À Negritude da Dama Negra, a pioneira Ruth de Souza
Dona Ruth foi pioneira, como mulher e negra, deixou um legado na dramaturgia brasileira que memora uma carreira de mais de 70 anos.
No dia 12 de maio de 1921, nascia na periferia do Rio de Janeiro, aquela que viria a ser um dos maiores patrimônios artísticos que este país já produziu, Ruth de Souza, que neste domingo (28), nos deixou no auge dos seus belos 98 anos (1921-2019). Dona Ruth foi pioneira, como mulher e negra, deixou um legado na dramaturgia brasileira que memora uma carreira de mais de 70 anos. Sua história, trajetória e referência serão lembradas e contadas por muitas gerações.
A “Dama Negra” da televisão, como era lembrada, não só era pioneira como mulher negra na dramaturgia, mas também foi a primeira brasileira a concorrer a um prêmio internacional de cinema, em 1954, diga-se de passagem: um dos prêmios mais importantes do cinema da época. Ruth também foi a primeira atriz negra a se apresentar no Theatro Municipal do Rio em peça organizada pelo Teatro Experimental do Negro (TEN), quando as barreiras do necessário e do proibido estavam sendo quebradas.
“Esse negócio de que eu abri caminho eu acho engraçado, acho engraçado porque eu não tive intenção. Eu queria trabalhar e eu sozinha não sabia que não tinha outras pessoas. Não percebi que eu estava fazendo sozinha. […]” (RUTH DE SOUZA, 2017)
Amiga de Haroldo Costa, de Grande Otelo, Solano Trindade, de Léa Garcia e tantas e tantos outros, Ruth influenciou uma geração de artistas e continuará a influenciar. Como dizia, “uma grande vantagem do ator é poder fazer um trabalho que, se for bom, o público não esquecerá.”
Ruth fez parte atuante da geração que iniciou o processo de ressignificação do que é “ser negro” no Brasil. Geração cujo o Teatro Experimental do Negro foi um dos principais articuladores. Para Domingues (2009) na medida em que adquiriu projeção, o TEN deixou apenas de desenvolver uma dramaturgia negra brasileira, adotando a afirmação dos valores negros pelo qual a construção ideológica da negritude foi a base da expressão do pensamento dos seus ativistas.
Valendo-se, então, das formulações da négritude francesa a afirmação artística do TEN trazia uma valorização da africanidade e seus traços culturais como elementos centrais da cultura brasileira, uma positivação do ser negro e uma dramatização dos efeitos do racismo. Ruth, como partícipe ativa desta época, disse Joel Zito Araújo, que o TEN já seria grande e significativo – sem fazer política, sem buscar educar os nossos, sem lutar contra o racismo, sem absolutamente ter feito nada do que fez – apenas por ter tido a oportunidade de ter uma Ruth de Souza.
A geração de Ruth foi a que teve de provar que o
negro podia ser ator, porque em alguns ramos da arte como a música, a dança e
poesia já existam. “Atores dramáticos ninguém conhecia”, disse em certa
entrevista, e o que fizeram “foi um espanto”, isto é, abalaram as estruturas ao
posicionar a inserção do negro na dramaturgia, e foram além: não bastava apenas
serem pioneiros, condenarem a alegoria da black
face, mas também questionaram os próprios papéis atribuídos aos negros na
dramaturgia que montavam a necessidade de ultrapassar as limitações dos
estereótipos negativos da população negra.
“Muitas vezes eu arrisquei meu trabalho porque eu cobrava. Uma vez eu perguntei se negro não tava no céu, porque tinha uma novela que tinha céu e inferno. O céu tava todo bonitinho, tudo branco, até cavalo branco tinha; no inferno tudo escuro. Aí eu disse ‘ué, negro não vai pro céu, não?’, aí falaram ‘Ruth, você tem cada ideia’, aí eu falei ‘não, porque é verdade. Até cavalo branco tem’. No dia seguinte convidaram Léa Garcia para ir pro céu.” (RUTH DE SOUZA, 2017)
Se Abdias Nascimento e Guerreiro Ramos foram importantes expressões com seus escritos no período, Ruth de Souza, sem nenhuma dúvida, foi a corporificação do movimento da négritude em negritude brasileira, a condensação prática da reconstrução da identidade negra. Seja pelo seu pioneirismo em todos os sentidos, seja pela prática que balizava seu talento.
A negritude mais do que a base de uma filosofia de vida, também era um modo de resposta ao racismo sofrido pelos negros em ascensão social, o obstáculo que colocava na ordem do dia a libertação da vergonha de assumir sua condição racial. Nesse sentido, conforme Abdias Nascimento (1980), combatia as bases do complexo de inferioridade e permitia materializar o processo para uma emancipação plena que não aceitava a adaptação como mandamento inelutável, mas as bases para condenar o colonialismo e o racismo e construir um projeto coletivo para o futuro. Nas palavras de Guerreiro Ramos (1995), a afirmação da negritude representava uma propedêutica sociológica, isto é, a base de ensinamentos preliminares para a compreensão da vida, de uma hermenêutica para entender o Brasil.
A negritude de Ruth era o alicerce de sua prática. Que via na reinvenção de si hasteada na representação de seus personagens nos palcos e telas a materialização da reinvenção do negro e de nossa história. Via na atuação uma forma de positivar seu povo. Em sua arte via a brecha de um ativismo artístico, marcadamente político, que permitisse a reconstrução de imagens não estereotipadas do ser negro, e sobretudo, mulher negra. E que entendia sua negritude como uma posição intelectual para compreender a realidade vivida pelas maiorias. E como a primeira, construiu as possibilidades de ser única com o seu talento, mas de jamais ser a única.
Ruth de Souza será lembrada sempre como um de nossos maiores patrimônios. Não há como falar do Teatro Brasileiro sem citar e lembrar do nome de uma de suas mais importantes e talentosa estrela: a Dama Negra.
Da vida direto para a história.
Obrigado por tanto!
DOMINGUES, P. J. (2009). Movimento da negritude: uma breve reconstrução histórica. África, (24-26), 193-210.
GUERREIRO RAMOS, A. (1995). Introdução crítica à sociologia brasileira. Editora UFRJ.
NASCIMENTO, A. (1980). O quilombismo. Vozes.
RUTH DE SOUZA (2017). Ruth de Souza – Sobre ser quem se quer ser. Homenagem à atriz Ruth de Souza. AncineGov, vídeo.