Roda Viva contra a corrente

Peça do Teatro Oficina nos recobre de certeza sobre a possibilidade do progresso.

Pedro Micussi 16 maio 2019, 21:38

Está em cartaz desde o final do ano passado no Teatro Oficina, em São Paulo, a mais nova montagem do musical Roda Viva, de Chico Buarque. O impacto da obra nos espectadores é simplesmente arrebatador e revela a potência artística (ainda) presente nos círculos de produção de cultura em nosso país. Política desde suas entranhas, a peça é uma excelente representação do grande embate estabelecido na sociedade brasileira contemporânea. No já clássico texto de Chico, Roda Viva trata da vida de um artista tragado pelo moinho da indústria cultural. Na remontagem comandada por José Celso Martinez, o núcleo da trama se mantém numa adaptação do conjunto da peça ao Brasil do fim da década que leva em consideração, como não poderia deixar de fazer, a pariticularíssima situação política e social do país. A obra diz respeito, antes tudo, ao choque entre civilização e reacionarismo bárbaro que vem se contornando em nosso país.

A peça se destaca por sua capacidade de encenação do cômico-dramático momento nacional. As três horas e meia de apresentação são capazes de englobar uma série de questões candentes da vida brasileira contemporânea, num esforço que deve ser louvado. A atualidade do texto é tal que à plateia é dada muitas vezes a impressão do conjunto dos diálogos terem acabados de serem escritos horas antes do espetáculo, tamanha a capacidade da peça em fazer refletir o Brasil de hoje. Não à toa, além da elaboração e tratamento das macro-contradições da sociedade brasileira no desenrolar da trama, breves piadas vão sendo sagazmente introduzidas no texto, semana a semana, em referência aos mais novos elementos pitorescos que se afloram na sempre dinâmica, dramática e cômica realidade política nacional.

As gargalhadas constates do público ao longo da apresentação em bom português fazem lembrar o melhor da tradição inaugurada pelas cantigas de escarnio. Haverá aqueles que argumentarão, sarcasticamente e não sem razão, que o trabalho dos dramaturgos é facilitado quando os próprios governantes passam a se portar como palhaços do absurdo. Mas é preciso reconhecer, no entanto, os esforços daqueles que buscam refletir e dar sentido à desordem aparente em que o país mergulhou. O Teatro Oficina aqui não está sozinho, uma vez que já não são poucas as obras artísticas de qualidade – memes incluídos – que vêm conseguindo dar forma à comédia trágica que parece reger a vida política e social do país nos últimos anos. A análise de Roda Viva pode se revelar, assim, mais como uma ponta de iceberg do que um ponto fora da curva, e pode quem sabe apontar a tendências profundas da vida artística no Brasil contemporâneo.

Como muito foi discutido, aliás, duas questões maiores envolvendo o Teatro Oficina e a remontagem de Roda Viva podem ajudar a explicar o vigor do objeto aqui tratado. Em primeiro lugar, como já é de conhecimento de muitos, o Teatro Oficina se insere hoje no centro de uma disputa política na cidade de São Paulo. A obra projetada por Lina Bo Bardi e tombada como patrimônio cultural do município corre o sério risco de ser completamente desvirtuada por meio de projeto da família de Silvio Santos que prevê construir gigantes torres no terreno ao lado do teatro.  Em segundo lugar, vale lembrar que a própria remontagem do Roda Viva passou por percalços, dada a condição de penúria financeira por qual atravessa o Oficina e a inexistência de patrocinadores ao projeto em questão. A esses dois elementos poderíamos acrescentar, é claro, o próprio peso histórico de Roda Viva no contexto artístico político brasileiro. Encenada pela primeira vez em 1968, seu elenco fora, à época, violentado pelo Comando de Caça aos Comunistas em São Paulo e a peça censurada pela ditadura militar em Porto Alegre. Zé Celso e Chico Buarque, as duas principais mentes criativas por trás da obra, seriam posteriormente perseguidos pelo governo, sendo obrigados a se exilar do país nos anos seguintes.

Os dois primeiros relatos já bastam, contudo, para contextualizar Roda Viva. A trama trata essencialmente das desventuras de Benedito da Silva, jovem artista que, por mãos alheias, é levado à fama imediata como Ben Silver e, posteriormente, tragado pelo seu próprio insucesso. O artista ressurge então como Benedito Lampião, em uma versão mais politizada e engajada do primeiro. Não sendo mais capaz, contudo, de atingir o estrelato anterior, acaba se suicidando.

Roda Viva se torna assim, em primeiro lugar, uma preciosa encenação do que poderíamos entender como a dinâmica da indústria cultural. Há ali uma crítica escancarada desta estrutura, fato este que por si só recobre de valor a obra em questão. Fabricando produtos da cultura quase como quem fabrica automóveis, a indústria cultural faz com que os artistas, usados e prontamente descartados, não sejam mais do que peças de uma engrenagem sobre a qual não possuem poder de influência. Aqui, cabe fazermos uma breve digressão sobre a questão.

O célebre conceito cunhado por Adorno e Horkheimer[1], que buscaram entender as particularidades dos bens da cultura quando produzidos sob a lógica da fabricação de mercadorias, aponta que uma das principais dimensões da indústria cultural consiste em sua operação de supressão da individualidade. A racionalização que impera na produção dos bens industrializados leva à sua padronização e mina as possibilidades das obras da indústria cultural serem o reflexo da livre expressão individual dos artistas. Numa dinâmica em que o todo sempre obtém primazia em relação à parte, os novos produtos da cultura e seus processos produtivos são sempre a história de sua adequação à norma já estabelecida: não há margem, na criação, para o novo, para o que fuja do esquematismo e da padronização.

Sendo a palavra final sobre a elaboração da obra “artística” prerrogativa de administradores, técnicos e diretores, o artista passa a ter sua dimensão criativa restringida. O resultado é aquele bem conhecido: há cada vez maior assemelhação dos bens culturais, que dão aos seus espectadores a sensação de estarem presos numa espécie de império eterno do déjà vu. Por essas e outras razões, a indústria cultural era entendida por esses autores como o domínio da pseudoindividualidade. Pseudoindividualidade, aliás, que parece dar o ritmo da conhecida canção-tema de Chico Buarque que confere nome à peça: do que trata a letra de refrão retumbante senão da supressão do individuo através dos rodamoinhos satânicos da estrutura social?

Atual na década de 60, atualíssima em 2019, a dinâmica da cultura mercantilizada ainda segue dando o tom às produções culturais hegemônicas nos mais diversos domínios estéticos brasileiros. Um peça cujo tema central, portanto, diz respeito essencialmente a este fenômeno já guardaria, por si só, extremo vigor. Acontece que não se trata de uma peça qualquer encenada por uma companhia qualquer. Ao contrário, o Oficina se caracteriza como um grupo que historicamente se revolta contra os ditames dessa indústria e que  (quem sabe por causa disso) pena para poder ter o seu lugar à luz. Dizíamos que a própria remontagem de Roda Viva foi realizada a duras penas financeiras e não dispõe de patrocínio. Este fato, anunciado pelos atores da peça tão logo o público ocupa seus assentos no teatro, acaba por ressignificar a apresentação como um todo. Por vezes, parecemos adentrar numa espécie de espiral em que a obra encenada parece mostrar-se como metáfora da própria situação atual do Oficina, num exercício de metalinguagem que eleva à última potência o recurso de quebra da quarta parede historicamente tão explorado pela companhia de José Celso Martinez. Teatro Oficina, Brasil-2019, Silvio Santos, Bolsonaro, cultura de massas, sertanejo universitário, Xuxa, Angélica, João Doria, Zé Celso, Anjo, Moro, Bettina, comunistas, Diabo, tchutchuca, Chico Buarque, tigrão, coro, plateia… São todos eles elementos integrantes da encenação que, de tão bem articulados, confundem o espectador a respeito da fronteira entre a esfera real e o domínio artístico que este deveria representar.

“Se em 68 o coro de Roda Viva quebrou a quarta parede entre palco e plateia, misturou e modificou o moderno teatro brasileiro e, consequentemente, o teatro contemporâneo, hoje 50 anos depois, a bola do coro de 68 foi recebida pelo coro de 2018, com a direção de quebrar todas as paredes, em escala urbana. A religação do povo com a Cultura e da Cultura com o povo. Roda Viva é acontecimento. Neste momento de censura, perseguição e criminalização de artistas, de linguagens, de liberdades, o Teatro Oficina monta Roda Viva como uma prática da paixão e das potências transumanas, na perspectiva comsmopolítica no Aqui Agora de 2018.”

Teatro Oficina, Roda Viva

Se quisermos uma vez mais insistir na analogia com a indústria cultural – esperando que com isso este texto não ultrapasse o limite do enfadonho – poderíamos levar em conta outra dimensão deste conceito. Ela diz respeito ao processo de atrofiamento da imaginação e da espontaneidade dos espectadores na indústria cultural. Adorno e Horkhemeir chamavam atenção ao fato dos produtores dos bens culturais buscarem o mais rígido controle sobre as emoções provocadas nos espectadores ao desenrolar de sua obra. Os exemplos são diversos e todo mundo deve conseguir acessar facilmente em sua memória a lembrança de um filme, por exemplo, que se torna rapidamente desinteressante pela mecanicidade e esquematismo através da qual uma cena “para fazer chorar” é intercalada por uma que pretende “fazer rir” (ou a cena feita “para que se sinta pena” da personagem, ou a cena que pretende “surpreender a plateia com um fato inesperado”, e aqui poderíamos citar dezenas de outros exemplos). É como se, ao revelar de forma tão pobre e direta as intenções de seus criadores, a obra acabasse por perder boa parte de seu encantamento.

Roda Viva é, da forma como a entendemos aqui, o completo oposto desta dinâmica. Trata-se aqui, como em boa parte do teatro de Zé Celso, de imbuir no espectador um imperativo exercício reflexivo. O significado dos momentos da narrativa não são evidentes, e cabe antes ao espectador conjecturar a seu respeito do que aguardar uma resposta finalizada que venha do palco. Sem o processo constante de reflexão, pelo público, do texto, Roda Viva pode facilmente aparentar uma peça informe e sem lógica. Cabe ao espectador, entretanto, a tarefa de dotar de sentido o conjunto dos elementos ali apresentados, numa atividade intelectual permanente que acaba por aproximá-lo à narrativa.

A remontagem de Roda Viva se quisesse ser fiel ao espírito do texto escrito nos anos 60 deveria – como manda o figurino – não fugir das questões candentes do momento político brasileiro. Felizmente, estamos a tratar de agentes com nítida ascendência no  tropicalismo, brasileiros que compreendem de forma extremamente particular e virtuosa a relação entre modernização nacional, produção artística de vanguarda, política, cultura contemporânea e País.

A dita cisão presente na sociedade brasileira contemporânea que dá a impressão de permear cada vez mais e mais esferas da vida nacional se vê magistralmente representada. O resultado estético produzido pela Roda Viva do Oficina faz jus a essa unidade contraditória resultante da colisão entre forças do progresso e do atraso. A falta de racionalidade ou absurdo de algumas cenas dão a impressão de serem as únicas formas capazes de darem conta de uma realidade que parece teimar em desafiar a razão.

A sensação, terminado o espetáculo, é a de ter flertado com a força e as plenas capacidades de realização da civilização. Em momentos tão conturbados como o nosso, em que a indeterminação e a desconfiança parecem dar o tom das expectativas futuras, Roda Viva recobre seu público com elementos que confirmam a possibilidade do progresso. Não que haja na peça um programa ou diretrizes a serem seguidas para a reabilitação do país, e nem que o espírito da encenação seja propriamente otimista. Ao contrário, os eventos evidenciados ali são, em sua maioria, a pura manifestação da ruína social pela qual atravessa o país. Contudo, se se inspira tenacidade, é pelo próprio fato da exposição tão íntima e durante tanto tampo (já que aqui a longa duração da peça potencializa seu efeito) com o belo. Não apenas, é pela certeza de que apesar de todos os pesares, de uma história opressiva e cruel que há séculos impede a execução dos talentos criativas de seu povo, o Brasil segue tendo-os dentro de si.

É comprovação da existência de uma realidade das mais contraditórias a mínima possibilidade do impedimento de manifestações culturais como a do Oficina (como atesta a ameaça de seu fechamento), da coexistência em um mesmo território nacional de um governo de canalhas anti-iluministas com gente tão comprometida com o avanço da cultura e dos costumes no país como a gente do Oficina. Estando, no conjunto de nossas atividades cotidianas, mais expostos às manifestações das barbaridades do atraso, é no mínimo revigorante ter a certeza da existência do outro termo dessa soma dialética que, sendo ele a única justificativa para a emergência de seu antípoda, completa a equação.


[1] Cf. ADORDNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução: Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985 e GATTI, L. “Theodor W. Adorno: indústria cultural e crítica da cultura”. In: NOBRE, M. (org.). Curso livre de teoria crítica. Campinas: Papirus, 2008.


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