A luta pela cidade é a luta de classes entre especulação e trabalho

A história da ocupação do solo urbano no Brasil está intimamente ligada ao desenvolvimento social e econômico nacionais.

Gilvandro Antunes 17 jul 2019, 12:53

Parte dessa análise é fruto do trabalho desenvolvido em ligação entre os movimentos de luta pela moradia e os mandatos parlamentares do PSOL-RS. Seja hoje contribuindo com a Frente Parlamentar em Defesa da Moradia Digna da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, presidida pela companheira e deputada Luciana Genro, seja na Comissão de Urbanização, Transporte e Habitação da Câmara dos Vereadores de Porto Alegre que já fora presidida pelo então vereador, deputado e companheiro Pedro Ruas e que hoje tem na vice-presidência nosso companheiro, camarada e dirigente vereador Roberto Robaina. Além disso, cabe destacar a luta de nossa deputada federal e ex-vereadora Fernanda Melchionna sempre presente na luta popular por moradia.

Em uma economia capitalista com sérios traços de subdesenvolvimento, marcada por uma severa desigualdade social, a questão da moradia tem sido um tema cada vez mais recorrente ao passo que dramático nas médias e grandes cidades brasileiras. A história da ocupação do solo urbano no Brasil está intimamente ligada ao desenvolvimento social e econômico nacionais. Assim, é preciso observar o (sub) desenvolvimento urbano brasileiro desde a concentração de terras no campo, passando pela escravidão urbana incipiente, pela libertação em estado de anomia social dos escravos, à proclamação da república e, por fim o tipo de desenvolvimento industrial “escolhido”.

Aqui, trataremos mais da urbanização como um fenômeno urbano industrial, bem como seus aspectos no período recente. Todavia, sabemos e, dessa forma, alertando ao leitor que os laços históricos entre o arcaico e o moderno se enlaçam contínua e contraditoriamente ao mesmo passo através do desenvolvimento desigual e combinado.

Na maior parte, ou seja, no povão, é possível caracterizar a urbanização brasileira, salvo raras exceções, como mal planejada. No entanto, quando dizemos mal planejada não falamos aqui apenas de uma falta de planejamento em si, senão fruto de um tipo de desenvolvimento urbano-capitalista dependente, com contornos essencialmente de concentração. De modo que o desenvolvimento concentrado leva, invariavelmente, a um desiquilíbrio ao acesso e qualidade do acesso à cidade.

O resultado em números é que, de acordo com dados da Fundação Getúlio Vargas o déficit habitacional no Brasil cresceu de 7% entre 2007 e 2017. Atualmente, há um déficit de 7,78 milhões de imóveis no Brasil. Para fins de aprofundamento do estudo é preciso dividir este déficit em três características: 1- ônus com aluguel 3.269,514 (quando a família compromete excessivamente sua renda com aluguel); 2- coabitação 3.227,232 (quando há mais de uma família por imóvel); 3- habitação precária (quando não há as condições básicas para moradia) 942, 631; adensamento excessivo 317,806 (quando há muitas construções precárias em um espaço reduzido).

Infelizmente, esse quadro tende a se agravar com a política econômica do atual governo e com a perspectiva de baixa recuperação da economia. Ora, com uma política habitacional basicamente regulada pelo mercado – renda, emprego e moradia são inseparáveis. O desemprego, de acordo com o IBGE, chegou em 12,5% no primeiro trimestre de 2019, atingindo 13,2 milhões de brasileiros; a renda, de acordo com a FGV/IBRE, que a partir do índice de Gini mede a desigualdade, onde de 0-1 o Brasil é 0,6257, ou seja quanto mais próximo de 1, mais desigualdade, apontou que de 2015 (início da crise aguda) a 2019, os 10% mais ricos tiveram uma alta de 3,3% na renda, enquanto as 40% mais pobres um queda de 20%. Desse modo, se vê a correspondência entre renda em queda, desemprego em alta e déficit habitacional em recorde.

A Especulação Imobiliária e a Valorização do Capital no Solo Urbano

A característica da habitação popular brasileira é conhecida pela autoconstrução, pela precariedade e pela irregularidade. Foi assim que milhões de brasileiros saíram do campo para uma das mais aceleradas urbanizações do século 20. De modo que em 1940 a população urbana era de 31% e em 2010, 84% de acordo com o IBGE. Nesse período o país viveu a grande maioria do tempo sem nenhuma política habitacional ampla e nacional. Aqueles que, por pertencerem a um extrato baixo ou médio da classe média, conseguiram adquirir a casa própria o fizeram às custas de grandes e largos endividamentos. Aqueles que não conseguiram foram para a irregularidade e toda a sorte que ela traz. Soma-se a isso o peso do capital no solo urbano. Através da especulação imobiliária, o metro quadrado sobe e seu valor se expande para áreas cada vez mais distantes das áreas centrais. De modo que as famílias de baixa renda são cada vez mais empurradas para onde não há cidade. A urbanista e livre docente da USP, Raquel Rolnik, constantemente atenta para o fato das remoções estarem intimamente ligadas aos interesses da acumulação de capital.

Aliás, o geógrafo marxista David Harvey, é enfático da necessidade do capitalismo se expandir através do constante realinhamento do desenho urbano. A China é o exemplo mais enfático de desse redesenho, onde cidades inteiras são destruídas e cidades inteiras são construídas, através do máximo planejamento e da mínima democracia, onde a palavra usada pela grande imprensa para isso é a eficiência. Essa palavra, não raro, foi usada diversas vezes durante as Olímpiadas de Pequim. Aliás, os países conhecidos como emergentes, nome dado antes da crise capitalista mundial, foram os principais agentes quando falamos em redefinição espacial urbana. Os megaeventos esportivos, de acordo com apontamentos de Raquel Rolnik, formam uma mistura de financeirização da moradia e violação dos direitos humanos, e foi justamente nos BRICs que este fenômeno foi mais acentuado. Assim, ao redesenhar-se o espaço urbano excluiu-se os mais pobres, evidenciando-se mais uma vez uma modernização seletiva, concentradora e violadora.

Desse jeito, a moradia passa cada vez mais ser mercadoria e capital e, assim, tende como capital a ficar cada vez mais concentrada em grandes grupos econômicos que podem redesenhar a cidade. Como mercadoria, a moradia está sujeita a todas as flutuações e variações tais como oferta e procura. Não é à toa que as crises imobiliárias tem tido cada vez mais influência na crise global, vide as hipotecas norte-americanas. Como mercadoria, a moradia também sofre com a superprodução de imóveis, o que, por consequência, leva a perda de ativos por parte das empresas e desemprego por parte dos trabalhadores. No caso brasileiro, vivemos uma grande retração econômica desde o fim do primeiro mandato da presidenta Dilma, retração essa que se aprofundará no governo Bolsonaro. Sabe-se que a aquisição de imóveis se faz com acesso a crédito bancário em larga escala. O modelo brasileiro é feito da busca e concessão de crédito de forma individual. Assim, depende muito da renda e do emprego. Se há queda numa e aumento noutro o crédito se restringe e os juros aumentam. Se há muita mercadoria em oferta para pouca demanda há a quebra do sistema. Isso não só nas classe populares, pois essa historicamente estão praticamente alijadas do sistema comercial imobiliário. Mas a classe média também é afetada pela queda na renda e o desemprego, ainda que em menor grau. Muitas empresas recorrem ao mercado de moradias de luxo. No entanto, esse é um ramo ainda mais concentrado, tanto na oferta quanto na demanda.

Desse modo, especulação e valorização do capital imobiliário, antes tão necessários um para o outro se tornam antagônicos diante da crise financeira e da queda da demanda. De modo que a especulação em tempos de crise emperra a produção e a circulação, devido ao conflito conjuntural entre o comércio e a produção dos bens imóveis.

No meio da crise e deste conflito momentâneo está o povo que foi excluído da modernização urbana e tempos de bonança, através da especulação, que inflacionou os preços do e no local de moradia, e das remoções e reintegrações, que buscam um redesenho urbano sem a presença dos “não desejáveis”, ou seja, aqueles que não podem pagar pelo custo do “progresso”.

O Brasil teve somente dois planos nacionais de habitação, ambos amplamente questionados: BNH e Minha Casa Minha Vida. O Banco Nacional de Habitação pretendia ser um plano ousado de moradia, que serviria para, politicamente, legitimar a ditadura perante uma parcela significativa dos trabalhadores. Entretanto, como afirma Guilherme Boulos em seu livro Por Que Ocupamos? Fracassou:

“As iniciativas do BNH voltadas aos mais pobres – seja no caso dos projetos de desfavelização no Rio de Janeiro ou no caso das COHABs – resultaram em fracassos estrondosos. (…) Não havia praticamente nada de subsídios, isto é, o valor completo do imóvel tinha de ser pago ao mutuário do programa. Além disso, as prestações eram elevadas e seguiam as normas do crédito bancário privado. (…) Ou seja, o BNH FINANCIOU CASAS PARA A CLASSE MÉDIA e não para os trabalhadores mais pobres, que, como vimos, representam 90% do déficit habitacional” (págs. 37 e 38).

Raquel Rolnik, em seu livro A Guerra dos Lugares, caracteriza o BNH como um jogo de interesses entre bancos, empreiteiras e o governo da ditadura militar (pág. 3012).

O outro programa, Minha Casa Minha Vida, foi lançado no final do segundo mandato do presidente Lula, coordenado pela então chefe da Casa Civil Dilma Roussef. O MCMV manteve a mesma lógica de interesse entre bancos (nesse caso mais a Caixa Econômica Federal), empreiteiras e o governo (democraticamente eleito). O MCMV estabeleceu faixas de renda para estipular subsídios 1,2, e 3. Além do MCMV Entidades, destinado a cooperativas e entidades populares, mas que representaram apenas 1% das unidades habitacionais. Na faixa 1, para renda familiar até R$ 1.600,00, a habitação era quase totalmente subsidiada. Já para faixa 2, que vai de R$ 1.601,00 a R$ 3.100,00, a o subsídio vai até R$ 23 mil ou 20% do valo do imóvel. Para a faixa 3, até R$ 5 mil, só há garantia para financiamento mais baixo, portanto, sem subsídio. Nesse sentido, Raquel Rolnik adverte:

“Não há dúvida que o setor imobiliário e, especialmente, as incorporadoras financeirizadas e seus investidores foram altamente beneficiados pelo programa, já que este não só os salvou da derrocada, como impulsionou o valor de suas ações. Realizados seus lucros, essas grandes empresas, que foram as que mais lançaram unidades no programa em sua primeira fase, começam lentamente a deixa-lo na fase 2, voltando-se para os seus nichos mais tradicionais de mercado. De qualquer forma, impulsionado pelo programa, o crédito habitacional passou de 1,55% do PIB do país, em 2006, para 3,48% em 2010 e 6,73 em 2013.”

(Rolnik, Raquel, A Guerra dos Lugares, págs. 305 e 306)

Ou seja, ainda que o MCMV tenha tido um plano para abarcar mais as classes populares do que o BNH, sua lógica foi a de gerar lucros às empreiteiras, até então grande financiadoras de campanhas eleitorais. Além disso, as metas ficaram muito aquém das expectativas, sobretudo na faixa 1, ou seja, dos mais pobres. A verdade que de um plano ousado o MCMV contribuiu muito pouco para a redução do déficit habitacional. Absorvido pela lógica de proporcionar lucros para empreiteiras o MCMV não resistiu às crises política e econômica.

O Povo é Empurrado para Onde Não Há Cidade

A especulação imobiliária, que é comandada por grandes empresas do ramo imobiliário, tanto na produção quanto da circulação, define como e onde será o redesenho do espaço urbano. Definir o desenho do espaço urbano é redefinir o uso do seu solo, em última instância onde e como haverá cidade. Assim, quem são as classes que terão acesso pleno ou não à cidade. Entenda-se cidade como um território urbano composto por moradia, serviços públicos e privados, com milhares ou milhões de pessoas interagindo entre si e com o espaço em si. A cidade é “planejada” pelo capital, de modo que este investe um tanto de capital e espera um tanto a mais na forma de lucro. Sendo assim, é preciso excluir os que não darão lucro na forma de aquisição da mercadoria imóvel, embora deem muito lucro na forma de mais-valia empregando trabalho assalariados na produção deste bens imóveis inacessíveis aos trabalhadores, como dissera o cantor Zé Geraldo na sua música Cidadão:

“Tá vendo aquele edifício moço?
Ajudei a levantar
Foi um tempo de aflição
Eram quatro condução
Duas pra ir, duas pra voltar
Hoje depois dele pronto
Olho pra cima e fico tonto
Mas me chega um cidadão
E me diz desconfiado, tu tá aí admirado
Ou tá querendo roubar?

(…) Fui eu quem criou a terra
Enchi o rio fiz a serra
Não deixei nada faltar
Hoje o homem criou asas
E na maioria das casas
Eu também não posso entrar”

Vejamos, se, por um lado a cidade é definida por grandes corporações, por outro lado, esses agentes financeiros são protegidos pelos governos. Há dois tipos de ocupações urbanas: em terras privadas e em terras públicas. Notadamente, tanto a iniciativa privada, como os governos se empenham na especulação de suas terras. Elas ficam paradas, em situação de abandono, esperando a chegada de investimentos públicos. Quando estes chegam, são vendidos a grandes empresas. Muitas terras abrigam milhares de famílias que acham que finalmente alcançaram o sonho da casa própria, ainda que de forma precária. Não obstante, a cidade vai chegando e seu sonho acabando. O fato é que mesmo nas terras públicas, age-se com a mesma frieza e crueldade com os pobres. Às vezes para a pura especulação em terras públicas, mas também porque o governo, por burguês que é, precisa dar o exemplo de como se trata os pobres, pois se assim não o fizer pode demonstrar a seus amigos empresários que está do outro lado que não o dos negócios e lucros. Aqui na cidade de Porto Alegre, onde nossa experiência é mais cotidiana, vemos que o Estado, o município e a União não hesitam em pedir imediatamente a reintegração de posse do imóvel ocupado. Não importando para onde vão as famílias. Não raro, vê-se ocupações em áreas do município que estão abandonadas por mais de uma década que, mesmo sendo revitalizadas pelos ocupantes, são reintegradas e as famílias sendo jogadas na rua mesmo no mais severo inverno gaúcho, desrespeitando qualquer entendimento básico de direitos humanos. Foi assim nas ocupações Lanceiros Negros e Baronesa e é assim todos os dias em terras públicas ou privadas.

A lógica especulativa de definir a cidade empurra as pessoas para onde não há cidade. Como argumento usa-se a ilegalidade dessa pessoas ao ocupar o solo urbano de forma irregular. Todavia, ao desalojá-las o poder público através do poder executivo, do poder judiciário e da polícia jogam ainda mais as pessoas na condição de marginalidade.

O Direito à Cidade e a Luta de Classes

Os movimentos de luta por moradia existem em todo o lugar em que haja déficit habitacional. O que há, como em qualquer frente de atuação, desníveis de organização, não só definidas pelo movimento, mas também pelas correlação de forças geral na política, seja se há sindicato forte ou não na cidade, parlamentares de esquerda ou não, tradição de luta social, etc. Mas sempre há movimento. Sempre há lideranças. Assim, não há só classes que estão no meio da redefinição do espaço da cidade, mas luta de classes. Há a luta de quem quer lucrar com o espaço urbano contra quem quer que o resultado de seu trabalho lhe garanta o acesso à cidade, à moradia digna, etc. Portanto, a luta de classes é e sempre será o cerne da questão urbano capitalista, de um lado o capital e de outro o trabalho. É por saber da força que pode ter a massa popular que a burguesia, na sua forma política através de suas instituições, deslegitima a luta ao afirmar que os ocupantes são marginais, que são desordeiros, que são contra o progresso, etc. É bem verdade que dentro das próprias instituições burguesas há brechas. Os juízes, políticos, promotores, etc. são em sua grande maioria contra o povo. Mas nem todos, e deve o movimento se apoiar sobretudo nas suas próprias forças, mas não pode ao mesmo tempo ser sectário, autoproclamatório ou ufanista. Deve saber se unir nas brechas que se abrem.

O PSOL hoje é o partido que mais tem identificação com a luta pela moradia. Ainda que não tenha a maior influência sob o movimento. Mas por ser parte de uma nova esquerda e não estar comprometido com a garantia de lucros por parte daqueles que especulam sobre o espaço urbano pode crescer muito nessa luta, respeitando a autonomia do movimento, ao mesmo tempo que não se furta de disputar os rumos dessa ação tão importante. É preciso lutar ao lado de movimentos como o MTST, MNLM e tantos outros mais espalhados pelo país. Sem diluição e sem sectarismo.

É preciso organizar melhor essa luta dentro do PSOL. Não só com setorial popular ou algo similar. Mas participando da luta concreta desses locais populares. Organizando, propondo alternativas. Nas ocupações urbanas residem todos os resultados dos efeitos das contradições do capitalismo dependente, quais sejam, a violência, a falta de infraestrutura, a baixa escolaridade, a exiguidade de renda, o desemprego, etc. Lá vive-se o drama social nu e cru. Ao passo que lá pode-se ter um lugar permanente de mobilização do povo pobre.

Viva a luta pela moradia!


Referências

  1. BOULOS, Guilherme – Por Que Ocupamos. Ed. Autonomia Literária, 2014, 3ª ed. São Paulo.
  2. ROLNIK, Raquel – Guerra dos Lugares. ed. Boitempo, 2015, 1ª ed. São Paulo.
  3. IDEM – https://raquelrolnik.files.wordpress.com/2009/08/esperancaemmeioaocaos.pdf
  4. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
  5. Fundação Getúlio Vargas.
  6. Fundação João Pinheiro.

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