênero. O movimento Ni una a menos na Argentina trouxe este debate com força para a América Latina nos últimos anos. Na sua opinião, qual é o motivo dos altos índices de assassinatos de mulheres no Brasil? Qual deve ser a exigência para o poder público no que diz respeito à proteção da vida das mulheres?

Mônica Seixas: Os grandes números de violência contra a mulher no Brasil não aparecem à toa. A construção de gênero, que nos países ocidentais sempre colocou a mulher em lugar desprevilegiado, toma proporções maiores no Brasil por conta da nossa formação social. Diante do processo da colonização e do processo da nossa formação histórico-religiosa colocamos a mulher em lugar de ainda maior subordinação. Além disso, o Brasil tem uma formação social de violência exacerbada sobre corpos e vidas minoritárias. Nesse momento, este é um elemento ainda mais perigoso. Estamos assistindo o Brasil dar passos para trás. Poderíamos estar avançando. A Lei Maria da Penha, por exemplo, é uma formulação riquíssima que trata do combate da violência não apenas sob o ponto de vista da punição, mas também da assistência social as mulheres vítimas de violência. Poderíamos estar caminhando mais ao discutir a ampliação das delegacias da mulher, que não funcionam plenamente em todos os lugares. Poderíamos estar avançando na proposta de abrir as delegacias 24h por dia, para que estivessem funcionando nos horários em que há mais ocorrências de violência doméstica. Poderíamos, também, estar dando passos no sentido da melhoria da assistência a essas mulheres e seus filhos, que não tem como sair de casa.

No entanto, estamos vendo retrocessos sem precedentes, quando falamos da flexibilização do armamento da população, como proposto pelo governo Bolsonaro. Os números em todo o mundo demonstram que os países que têm mais fácil acesso às armas possuem dois principais perfis de vitimas: mulheres, vítimas de seus parceiros; e crianças, vitimas de acidentes domésticos, de brincadeiras ou de violências imaturas. Estamos tornando ainda mais vulneráveis esses dois perfis. Então, o Brasil nesse momento avança contra pautas estratégicas para assegurar a vida das populações minoritárias como LGBTs, negros e negras e, sobretudo, mulheres.

Estamos prestes a completar um ano da execução de Marielle Franco, vereadora eleita pelo PSOL. Até o momento, não há respostas claras sobre quem a assassinou e nem quais são os mandatários do crime. Marielle tinha como centro de sua luta a defesa dos direitos humanos, da vida das mulheres e o combate ao genocídio da juventude negra. Como você, enquanto deputada eleita pelo PSOL, encara a luta por justiça para Marielle e Anderson?

Mônica Seixas: A luta por Justiça para Marielle e Anderson é prioritária para todos que defendem a democracia no país. Porque sem conquistar justiça para Marielle, nós estamos chancelando e naturalizando que alguns perfis de luta continuem a ser assassinados e dizimados no Brasil. Vivemos no país que mais mata defensores de Direitos Humanos, ambientalistas, jornalistas, advogados ativistas. Temos um verdadeiro apartheid que afasta os negros dos espaços decisão, dos círculos sociais, mulheres de espaços de liderança. Quando lentamente e aos poucos conseguimos espaços quebrando estes obstáculos, nós pagamos com o nosso sangue. Então, a morte de Marielle nos fala de muitas coisas. Nos fala de um apartheid real do Brasil, de lutas que poucos ousavam encarar, de uma democracia que é uma lenda e que não chegou a todos os lugares desse país, e outras estruturas de forças e de poder sobre as quais muitos preferem não falar. Nos desdobramentos das investigações de Marielle, estamos vendo a ligação de agentes da segurança pública, ou seja, de braços do Estado (que também é muito violento com os seus agentes) com a morte de uma mulher negra que era um símbolo da ocupação dos espaços de poder pelo povo. Além disso, fica cada dia mais clara a ligação dos poderosos e dos políticos com essas milícias.

Se nós não conquistarmos justiça para Marielle, iremos naturalizar que mortes como essa continuem a acontecer. Não é a toa que muitas pessoas me abordam na rua preocupadas com a minha segurança. Estamos todos admitindo que eu corro um risco por ser fisicamente parecida com a Marielle, por defender as mesmas causas que ela, por atuar no mesmo partido, por ter idéias parecidas. Então, a morte de Marielle manda um recado: ou conseguimos justiça e deixamos de naturalizar crimes políticos ou os espaços de poder se tornam cada vez mais inalcançáveis para nós. Para continua lutando por democracia nesse país, precisamos conquistar justiça para o caso de Marielle.


Algumas feministas ao redor do mundo cunharam o conceito de “Feminismo dos 99%” para definir uma maneira de enxergar e construir a luta das mulheres. Este mote tem afinidade com slogans dos jovens indignados que tomaram as praças e as ruas da Europa e das Américas no início desta década e questionavam a democracia representativa e a relação da política institucional com os grandes capitalistas. O que você pensa sobre o “Feminismo dos 99%”? Como se dá a sua construção na prática?

Sâmia Bomfim: Há muitos feminismos em cena hoje. Me identifico com aquelas que afirmam a ideia de um feminismo dos 99%, pois ela aponta a luta contra o capitalismo como estratégia indispensável para a superação da opressão e da exploração das mulheres. Também porque se conecta com a insurgência de lutas ao redor do mundo contra os pacotes de austeridade, com protagonismo das mulheres. No mundo estão surgindo governos de extrema-direita, que congregam a perseguição a direitos fundamentais e a liberdades democráticas com medidas draconianas de exploração dos trabalhadores. O feminismo dos 99% é a antítese desse programa. Ele se expressou, por exemplo, na luta contra o trabalho escravo de Orbán na Hungria e nas marchas do Ele Não no Brasil, que são as maiores manifestações feministas da história do país.

A partir da compreensão de que 1% da população controla e detém a riqueza produzida pelos 99%, nosso feminismo precisa se conectar às lutas contra as diferentes formas de dominação e violência. Nosso feminismo é contra a xenofobia e está ao lado dos refugiados; é antirracista; é anti-LGBTfóbico; é dos povos tradicionais, dos sem teto, dos sem terra. É de todas e todos que são a maioria da população – os 99% que podem se colocar em movimento para vencer os que nos impõem uma vida com violência e sem direitos.

Diante do preocupante cenário político internacional e também da força do movimento feminista, você e outras parlamentares do PSOL tem construído uma iniciativa de articulação internacional feminista. Você poderia falar um pouco mais sobre esta iniciativa?

Sâmia Bomfim: Em janeiro, fui para os EUA junto às deputadas Fernanda Melchionna, Talíria Petrone e Jô Cavalcante a convite da Universidade de Berkeley para falarmos do movimento feminista brasileiro como motor da resistência ao governo de Bolsonaro. Aproveitamos a viagem para dialogar com Nancy Fraser e Cinzia Arruzza, importantes intelectuais e militantes feministas, que compartilham da visão de um feminismo das 99% e que, inclusive, lançarão livro homônimo no Brasil em breve. Debatemos com elas sobre a ideia de, a partir de um manifesto internacional de convocação do oito de março, indicar a construção de uma Internacional Feminista, para reunir e articular mulheres que lutam ao redor do mundo contra o machismo e os governos de extrema-direita. Há uma nova vanguarda mundial que expressa a luta anticapitalista, é uma vanguarda feminista, jovem, dinâmica e radical. Muito importante que estejamos conectadas para avançarmos num programa e num calendário em comum para enfrentar os retrocessos que querem nos impor.

Este artigo faz parte da edição da Revista Movimento n.11-12. Compre a revista completa aqui!


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Pedro Micussi