Argentina e Brasil, uma vez mais, no espelho da crise orgânica

Israel Dutra analisa a situação de Brasil e Argentina, além das eleições no último país.

Israel Dutra 25 jun 2019, 17:02

As narrativas fantásticas de Borges conduziam por labirintos e espelhos a racionalidade dos delírios de sua obra. São labirintos e espelhos os que conduzem Brasil e Argentina para suas novas tragédias. Que por vezes parecem delírios. Ou ao menos é essa sensação ao se deparar com o apagão que deixou o país vizinho às escuras por quase um dia. Ou nas declarações desmedidas de Bolsonaro, do alto de sua arrogância e autoritarismo, sobre uma moeda comum, chegando às raias do absurdo de apresentar inclusive um nome para tal aventura: “peso real”.

Nos anos 90, circulamos uma brochura, feita em parceria com companheiros argentinos que prenunciava a combinação das crises que chegariam aos dois países. O título não poderia ser melhor: “Argentina, espelho da América Latina”. O que se verificou nos anos seguintes foi uma relação de sincronia, ainda que com diferentes caminhos e velocidades, sobre as crises econômicas, sociais e políticas que cercavam Brasil e Argentina.

Uma verdadeira catástrofe econômica assola a Argentina. Com a queda do PIB, o governo Macri endividou novamente o país e derrubou todos os índices sociais e econômicos. São quase nove milhões de argentinos na pobreza. O dólar disparou de 19 para 45 pesos nos últimos quinze meses. A inflação ao consumidor alcançou 47,8 % no ano passado. De “júpiter” do neoliberalismo latino-americano a condutor do Titanic argentino, assim Mauricio Macri chega para a disputa eleitoral de outubro. Muitos ares lembram a 2001.

Muito antes disso, um antigo comercial de TV chamava a atenção para as relações entre Argentina e Brasil. No comercial, uma marca de bebidas prometia evitar a ressaca sob o bordão “eu sou você, amanhã”. Desde então as comparações entre os picos de crise e crescimento entre nossos países vizinhos sempre tiveram essa perspectiva.

Macri e Bolsonaro se encontraram no começo de junho em Buenos Aires sob protestos. Ambos guardam diferenças, mas carregam a necessidade de redobrar a guerra social contra os direitos adquiridos pelos trabalhadores e o povo. Em fins de maio, uma greve geral paralisou toda a Argentina. No dia 14 de junho, a paralisação nacional no Brasil teve impacto como pronunciamento contra o plano de ajuste neoliberal.

São várias coincidências, pontos de encontro e também separações entre Brasil e Argentina. Desde a necessidade de construir a resistência, passando pelas dificuldades de forjar uma esquerda classista e combativa, chegando até nos aspectos mais mórbidos da presente situação política. Um exemplo desses sintomas mórbidos é a incrível semelhança entre Olavo de Carvalho, guru e astrólogo de cabeceira do projeto bolsonarista, e o nefasto Lopez Rega, ocultista que cumpriu um papel destacado na ala fascista da ditadura argentina.

Entender os aspectos que unem e os que separam as realidades de Argentina e Brasil é decisivo para encarar a nova etapa da luta política, de maior polarização e impasse generalizado.

Os ciclos anteriores

Bolsonaro e Macri têm um projeto em comum, em que pesem suas já mencionadas diferentes estratégias: querem impor uma nova relação de forças, impor uma derrota para o movimento operário, retirar direitos e construir uma nova ordem, sem “sindicatos e expressões de movimentos democráticos”. Isso demonstra que existe uma forte sincronia entre os processos políticos e sociais de ambos os países. E isso é que marca nas últimas três décadas, após o ascenso que derrotou as ditaduras militares no Cone Sul.

As experiências de governos que fizeram a transição entre a ditadura e a democracia foram trágicas para o conjunto da população. A década de oitenta, tida como perdida, trouxe o fantasma inflacionário para o centro das preocupações. Os anos noventa tiveram o componente de consolidar os novos regimes, ao mesmo tempo alinhar os países ao cenário global, com o experimento neoliberal. Menem e FHC foram os escolhidos para levar adiante o projeto neoliberal, utilizando a reestruturação produtiva em larga escala para impor o ajuste neoliberal. Seu principal alicerce foi a bandeira da estabilidade monetária. Ao livrar o país da inflação, tanto Menem como FHC conquistaram um importante ativo, diante do movimento de massas e dos setores médios, golpeados pela hiperinflação de Alfonsín e pelo confisco da poupança de Collor. Isso rendeu uma folgada reeleição para ambos os presidentes. A defensiva do movimento operário organizado, tanto objetiva quanto subjetivamente fez com que os movimentos de resistência fossem ocupados por outros atores como o MST no Brasil e os “piqueteiros” na Argentina.

O desgaste com a experiência neoliberal foi desigual. A Argentina elegeu um governo de centro-esquerda, com De La Rúa, que acabou sendo ponto de partida para a explosão social que se transformaria numa semi-insurreição em dezembro de 2001, o que viria a ser conhecido como “Argentinazo”. No Brasil, a direção da CUT e do PT desviaram o ascenso para a luta eleitoral, na qual FHC, apesar de desgastado, concluiu o mandato, dando oportunidade para Lula vencer a eleição de 2002, em aliança com a burguesia industrial e o setor evangélico, com José Alencar na cadeira de vice.

Apesar de fenômenos complexos e distintos, o kirchnerismo e o lulismo também tiveram pontos de unidade, construindo um projeto muito similar: o social-liberalismo. Absorvendo conquistas sociais, em países tão carentes de reformas estruturais, os governos alternavam medidas neoliberais com concessões para o movimento de massas. O cenário favorável do boom das exportações de produtos primários foi o que criou lastro para tal projeto. Arrastando outros países da região, o social-liberalismo hegemonizou as sociedades nas duas primeiras décadas do século XXI.

O esgotamento do projeto social-liberal, primeiro no campo econômico, com o fim do ciclo das commodities e também do ponto de vista político, com sua linha de conciliação, levou a uma combinação rara: por um lado um desgaste maior aos olhos do povo dos governos de Cristina e Dilma, por outro, uma opção restauracionista mais clara da burguesia e do imperialismo para levar ao governo seus planos sem mediações.

O que assistimos nos dois países é uma ampliação do que o léxico da sociologia política chama de “fissura”, ou “grieta”, no seu original em espanhol. É a manifestação do que Gramsci chamava de “Crise orgânica”, uma crise capaz de abalar a capacidade de estabelecimento de hegemonia no conjunto das instituições, gerando uma crise de conjunto das representações políticas.

Uma disputa de alcance regional

A forma como os elementos da situação política no Brasil e na Argentina vão evoluir impactam diretamente na conjuntura regional. Os desdobramentos dos próximos anos nesses países vão configurar o signo fundamental na América do Sul. Após o ciclo neoliberal dos anos 90 e o ciclo do social-liberalismo, conseguirá a ala mais à direita do imperialismo lograr impor uma derrota histórica para os trabalhadores? Como o “pêndulo” da luta de classes vai resolver o impasse que se aproxima?

É impossível pensar as disputas na região sem levar em conta o embate entre China e Estados Unidos. A guerra comercial é apenas uma das facetas dos conflitos crescentes entre os dois polos mundiais. A disputa sobre território, comércio e relação prioritária atravessa o continente e chega aos dois países, onde tanto os americanos quanto os chineses estão voltados para defender e ampliar as suas posições conquistadas. Empreendimentos na área da mineração e da extração em geral, além da logística, como portos, têm atraído a presença do capital chinês. A tensão nesse tema vai seguir se dando. Por um lado os governos cada vez mais vinculados diretamente com os Estados Unidos, por outro os setores não alinhados com a hegemonia estadunidense vão buscar manter influência e poder. A relação da Venezuela com a Rússia de Putin é parte do tabuleiro.

Depois da vitória de Bolsonaro e de Duque na Colômbia, a extrema-direita levantou a cabeça. Contudo, o fracasso do macrismo, como expressão de um giro ultraliberal, levou à hipótese de um impasse. Diante do desastre que foi a gestão de Maduro, a extrema-direita alentou uma saída golpista com Guaidó e Leopoldo Lopez. Mesmo com todas as contradições da crise humanitária, a ofensiva que teve apoio em assessores de Trump foi um desastre completo. Ou seja, a linha de que a direita dura pode tudo na América Latina não se confirmou. Na América Central, as lutas voltam a marcar a conjuntura, como no caso de Honduras e Haiti, além da rebelião em curso contra o regime de Ortega.

A questão do projeto político determina também os rumos do projeto econômico. A ofensiva em prol de uma recolonização é um dos pilares da estratégia da direita local. Avançar no sentido de que os nossos países sirvam apenas como uma grande fazenda dos produtos primários, ampliando a desindustrialização.

Classe, resistência e entraves lá e cá

O processo de derrubada da ditadura militar na Argentina foi mais profundo do que o brasileiro. Por aqui, o que primou foi a transição concertada, não tendo qualquer acerto de contas entre a sociedade e os militares. Isso faz toda a diferença nos dias de hoje. A queda da ditadura na Argentina deixou uma relação de forças entre as classes que não pode ser revertida nem no auge do projeto neoliberal. A explosão popular de 2001 confirmou o que muitos chamam de “excepcionalidade argentina”, um país com alto nível de sindicalização, com um movimento popular pujante e camadas médias que discutem muita política.

O Brasil atravessa outro momento. A derrota que significou o ascenso eleitoral de Bolsonaro gerou uma situação reacionária, ainda que instável. O momento defensivo, contudo, não impede o surgimento de movimentos de rua, como o da educação.

O fato é que ambos os governos tem um plano estruturado em reformas antipovo que geram e vão gerar mais resistência. A reforma da previdência, a reforma tributária e as reformas trabalhistas. A proposta de reforma previdenciária aprovada na Argentina em dezembro de 2017 levou a um choque com o movimento popular, num cenário de greve e confrontos no centro de Buenos Aires que lembrou o levante de 2001. Foi um salto de qualidade no enfrentamento do projeto macrista e o começo da derrota de seu plano de ajustes.

O principal movimento social que marcou a sociedade argentina foi a irrupção do movimento de mulheres, em defesa do aborto legal e público, com o símbolo dos panos verdes. Foi um movimento multitudinário que, mesmo não aprovando a lei no Senado, deixou marcas profundas, sobretudo para as novas gerações de ativistas, polarizando o país contra os movimentos conservadores, ligados às igrejas evangélicas e a cúpula da igreja católica.

O movimento operário e popular dos dois países deve acertar contas com dois obstáculos para o desenvolvimento de uma consciência combativa para articular a organização popular. O primeiro deles é a luta por uma verdadeira revolução na estrutura sindical. Com diferentes aspectos, a burocracia sindical controla a vida política de parte importantes dos trabalhadores. São verdadeiras máfias incrustradas nas organizações da classe trabalhadora. Na Argentina, os líderes sindicais atuam em outros ramos como na direção de clubes de futebol. O exemplo mais grotesco é o “capo” Hugo Moyano, dirigente de caminhoneiros, ex-líder da CGT e presidente do Clube Independiente. No Brasil, as estruturas sindicais ligadas aos setores de transporte também estão cristalizadas há muitos anos, sem qualquer sinal de democracia de base e cumprindo o nefasto papel de desarmar a luta, como visto na greve geral de 14 de junho. Construir uma direção independente para o movimento operário é estratégico para os conflitos que se avizinham.

A outra questão a ser levada em conta é como dialogar sem nutrir ilusões nas correntes e partidos que já governaram e foram parte do ciclo anterior. As correntes que foram parte dos governos, que configuram o campo da “centro-esquerda”, ligadas ao Foro de São Paulo, ainda hegemonizam o movimento popular e lutam para retomar, pela via eleitoral, seu espaço na sociedade. Depois de processos judiciais, seletivos e parciais, como foi o caso da condução da Lava- Jato por Moro, ou do chamado caso dos “cadernos de centeno”, o maniqueísmo pode levar a dois erros simétricos: acreditar nos juízos de ocasião, que sem provas, utilizam mecanismos judiciais para proscrever adversários competitivos como Lula no Brasil em 2018; ou, no outro extremo, absolver as opções de classe que esse setor escolheu, não apenas como tática política, mas como método, apoiando-se na corrupção de estado para operar sua política.

Como evitar o desastre que nos ameaça

A hipótese de evitar uma regressão neocolonial passa por derrotar os planos e os governos do ajuste. A proposta do ultraliberalismo é combinar um desmonte do Estado e da Indústria nacional com regimes cada vez mais autoritários. Converter os países em protetorados do FMI é parte dessa estratégia.

É fundamental combinar o dínamo das lutas políticas sejam elas das mulheres, as lutas da classe contra as reformas, a da juventude quando se coloca em movimento. Apenas nas mobilizações e nas ruas se pode derrotar o projeto neoliberal na Argentina e no Brasil.

Em outubro, vamos ter uma nova eleição presidencial na Argentina. Macri desgastado, aposta suas fichas em mobilizar a “direita social”, numa chapa com o peronista Pichetto. Seu principal oponente é Aníbal Fernández, que leva a Cristina Kirchner como parceira de chapa. Ainda concorrem outros candidatos, sendo Roberto Lavagna a opção de centro-direita mais relevante. A oposição se divide entre projetos como o da centro-esquerda, com Fernández-Cristina, e a novidade de uma chapa mais unitária e ampla da Frente de Esquerdas.

Os acordos levados pela centro-esquerda são incapazes de oferecer uma saída contra a “jaula de ferro” do neoliberalismo. Como bem analisou o economista Claudio Katz:

“Ao colocar Alberto à cabeça da fórmula, CFK garantiu uma proposta conservadora. Todos os gestos e definições Fernández ratificaram esse caminho. O novo candidato presidencial ponderou o neoliberal Nielsen como futuro gestor da dívida, recusou-se a retomar a lei da mídia e a introduzir reformas significativas na justiça. Manteve um significativo silêncio sobre a Venezuela, emitiu declarações confusas sobre o aborto e fez várias sinalizações a dirigentes do PRO, como Monzó e Larreta”

Um novo ciclo social-liberal será incapaz de solucionar as contradições estruturais. A tarefa é forjar desde já uma alternativa política e combativa, com um programa anticapitalista e democrático. Forjar a unidade na luta, mas com um projeto e um programa independente. Nesse sentido, é muita positiva a conformação da aliança eleitoral entre a Frente de Esquerda e dos Trabalhadores (FIT) e o MST argentino, com apoio de grupos e partidos como o PSTU. Batizada de Frente de Esquerda/Unidade, depois de anos de diáspora, a esquerda radical argentina levanta uma alternativa comum entre seus maiores partidos, ficando de fora, por seu próprio sectarismo, apenas os partidos AutoDeterminação e Liberdade e o Novo MAS.

No Brasil, o desafio do PSOL é construir os caminhos para a unidade na luta, organizando todos os setores que estão em oposição a Bolsonaro, sem perder a bússola da apresentação de um projeto independente, que tenha um programa anticapitalista e combativo, como forma de contribuir para o relançamento de um projeto de esquerda latino-americano, a serviço de colocar em pé uma alternativa militante e anti-imperialista para milhões de trabalhadores.


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