Bauhaus, cem anos

Devemos à Bauhaus e sua trajetória desde temas simples, como a cadeira moderna onde sentamos até os princípios básicos da geometrização.

Israel Dutra 26 jul 2019, 17:14

Publicamos a seguir, na íntegra, o manifesto fundacional da Bauhaus, escrito por Walter Gropius. O surgimento da Bauhaus significou um marco que revolucionaria para sempre a arte, o design moderno e a arquitetura.

Recentemente celebramos duas efemérides fundamentais para a História da Arte, entrelaçadas com a própria ciência. São os 500 anos da morte de Leonardo da Vinci, que, muito além de pintor, foi um dos grandes artistas capazes de condensar o espírito do tempo. Numa escala tão importante quanto os feitos de Leonardo, porém mais próxima e contemporânea, enquadramos a celebração dos cem anos de fundação da Escola Bauhaus. Acreditamos que ambas as recordações contêm um impulso criativo, parte do avanço universal da condição humana na arte. Aqui, queremos tratar um pouco do histórico e das questões mais importantes relativas à Escola Bauhaus, fundada em Weimar, em 1º de abril de 1919.

Inaugurada como escola de desenho, arte e ofícios e idealizada por Walter Gropius, foi fundada na cidade alemã de Weimar a “Staatliches Bauhaus”, a “Casa de construção estatal”, com o objetivo de superar a destruição causada pela I Grande Guerra e abrir um novo paradigma unitário entre a arte o fazer prático.

Devemos à Bauhaus e sua trajetória desde temas simples, como a cadeira moderna onde sentamos para estudar ou trabalhar, até os princípios básicos da geometrização, presentes nos dias de hoje em fontes de letras como a “Arial” e a “Times New Roman”, graças ao trabalho do tipógrafo Herbert Bayer. Utensílios práticos como os talheres que utilizamos todos os dias também tiveram lugar de destaque na forja da Bauhaus. 

A Bauhaus precisa ser entendida no contexto dos anos decisivos de 1918 e 1919, quando termina a Primeira Guerra e se abre uma situação revolucionária na Alemanha, sob o impacto da Revolução Russa. No mundo pop contemporâneo, é possível observar sua influência no expressionismo no cinema e na banda musical inglesa que seria batizada com o nome da Escola. Há também a estética dos escoceses de Franz Ferdinand, referidos diretamente pelo legado da Bauhaus.

1918-1919: uma viragem de proporções maiores na história

A data fundacional da Escola Bauhaus envolve um contexto amplo: uma Alemanha despedaçada pela guerra, uma Europa envolvida em convulsões sociais e o florescimento de novas vanguardas artísticas.  A viragem dos anos 1918 e 1919 transformaria por completo a paisagem europeia.

Após anos de desenvolvimento contínuo das forças produtivas entre os séculos XIX e XX, a Alemanha alcançou significativo progresso, por meio do qual combinou conquistas e garantias para os trabalhadores com a conservação das forças autocráticas do império do Kaiser. O alarme da guerra, em 1914, soou, alterando substancialmente a realidade. Com o advento do imperialismo, a repartição do mundo entre as potências, o desenvolvimento das forças produtivas encontrou seu primeiro grande entrave. A eclosão da guerra levaria milhões à morte nas trincheiras e seria um voo mortal para os impérios seculares da Europa. Para os Romanov na Rússia e os Hohenzollern alemães, era chegada a última hora.

O momento histórico anterior à deflagração da Grande Guerra parecia indicar o contrário. O cenário da primeira década do século XX na Alemanha era alentador. Direitos e conquistas no mundo do trabalho regulavam a vida de milhões, que começavam a ter maior acesso à escolarização e à cultura, levando a uma liberação rápida e concentrada de energias populares. A social-democracia, os sindicatos e os clubes operários eram os portadores da esperança de um novo tipo de sociedade. O choque da guerra imperialista solapou a esperança de milhões e interrompeu a “marcha aparente” ao progresso.  Da manhã à noite, centenas de milhares eram enviados aos fronts.

A Grande Guerra foi um palco da destruição em massa, como nunca antes visto. A social-democracia alemã, como polo avançado do pensamento, capitulou ao sentimento de “unidade nacional” e votou a favor dos créditos de guerra. Isolado, porém altivo e corajoso, Karl Liebknecht proferiu seu famoso voto contrário à adesão do SPD para a linha de guerra.  Aquele voto foi o ponto de inflexão na luta revolucionária. Em seguida, o movimento operário se dividiria entre os social-imperalistas, como seriam chamados os defensores da linha majoritária no SPD, e os internacionalistas que realizariam sua conferência internacional em Zimmerwald, na Suíça.

Em 1917, as revoluções de fevereiro e outubro destruíram o antigo regime czarista na Rússia, colocando os trabalhadores, por meio de seus organismos (os sovietes) e o seu partido (comunista/bolchevique) no poder.  A revolução russa foi um abalo sísmico nas estruturas de poder, enfrentando o imperialismo e a guerra. Um novo tempo histórico acabava de nascer.

O final da Grande Guerra abriu a brecha para a revolução social na Europa. Após a tomada do poder na Rússia, 1918 era o ano da Alemanha. O levante iniciado na Baviera se estendeu por toda a Alemanha, chegando aos combates sangrentos de Berlim e levando à proclamação da República em novembro. A ala esquerda do movimento, representada pela corrente espartaquista, enfrentou a aliança informal entre a social-democracia e as milícias da extrema-direita, os Freikorps. O assassinato covarde de Karl Liebknecht e de Rosa Luxemburgo em 15 de janeiro de 1919 encerrou o capítulo dessa agitação de forma trágica. A social-democracia foi cúmplice da ação da extrema-direita para manter a suposta “legalidade” da democracia burguesa. Meses mais tarde, se levantaria, como projeto inovador, a Escola Bauhaus em Weimar. A mesma cidade que abrigaria a famosa constituição que representou inúmeras medidas democráticas de avanço diante do regime do Kaiser e foi, entretanto, a expressão do desvio da revolução operária defendida por Rosa e Karl.

A Bauhaus iniciaria seus esforços para dar um sentido de construção após os anos de destruição da guerra.  O espírito coletivo era a antítese da própria guerra. Assim começou a Escola em seus primeiros anos. Sua metodologia consistia em unificar o aprendizado ao trabalho; a prática associada à teoria; a visão intelectual ligada à operação manual. Assim, com estudantes e professores empregando matérias simples como metal, madeira, vidro e tecidos, se construía a “catedral do futuro”, como logo foi apelidada a experiência.

O impasse da sociedade alemã estava longe, contudo, de ser resolvido. A estabilidade prometida pelo governo social-democrata era efêmera. O não esmagamento das milícias armadas da extrema-direita, as Freikorps, cobraria um preço caríssimo para toda a sociedade. Anos depois, na sua forma recalcada, esses elementos irromperiam num cenário de luta entre revolução e contrarrevolução.

As vanguardas europeias

Em correspondência à ebulição social, o “salto criativo” do período na esfera das artes foi colossal. Com o final da Primeira Guerra, temos um novo amálgama das tendências e vanguardas subterrâneas que já vinham aportando a novas formas de criação e de arte. Em toda a Europa apareceriam diferentes correntes artísticas como o dadaísmo, o expressionismo, o surrealismo e o modernismo.

A experiência russa trouxe avanços nesse terreno, entre os quais se destacou o chamado “construtivismo”. Com o apoio direto de Lênin, que assinou seu decreto fundacional em 1920, a Vkhutemas (Escola Superior de Arte e Técnica) foi uma escola estatal pioneira na unidade entre o “artístico” e o “tecnológico” e teve centenas de alunos destacados, atraindo a vanguarda artística de todo o planeta, relacionando-se com influências mútuas com o grupo da Bauhaus. Nomes de vanguarda como Rodchenko, Lissistzky, Vladimir Essenin e Maiakovsky influenciaram o novo fazer da arte de então. O genial Wassily Kandinsky seria a ponte concreta entre a vanguarda russa e a Bauhaus, sendo convidado por Gropius para somar-se ao time que tinha Albers, Bayer, a brilhante escultora Marianne Brandt, Moholy-Nagy e o ícone da pintura, Paul Klee.

Gropius cultivou relações antes da fundação da Bauhaus, tendo feito parte do escritório do lendário arquiteto Peter Beherns e atuado na organização da “Associação Alemã de Artesãos”, fundada em 1907 por um grupo de arquitetos, designers e empresários alemães que tinham estado, de alguma maneira, ligados ao Jugendstil, ou a “Arte Nova Alemã”.

A instalação da casa-escola em Weimar foi o ápice desse processo. A exposição de 1923, inovadora, a partir da “Casa an horm” foi um marco internacional. A partir dali, a universalidade da arte seria a marca mundial da Bauhaus, com móveis e decoração de interiores unindo artesanato e indústria, design e desenho industrial, além de forte corrente pedagógica. Isso sem mencionar o papel que teve no teatro e no ballet, com Oskar Schmller produzindo obras como o “Ballet Triádico”.

O impacto no Brasil

A dinâmica mundial chegaria ao Brasil alguns anos mais tarde, combinando elementos particulares interessantes. A influência do modernismo nas artes deu a tônica no período de urbanização e industrialização do país. O salto nas forças produtivas impactou as grandes cidades que ganharam volume, novas ferramentas de comunicação e ampliação de seus meios de transporte. Esse novo Brasil foi o terreno propício para o surgimento da vanguarda modernista que acabaria por corresponder, a seu modo, às influências europeias. 

Podemos afirmar que nosso “1919” foi o ano de 1922. Naquele ano, em conjunto com os preparativos da celebração do primeiro centenário de nossa independência, eclodiram poderosos movimentos sociais como o tenentismo e a continuidade das greves operárias. Também houve marcos importantes como a fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB) e a realização da Semana de Arte Moderna, ocorrida em fevereiro daquele ano em São Paulo. 

Mais do que um evento em si, a Semana de Arte Moderna, realizada entre 12 e 18 de fevereiro no Teatro Municipal com direito a concerto de Villa-Lobos, inaugurou uma nova fase na relação entre as artes e a sociedade no Brasil. O encontro das vanguardas para celebrar o modernismo foi um marco no tipo de produção artística nacional. Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Mario de Andrade, Anita Malfatti, entre outros, seriam os personagens dessa geração precursora nas artes. Vale a longa citação, num artigo de Ramos, da conferência proferida por Mário Pedrosa em 1952 sobre a Semana:

Sucessivamente ele vai-e-vem entre a análise de suas especificidades e a sua inserção em horizontes mais amplos. Logo após situar o tema, dedica-se a mostrar que o modernismo brasileiro conservou desde o princípio uma ligação com o que se processava na Europa – mas sem que ocorresse uma importação mecânica, e sim uma inspiração (uma “contaminação”). Depois se aprofunda em um evento específico, que é o impacto da exposição de Anita Malfatti entre os primeiros modernistas. Depois de uma análise esmiuçada dos desdobramentos do modernismo brasileiro em torno dessas experiências, ocupa-se em discutir uma questão de alcance amplo: a associação do modernismo brasileiro à busca de um fundo de universalidade antenado com o que se produzia na comunidade artística europeia.

A relação com a arquitetura viria a se desenvolver por nomes como Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e Lina Bo Bardi. Lúcio seria o principal arquiteto da escola modernista e, em parceria com Niemeyer colocaria em ação a construção de Brasília. Lina Bo Bardi, italiana que chegou ao Brasil em 1946, deu continuidade às experiências modernistas, sendo responsável pelo projeto do MASP, pela “Casa de Vidro” e por dezenas de obras pelo país. 

A extrema-direita é inimiga mortal da arte

A história da Bauhaus está marcada pela perseguição da extrema-direita. Seguindo sua vocação de corresponder no plano artístico às intensas contradições e lutas sociais, os anos 20 foram marcados pela luta entre a afirmação da Bauhaus e um combate sem tréguas do nazi-fascismo. A polarização levou a Bauhaus se radicalizar. Um forte contingente de alunos influenciados por ideias igualitárias aderiria ao Partido Comunista. Um grupo sólido de feministas, como Lucia Molohy e Anni Albers, radicalizava o discurso do novo lugar da mulher na sociedade. A luta das mulheres na Escola foi uma constante, apesar das posições, por vezes atrasadas, dos próprios diretores. Isso para não mencionarmos sua diversidade cultural exemplar, já que contava com uma quantidade de judeus, húngaros e ciganos.

A segunda fase da Bauhaus representou essa transição. Gropius partiu para o exterior e escolheu em seu lugar o arquiteto engajado e comunista suíço Hannes Meyer. A sede se translada para a cidade operária de Dessau. Meyer constrói um ambicioso projeto de habitação popular, a partir dos anos 20, combinando o rigor dos adornos e a beleza dos móveis com sua utilidade prática destacada. Móveis e utensílios voltados para as famílias trabalhadoras eram o centro de sua preocupação. O crescimento da polarização e o combate da extrema-direita contra a Escola marcam a virada da situação alemã.

As autoridades pressionaram a direção da Escola a demitir Meyer e acirram a perseguição ao ativismo dentro da Bauhaus. Iniciava-se uma nova e derradeira fase. O novo diretor, Von Der Rothe, apesar de exímio artista, tinha como estratégia diminuir o nível de conflitos políticos. A nova sede seria uma antiga fábrica em Berlim.

O recuo por parte da nova direção levou a uma defensiva, no auge da crise, no momento em que a chegada ao poder do nazismo, em 1933, representou o final trágico da experiência. Combatendo Bauhaus como um antro de “marxismo cultural”, parte de seus integrantes foram presos e/ou deportados. Gropius e alguns se exilam nos Estados Unidos. Centenas dos que passaram pela Bauhaus foram torturados, mortos e enviados a campos de concentração.

A extrema-direita é inimiga da arte. O desenvolvimento de características repressivas é parte da condição fascista, simbolizada pelo homem médio frustrado. Um século depois, as ações de grupos conservadores em nosso país, vistas no fechamento de exposições como do Queer Museu, lembram bastante a repressão que o fascismo alemão utilizou contra as escolas de arte e universidades em toda Alemanha.

O Anjo da História

O nazismo não conseguiu destruir a Bauhaus e seu legado. Nagy, discípulo de Gropius, fundou em Chicago a Nova Bauhaus. A experiência da escola alemã mudaria para sempre o sentido artístico da arquitetura e do design. A inovação da arte e seu sentido criador deixaram os alicerces da arquitetura moderna, presente em todo o século XX. A luta pela emancipação humana, num ensaio geral de uma vida sem alienação, foi interrompida pela ação política dos elementos mais atrasados da sociedade, o polo contrarrevolucionário – no caso alemão, dirigido por Hitler e pelo partido nazista.

A imagem dessa disputa, para além do tempo, pode ser entendida na referência de Benjamim ao “Anjo da História” na obra de Paul Klee, um dos maiores nomes que habitou a Bauhaus. O tempo presente nos coloca problemas novos. Mas recupera contradições não resolvidas: a ampla independência da arte e do impulso criador só poderá ser conquistada com a derrota por completo da contrarrevolução e dos seus representantes ao longo da História. Cem anos depois, a Bauhaus é viva como ato e ideia.

Este artigo faz parte da edição n. 13 da Revista Movimento. Compre a revista aqui!


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