O fantasma dos caminhoneiros ronda o governo

Começa a crescer a ideia de que é possível enfrentar o plano de ajuste de Bolsonaro e Guedes

Israel Dutra 22 abr 2019, 11:25

O presidente da Petrobrás, Roberto Castello Branco, anunciou laconicamente o aumento de dez centavos no preço do diesel. Uma mensagem de áudio de Onyx Lorenzoni, que circulou pelas redes sociais, pedia calma aos caminhoneiros, falando inclusive que tinha dado uma “trava na Petrobrás”.

Na semana passada, Bolsonaro surpreendeu os investidores ao cancelar um aumento de 5,7 % nos preços. O ministro Guedes, então nos Estados Unidos, também se disse surpreendido. A confusão, causada pela decisão de Bolsonaro para evitar um novo flanco contra os caminhoneiros insatisfeitos, levou a queda das ações da Petrobrás. As manchetes do dia seguinte falavam que as ações teriam “derretido” em R$ 32 bilhões.

A novela é mais uma agravante num governo que vive em estado permanente de tensão e conflito, mas também o começo de uma experiência que um setor estratégico da sociedade começa a fazer, com a receita ultraliberal de ajuste do governo.

A crise motivada pelo reajuste do diesel se soma a um cenário instável nas movimentações do governo. Apesar de manter maioria parlamentar e contar com uma linha unitária da burguesia com relação às reformas, Bolsonaro infringe a lei da ciência militar que recomenda não abrir muitas frentes de combate de forma simultânea: o governo não consegue lograr uma fórmula consensual para evitar que sua reforma da previdência seja desidratada, tem dentro do PSL uma cunha, com a deputada que ataca o Ministro do Turismo por corrupção e ameaças, o Ministério da Educação segue paralisado e a economia real patina.

A impaciência do mercado cobra Guedes. A impaciência dos caminhoneiros cobra Onyx, batizando com seu nome um protesto marcado para o final do mês de abril. Em meio a campanha pela aprovação da reforma da previdência, a crise ao redor do preço do diesel pode ganhar importância e evocar antigos fantasmas, como a última greve dos caminhoneiros, que paralisou o país por mais de dez dias.

O que foi a greve dos caminhoneiros de 2018?

O debate sobre o preço do diesel remonta à greve dos caminhoneiros de 2018. O enfrentamento que paralisou as rodovias ainda está fresco na mente de todo o povo e da cúpula do governo. A força da greve foi tão grande que se atribui a ela a queda nas expectativas de crescimento do PIB no ano. A greve questionou o modelo liberal de reajustes diários de preços, levando à queda do então todo poderoso da Petrobrás, Pedro Parente.

Escrevemos, em documento político de junho de 2018, uma caracterização do movimento dos caminhoneiros:

“O estopim foi a política de preços da Petrobrás, com 17 reajustes nos preços dos combustíveis nos últimos meses, levando o preço do diesel às alturas. Os donos de frete, caminhoneiros autônomos e centenas de milhares de trabalhadores foram às estradas paralisar por não aguentar mais a política de aumentos, provocada pelas flutuações internacionais dos preços do barril de petróleo – que recentemente rompeu o teto dos US$ 80 – e do dólar. Combinando a unidade entre empresários do setor, o grande contingente de caminhoneiros autônomos e trabalhadores contratados, a pauta combinou-se com a necessidade de reduzir os preços e a discussão sobre tributos, pedágios, o preço mínimo dos fretes e as condições de trabalho nas estradas”. (A queda de Parente e lições de caminhoneiros, Executiva Nacional do MES/PSOL, 6 de junho de 2019)

As consequências da greve foram enormes: imediatamente, derrubou a política de preços da Petrobrás; colocou para milhões o problema dos reajustes dos combustíveis e do gás de cozinha; reforçou um ódio ativo ao governo de Temer e reafirmou a confiança da categoria em suas próprias forças.

Poucos setores de esquerda tiveram uma linha de disputar o apoio à greve. Nesse caso, não hesitamos. Colocamos nossas energias para unirmo-nos aos piquetes em frente das refinarias e nos acostamentos das rodovias. A mobilização dos caminhoneiros se espalhou para outros setores do transporte, como motoristas de vans, aplicativos e outros setores precarizados. A defesa das reivindicações imediatas dos caminhoneiros era justa e precisava ser ampliada com a defesa da Petrobrás como empresa pública, abrindo uma ponte com a categoria petroleira e suas organizações sindicais. A ausência de um pólo social e sindical para apoiar a greve que parou o Brasil custou caro na consciência e na relação de forças.

Os setores bolsonaristas e da extrema-direita foram com força para a disputa. Sua estratégia era de apoio incondicional, acampando em frente aos piquetes, utilizando os elementos ideológicos mais atrasados da categoria – em vários aspectos – para desviar o ódio a Temer e ao governo para apoio eleitoral e político a Bolsonaro e a posições conservadoras, com a linha de mudar “tudo que esta aí”.

A dinâmica dos meses posteriores seguiu com o apoio ao bolsonarismo por parte da ampla maioria da categoria, como alertávamos no mesmo documento de junho:

“Não podemos subestimar o peso de Bolsonaro, do conservadorismo que finca raízes em setores de massa, como algumas correntes políticas que atuam em meios neopentecostais. E, pela primeira vez, a defesa da ‘intervenção militar’ ganhou entrada num setor (desorganizado) de massas”. (A queda de Parente e lições de caminhoneiros, Executiva Nacional do MES/PSOL)

O desenlace foi a vitória da greve, contraditoriamente, com o fortalecimento de posições reacionárias entre os caminhoneiros, pela dinâmica da situação. A entrada em cena dos petroleiros, que foi tardia por conta das direções da FUP e da CUT, poderia ter dado um caráter mais amplo à contestação da linha neoliberal da direção da empresa, resgatando a solidariedade de classe entre os setores em luta.

Porque o governo teme tanto a uma nova paralisação?

A forma com que Bolsonaro e a cúpula do governo tratam a questão das negociações com os caminhoneiros não deixa dúvidas sobre o temor de uma nova paralisação e dos efeitos que a mesma poderia ter na situação política. Onyx, em seu citado áudio, ilustra bem o tom do governo. Uma cautela não habitual, fora do léxico bolsonarista.

O governo teme e precisa evitar uma nova luta caminhoneira por dois aspectos: uma greve que questione o ajuste em meio à instabilidade dos primeiros cem dias de governo colocaria Bolsonaro e todo seu ministério contra as cordas, justamente quando ele precisa passar à ofensiva e aprovar a reforma da previdência. Além disso, os caminhoneiros foram uma duas bases sociais mais incisivas e fiéis.

Até o momento, as negociações têm sido feitas apenas com um setor, mais próximo ao governo, do líder caminhoneiro Wallace Landin, conhecido como Chorão. O fato desagradou a categoria, marcada pela fragmentação de suas representações. O comunicado da CNTA – Confederação Nacional de Trasportadores Autônomos, que afirma congregar mais de 140 sindicatos e associações de todo país, diz que a categoria está “insatisfeita e impaciente quanto a política do governo diante da tabela dos fretes e do aumento do diesel”.

Contudo, as condições para uma nova greve, pujante como a de 2018, são distintas. Há confiança em Bolsonaro por parte da maioria dos caminhoneiros. Isso pode mudar rapidamente, mas ainda existem grandes ilusões nas bases da categoria. Sabendo disso, Bolsonaro optou por não romper, ao contrário, apareceu questionando a política de preços, para manter a todo custo essa relação e o apoio.

As novas contradições abertas com o recuo não chegam a quitar-lhe os pontos ganhos com o anúncio do congelamento da semana anterior. Parte da categoria observa Bolsonaro como quem “está tentando lutar por seus interesses em meio a esquemas tão poderosos” ou que a “esquerda e a mídia sabotam Bolsonaro”.

A situação política nacional também é diferente do maio de 2018. Ao contrário de Temer, que estava desmoralizado e sem qualquer apoio, Bolsonaro ainda conserva apoios na sociedade em geral e na categoria em particular. A greve de 2018 contou com apoio das grandes patronais do transporte, ora arrastadas para o movimento, ora dispostas a pressionar para novos preços dos fretes. Esse cenário dificilmente será repetido, ao menos por enquanto. Assim que, apesar da ameaça ser grave, estão longe as condições concretas para um novo movimento de caminhoneiros de impacto similar ao da última greve.

Uma espiral de contradições: as dificuldades do “posto ipiranga”

A bronca dos caminhoneiros é grave, porque gera instabilidade num terreno no qual o governo precisa dar mostras de confiança de sua equipe econômica. Pressionados pelas rodovias por um lado e pelo mercado por outro, as demandas sociais vão gerando contradições, que não podem ser resolvidas com frases de efeitos ou lives de Bolsonaro.

A contradição do preço do frete se choca diretamente com o setor dos ruralistas que comanda a pasta da agricultura. Até aqui, a principal revindicação da luta do ano passado não foi contemplada, pelo forte lobby do agronegócio, fazendo com o que o governo busque acalmar os caminhoneiros com medidas paliativas, como um plano abstrato de melhorias nas estradas, um cartão especial para a compra de combustível e uma oferta de crédito restrita (cerca de R$ 30 mil para caminhoneiros com até dois veículos).

A segunda contradição, ainda mais latente, é a do controle de preços. Isso reabre na sociedade o debate sobre a política da Petrobrás, seu caráter público e estatal e a condução ultraliberal de Castello Branco e de Guedes. Tal qual na Argentina, onde Mauricio Macri adota medidas “intervencionistas” para controlar o preço de produtos da cesta básica, dando um nó em seu próprio discurso neoliberal, Guedes teve de explicar o telefonema de Bolsonaro que suspendeu o primeiro aumento.

Como bem afirmou a AEPET(Associação dos Engenheiros da Petrobrás), na figura de seu presidente, Felipe Coutinho, a função da Petrobrás é garantir o abastecimernto de combustiveis e a segurança energética brasileira, com os menores preços possíveis, mas a prática de preços internacionais prejudica a empresa.

A necessidade da defesa da Petrobrás torna-se mais urgente, vez que está sobre a mesa uma nova proposta de privatização. A fórmula de Guedes é antecipar recursos com a nova rodada de leilões do pré-sal, inicialmente agendada para outubro, como forma de oferecer recursos para os governadores se comprometerem com a aprovação da reforma da previdência.

O problema real e de fundo é mais geral, como os editorais da grande mídia definiram: a crise econômica e a precarização da situação geral do povo. A revisão para baixo de todas as previsões de melhoria econômica atingem em cheio a chamada economia real. Sem recuperação da economia, o cenário vai ser de aprofundamento das contradições. O “posto Ipiranga” de Bolsonaro começa a ser questionado.

Coordenar os calendários para fomentar as lutas

É importante que a esquerda socialista apoie a luta e as demandas dos caminhoneiros. Nas grandes cidades, os motoristas de aplicativos são parte da superexploração do trabalho, com pouca segurança e com jornadas de mais de 12 horas. São parte de um fenômeno geral de precarização das condições de trabalho.

Ajudar o movimento de massas a fazer a experiência com o governo é dialogar com esses setores. A política de congelamento do aumento do salário mínimo é desastrosa e vai gerar mais choques na base eleitoral de trabalhadores que se iludiram com as fake news e com a onda que levou Bolsonaro à presidência. Para tanto, é preciso explicar pacientemente o caráter antipopular das medidas e vincular com a luta geral contra a reforma da previdência e em defesa dos direitos.

Para coordenar esse calendário, o PSOL deve estar presente no calendário de lutas, que na semana tem como pontos centrais o acampamento indígena Terra Livre, o chamado à greve dos garis do Rio de Janeiro e o dia nacional de lutas da educação em 24 de abril. Assim, abrir caminho para um plano de lutas coerente, que seja tonificado com um 1º de Maio expressivo – será um ato inédito com todas as centrais – que derive na construção e preparação de uma greve geral para quando entrar em votação o projeto da reforma no Congresso Nacional.

Nesse caso, a luta dos caminhoneiros, ainda que embrionária, demonstra que as contradições na sociedade estão latentes. As novas reuniões com o governo podem contornar os elementos mais agudos da crise, contudo, começa a crescer a ideia de que é possível enfrentar o plano de ajuste de Bolsonaro e Guedes.


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Pedro Micussi