Genocídio da população negra no Brasil: um debate acerca das tarefas de organização

Sobre o genocídio da população negra e dos desafios de organização da negritude.

Carla Zanella 23 jul 2019, 16:41

A recente divulgação do Atlas da Violência no Brasil, demonstra que 131 anos após a abolição da escravidão, o Brasil segue naturalizando o assassinato estatal do corpo negro, utilizando-se de dispositivos legais como política de distribuição racional da morte, que permanece vitimando a população periférica e negra. O relatório, elaborado com registros oficiais do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde (SIM/MS), aponta que 75% das vítimas de homicídio no País são negras, maior proporção da última década. Um dado escandaloso para um país que constitucionalmente considera racismo um crime imprescritível e inafiançável.

Entender o racismo enquanto estrutura social essencial na manutenção do sistema é fundamental para a compreensão do porquê um país formado por 55% de pessoas negras não está em ebulição ao tomar conhecimento do genocídio da sua população. Em seu livro O Que é Racismo Estrutural? Silvio Almeida, aponta que é preciso observar o racismo enquanto processo histórico e político para o entendimento da sua marca estrutural. Histórico pois se manifesta tanto de forma circunstancial e específica, como está em constante conexão com as transformações sociais; e político porque, como processo sistêmico de discriminação que influencia a organização da sociedade, depende de poder político, caso contrário, seria inviável a discriminação sistemática de grupos sociais inteiros. (pág. 40,41).

Para o autor o Racismo é uma tecnologia de poder, onde, entre outras coisas, através da ideia da construção de uma unidade Estado, práticas de reprodução de dominação são estabelecidas através de padrões, normas e regras de comportamento, boa parte deles determinados conforme raça e gênero, e, dessa forma, é naturalizada a exclusão dos indivíduos que não se encaixam. Assim o Estado Brasileiro institucionaliza o racismo, essa tecnologia de poder complexa que faz com que não se questione as circunstâncias econômicas e políticas que mantém as periferias majoritariamente negras e que trata como normal a morte violenta da parcela que é ampla maioria da população, e, portanto, com condições reais de cumprir um papel revolucionário. Amparado nos conceitos Achille Mbembe de Necropoder, Silvio Almeida, expõe que o poder já não mais se faz pela capacidade de fazer morrer e deixar viver, mas de uma forma mais sofisticada, hoje o poder é expresso através da possibilidade de fazer viver e deixar morrer.

Mais do que não criar políticas de combate ao racismo, o estado brasileiro estabelece a relação positiva com a morte do outro. A narrativa das guerras às drogas, do inimigo interno a ser combatido, é a desculpa ideal para o genocídio do povo preto e pobre, para a marginalização das periferias e para a maior precariedade da vida do povo. É um instrumento de controle, mantido sobre a justificativa de manter uma sociedade saudável.

Como a Atlas apresenta dados oriundos do sistema de saúde, não é possível apontar quem está do outro lado do gatilho, mas não é difícil prever, seja nas disputas territoriais do tráfico de drogas, seja pela seletividade policial, e seja pelo fato de uma parcela significativa dos policiais que estão na linha de combate também ser negra, a chance de quem puxa o gatilho ser outro homem negro é alta. O racismo enquanto tecnologia de poder é tão eficaz que a guerra que fora imposta a negritude é travada entre a própria população negra.

Ao analisar a crescente violência a qual está submetida a população brasileira é fácil concluir que a suposta Guerra às Drogas não tem obtido sucesso em diminuir a violência no nosso país, pelo contrário, tem sido um importante instrumento de repressão e extermínio de classe, atingindo com prioridade a população negra, selecionando hierarquicamente quem serão os indivíduos excluídos da sociedade e incluídos no sistema prisional, e ainda, relegando as periferias uma política de  morte.

É preciso repensar o papel que a política de combate às drogas vem desempenhando no número de assassinatos no nosso país para livrar nosso povo da guerra urbana, onde Cláudias e Amarildos morrem nas mãos da polícia, os níveis de violência seguem aumentando, e as balas perdidas seguem atingido os mesmos copos, muitos deles inocentes, e onde encarceramento em massa é realidade.

Em 2006, ainda no governo Lula fora promulgada a Nova Lei de Drogas, instituindo o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD). A legislação é um marco no que tange a política de combate às drogas no Brasil. Com a perspectiva de supostamente despenalizar o consumo a nova legislação passou a prever penas restritivas de direitos para os usuários, substituindo a lei anterior, que previa punição de seis meses a dois anos para indivíduos que portassem drogas ilícitas para consumo próprio. Já para aqueles considerados traficantes elevou a pena mínima de três para cinco anos de reclusão. Colocando o tráfico de drogas praticamente no mesmo patamar de um assassinato, uma vez que a pena prevista para o considerado traficante de drogas tornou-se somente um ano a menos da pena mínima de reclusão prevista para o homicídio simples. Contudo, deixou nas mãos da discricionariedade policial e judiciária a diferenciação entre usuário e traficante ao não delimitar quais seriam as quantidades que diferenciariam o primeiro do segundo. O usuário para a legislação brasileira torna-se uma questão de saúde, enquanto o traficante um caso de polícia.

As consequências da legislação estão em parte refletida nos números que o atlas da violência aponta, em parte da superlotação de presídios. Não foram os grandes traficantes que carregam drogas em jatinhos familiares a serem encarcerados, ou a lidarem com a verdadeira guerra que a disputa por territórios gera. Jovens negros com pequenas quantidades apreendidos nas periferias são classificados como traficantes, enquanto as mesmas apreensões em bairros nobres entram para os registros de usuários. O resultado disso é uma população carcerária praticamente dobrada nos últimos dez anos, pulando de 401,2 mil em 2006 para 726,7 mi em 2016 (dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, INFOPEN), dos quais 95% são homens e 5% são mulheres. Cerca de 40% são presos provisórios e 27% respondem por roubo e 24% por tráfico de drogas, são as duas maiores incidências, 40% são presos provisórios, 24% são condenados com execução provisória. Mais da metade dessa população são jovens de 18 a 29 anos e 64% das pessoas encarceradas são negras. O crime de tráfico de drogas, é a razão de encarceramento de 62% das mulheres.

Nos dados de homicídios também é possível relacionar os reflexos, os dados apresentados pelo relatório do IPEA apontam que o aumento dos assassinatos da população negra tem sido contínuo nos últimos dez anos, atingindo patamares recordes e demonstrando que o Brasil não é o mesmo para negros e não negros. Enquanto no período de 2007 a 2017 a taxa de negros assassinados cresceu 33,1%, a de não negros apresentou crescimento de 3,3%, fazendo que a morte violenta de pessoas negras saltasse de 63,3% dos assassinatos no Brasil em 2007, e chegasse a 75,5% em 2017. São dados profundamente desiguais.

É preciso organizar a negritude para viver e derrotar o capital!

Clóvis Moura, escritor e intelectual-militante comunista, destacado por seus importantes estudos sobre a questão racial, a luta e a resistência do negro no Brasil, no livro A Dialética Radical do Negro no Brasil, apresenta como uma de suas ideias centrais que estando o racismo na origem da formação do capitalismo brasileiro não será possível superá-lo com o desenvolvimento da sociedade capitalista. Ainda, se compreendemos que o racismo é estrutura fundamental da sociedade capitalista, é tarefa tratarmos com prioridade a organização da negritude para derrotar as estruturas que nos oprimem e inverter a pirâmide que mantém negros e negras como base.

Repensar a organização da juventude negra, de mulheres negras, e colocar a questão racial no centro da política é tarefa prioritária e estratégica. É preciso avançar no debate da necessidade de uma política de segurança pública que enfrente realmente o problema das drogas. É verdade que nos últimos anos o povo negro teve importantes conquistas a partir da sua luta, como as políticas de ações afirmativas, que representaram um avanço real no que tange o acesso à educação, por outro lado é preciso afirmar com veemência que a política de drogas assumida nos últimos 10 anos representa o genocídio da negritude e tende a ficar ainda pior com as políticas do governo Bolsonaro.

Na ordem do dia das tarefas para o próximo período está derrotar o pacote anticrime do ministro Sergio Moro, que entre outras coisas, ao ampliar o excludente de ilicitude, garante que policiais militares e civis que praticarem homicídios não serão punidos. Será a legalização da morte da periferia pelas mãos estatais. Não há dúvidas sobre quem recairá as mortes policiais. A história brasileira, é a história da resistência do povo negro, como muito bem destacou no Carnaval 2019 a escola de samba Mangueira. Organizar negros e negras na luta por uma nova política de drogas, contra a redução da maioridade penal, contra o pacote anticrime de Sérgio Moro e para estarem à frente da luta anticapitalista será central para resistência no Brasil e no mundo.

Referências    bibliográficas

ALMEIDA,    Silvio   Luiz     de.       O         que      é          racismo           estrutural?       Belo    Horizonte        (MG):            Letramento,    2018.

MOURA, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Editora Anita, 1994, p. 28-29.

Fontes

Infopen, junho/2016

Atlas da Violência 2019

Coordenadores: Daniel Cerqueira, Renato Sergio de Lima, Samira Bueno, Cristina Neme, Helder Ferreira, Paloma Palmieri Alves, David Marques, Milena Reis, Otavio Cypriano, Isabela Sobral, Dennis Pacheco e Gabriel Lins. Estagiária: Karolina Armstrong

Este artigo faz parte da edição n. 13 da Revista Movimento. Compre a revista aqui!


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