Lei de combate ao tráfico e a lógica do aprisionamento brasileiro
É realmente certo fomentar a lógica do aprisionamento feminino mesmo sabendo suas devidas causas e consequências?
A urbanização desordenada de um país como o Brasil que fomentou o aumento das desigualdades sociais, fez com que o país se tornasse heterogêneo em oportunidades, renda e segurança, fazendo com que a violência fosse um dos temas mais importantes a serem debatidos e combatidos até os dias de hoje. A falta de oportunidades existentes nas periferias tornou essas regiões alvos para o desenvolvimento do crime organizado e do tráfico de drogas. Desde então a população periférica vulnerável a falta de oportunidades de empregos arriscam sua liberdade e, muitas vezes, suas vidas em troca de uma recompensa financeira.
Conforme o narcotráfico foi crescendo no Brasil o crime foi se institucionalizando e cooptando as instituições, prova disso é a criação do PCC e das milícias. O Primeiro Comando da Capital trouxe à tona a organização no tráfico, dentro e fora dos presídios, impondo regras que viabilizaram uma menor violência entre os traficantes principalmente entre os carcereiros. Já a milícia é um exemplo de como o tráfico se tornou um lobby entre policiais, traficantes e políticos, viabilizando cada vez mais o sucesso no comércio das drogas.
Como resposta a este crescente comércio o Estado assume, de forme moralista e insuficiente, a solução no aumento da rigidez nas leis de combate ao tráfico e o aumento da brutal atuação da Polícia Militar nas periferias. Uma das políticas adotadas que mais tiveram consequências enrijecimento das penas contra o tráfico foi a criação da lei 11.343/2006, que se baseia em:
“Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.”
Esta lei resultou em um aumento significativo da população privada de liberdade. Segundo a pesquisa realizada de 2016 do INFOPEN – Instituto Nacional de Levantamento de Informações Penitenciárias – em 2006, quando a lei foi criada, o número de presos era de 401,2 mil pessoas e em 2016 passou a ser 726,7 mil pessoas (INFOPEN, 2016). Este número se torna ainda mais assustador quando analisamos o INFOPEN Mulheres que mostra o aumento de prisioneiras de 17,2 mil em 2006 para 42,4 mil em 2016.
O aumento de 181% de homens e mulheres presos no período de 2006-2016 é preocupante, entretanto e enfoque de gênero, vendo que o número de mulheres carcerárias cresceu 246%, é o grande porquê deste texto se direcionar ao encarceramento feminino sob uma ótica feminista. O estudo da realidade carcerária feminina é crucial para a percepção de que a lógica do aprisionamento também é tomada pelo machismo, além de possuir decorrências familiares graves, já que na maioria dos casos as mulheres presas são mães.
A vivência em presídios femininos se dá de forma bem diferente do que a dos masculinos, a começar pela discrepância entre a média de visitas por pessoa que os presos homens recebem (7,8) e a média de visitas por mulheres (5,9). Esses números podem ser explicados por muitos fatores, um deles é o machismo existente dentro das famílias brasileiras que encaram como um tabu vergonhoso ter o contato ou parentesco com mulheres encarceradas. Outro fator importante é que nos presídios masculinos tem-se uma “obrigatoriedade” moral de que as cônjuges e companheiras estejam presentes nos domingos de visita. Por fim, há também o fato de que as mulheres presas – principalmente aquelas presas por tráfico de drogas – em muitos casos entram no crime organizado junto com os seus maridos ou quando seus companheiros são presos, para garantir o sustento dos filhos bem como a sobrevivência dos maridos dentro dos presídios, ou seja, a prisão de seus companheiros também é um porquê do número muito reduzido nas filas de visitas para prisioneiras.
Outro aspecto importante quando utilizamos uma ótica de gênero é a realidade materna em um ambiente totalmente hostil ao desenvolvimento humano. Segundo os dados do INFOPEN Mulheres em 2016, 75% das mulheres presas do Brasil possuíam um ou mais filhos, isso trazia uma realidade de 1.111 crianças dentro dos estabelecimentos femininos apesar de só 14% e 3% deles possuírem berçários e creches, respectivamente. Este cenário gera um ciclo familiar que dificulta a emancipação dos filhos das presas para uma realidade sócio-educacional distinta. Aqueles e aquelas que passam parte do seu desenvolvimento em ambientes punitivistas, como são as cadeias, compreendem só uma realidade possível para se desenvolver financeiramente (o crime), já aqueles e aquelas que os pais estão presos veem no tráfico a forma mais eficaz de se sustentar bem como sustentar seus irmãos e irmãs.
Uma possibilidade de romper este ciclo familiar, oferecendo maiores oportunidades para as famílias das carcereiras, seria o Auxílio-Reclusão, que está previsto dentro da lei da previdência social. Este auxílio é acessível aos dependentes das presas em regime semiaberto ou fechado, contribuintes regulares do INSS. O benefício possui alguns critérios como idade, deficiência e tipo de relação com o presidiário. Entretanto, no Brasil apenas 3% das famílias recebem auxílio-reclusão e isso se deve provavelmente a dificuldade no acesso ao auxílio devido a burocracia existente no sistema previdenciário.
O impacto da lei 11.343/2006 citada acima que intensifica o aprisionamento deve servir de reflexão se o sistema prisional brasileiro caminha bem. Ainda na análise do INFOPEN Mulheres vê-se que 45% das mulheres estão presas sem condenação, 62% são negras e 62% estão condenadas por tráfico de drogas. Como bem descreve Drauzio Varella em seu livro “Prisioneiras” a maioria das mulheres que hoje estão privadas de liberdade não são traficantes nem são ligadas a facções criminosas. Como dito anteriormente, os presídios masculinos possuem um alto índice de visitas e em muitos desses encontros os carcereiros pedem “favores” para pagarem suas dívidas contraídas que os ameaçam de morte. Ao cumprirem sua lealdade a maioria das mulheres tem o início de seu ciclo penal nas revistas dos dias de visitas.
A pergunta que nos resta é: É realmente certo fomentar a lógica do aprisionamento feminino mesmo sabendo suas devidas causas e consequências? Sabe-se o quanto a nossa justiça é tomada por uma lógica racista, não à toa que a maior porcentagem de mulheres presas são negras e nem sequer foram julgadas. O aprisionamento em massa agrava cada vez mais a superlotação dos presídios e a má condição de vida para as que lá habitam. É extremamente necessário que se pense políticas públicas de combate ao tráfico que garantam a dignidade humana e que pense em romper o ciclo geográfico-social que condena todos os dias mulheres e crianças da periferia.
Artigo realizado como recurso avaliativo da disciplina Direito Constitucional ministrada por Marcelo Nerling – EACH USP
Referências
VARELLA, Drauzio. Prisioneiras. São Paulo: Companhia Das Letras, 2017.
MJ – Ministério da Justiça e Segurança Pública. INFOPEN Mulheres 2º edição, 2018.
Brasil, Constituição. Lei nº 8.213, 1991.
Brasil, Constituição. Lei nº 11.343, 2006.