Sociólogo Chico de Oliveira sai do PT

A coragem e as elaborações de Chico de Oliveira farão falta à esquerda brasileira. No dia de seu falecimento, resgatamos artigo publicado pela Folha em dezembro de 2003 no qual o intelectual anunciou sua ruptura com o PT. Ele se tornaria fundador do PSOL.

Chico de Oliveira 10 jul 2019, 14:50

“A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção e, portanto, as relações de produção, isto é, todo o conjunto das relações sociais. Esta mudança contínua da produção, esta transformação ininterrupta de todo o sistema social, esta agitação, esta perpétua insegurança distinguem a época burguesa das precedentes. Todas as relações sociais tradicionais e estabelecidas, com seu cortejo de noções e idéias antigas e veneráveis, dissolvem-se; e todas as que as substituem envelhecem antes mesmo de poder ossificar-se.”

Marx e Engels, “Manifesto Comunista”, 1848

Este artigo consuma meu afastamento do Partido dos Trabalhadores, do qual me desligo formalmente. Aqui não me dirijo a qualquer instância formal do partido, nem aos seus dirigentes no próprio partido e no governo, mas aos petistas e aos cidadãos em geral. Aos primeiros por ter compartilhado com eles a militância durante todos os anos de existência do partido, e aos segundos por serem os únicos detentores formais, pela Constituição, do poder republicano e democrático, aos quais o Partido dos Trabalhadores e seu governo devem obediência.

Ambos confiaram no Partido dos Trabalhadores, seja na condição de militantes e eleitores, seja na condição de cidadãos que permitiram, pela sua reiterada aposta na democracia, a existência do Partido dos Trabalhadores e sua chegada ao Poder Executivo e à maioria na Casa legislativa que representa o povo.

Tenho o direito de cobrar do Partido dos Trabalhadores pelo governo que ele realiza, pela minha condição de militante e de cidadão. E, daqui por diante, exclusivamente pela minha condição de cidadão. Pois muito além do que imagina e pensa a direção partidária, o PT tem que dar satisfações à cidadania, que lhe deu as condições para disputar democraticamente e chegar ao governo. Falta a essa liderança consciência democrática e republicana, enquanto lhe sobram arrogância, prepotência e maneirismos caboclos de péssima fatura.

Não me movem nem arrogância protagônica –este belo termo mais castelhano que português- nem propósitos catilinários nem profecias catastróficas nem o desejo de que outros me sigam neste caminho. Cada um dos petistas e cidadãos é independente e único sujeito de suas próprias ações, decisões e opções. Apenas não confio mais nos dirigentes do partido –os que estão no governo e os que permanecem nas instâncias partidárias. Sequer suponho que esse todo seja homogêneo.

Muitos dos que estão no governo e permanecem e permanecerão no partido têm o direito de assim procederem e não os transformo em meus inimigos, sequer em adversários. Tenho a certeza de que continuarei a manter fraternais amizades com muitos deles e continuarei a considerá-los membros importantes da esquerda brasileira e lutadores pelas transformações na sociedade brasileira em seu caminho por maior justiça, igualdade social e socialismo.

Afasto-me porque não votei nas últimas eleições presidencial e proporcional no Partido dos Trabalhadores, reiterando um voto que se confirma desde 1982, para vê-lo governando com um programa que não foi apresentado aos eleitores. Nem o presidente nem muitos dos que estão nos ministérios nem outros que se elegeram para a Câmara dos Deputados e para o Senado da República pediram meu voto para conduzir uma política econômica desastrosa, uma reforma da Previdência anti-trabalhador e pró-sistema financeiro, uma reforma tributária mofina e oligarquizada, uma campanha de descrédito e desmoralização do funcionalismo público, uma inversão de valores republicanos em benefício do ideal liberal do êxito a qualquer preço –o “triunfo da razão cínica”, no dizer de César Benjamin–, uma política de alianças descaracterizadora, uma “caça às bruxas” anacrônica e ressuscitadora das piores práticas stalinistas, um conjunto de políticas que fingem ser sociais quando são apenas funcionalização da pobreza –enfim, para não me alongar mais, um governo que é o terceiro mandato de FHC.

Mesmo a “jóia da coroa” do governo, sua política externa, tem não poucos aspectos de retrocesso: a crença no livre comércio, em áreas de mercados livres, na contramão da rica experiência latino-americana, teorizada brilhantemente por Raúl Prebisch e Celso Furtado. Nem o meu voto nem os dos milhões que confiavam em mudanças substanciais no rumo do país e depositaram essa confiança no presidente eleito e nos que o acompanham, no governo e no partido, foi dado para isso.

Minhas críticas ao governo já são antigas, até antes da posse. Nelas, todas públicas, em artigos e entrevistas, manifestei, sem rebuços, não apenas minha discordância, mas minha convicção de que, por esse caminho, não chegaremos a bom termo neste primeiro governo federal do PT. Não estou só nesta posição.

Mas minha discordância não se funda apenas –e esse apenas já seria muito– no que poderia ser considerado um desvio conjuntural, uma operação política tática para governar e atenuar os efeitos da herança de FHC. 

Ela vai mais longe: há transformações estruturais na posição de classe de um vasto setor que domina o PT, que indicam uma real mudança do caráter do partido. E, como posições de classe não se mudam com simples mudanças de nomes ou de conjuntura ou de melhoria de alguns indicadores econômicos, considero que o governo Lula está aprofundando a chamada “herança maldita” de FHC e tornando-a irreversível. Não votei para esse aprofundamento, mas contra ele.

Essa posição crítica tem sido contínua e não se confunde com personalismos, com acusações. Mesmo quando errei ao adjetivar a atuação do ministro-chefe da Casa Civil, o que reconheci através de carta que foi publicada, minha intenção foi chamar a atenção para a repetição de práticas que apenas fizeram do Brasil um dos países mais desigualitários do mundo capitalista, apesar de ter sido o segundo em taxa de crescimento no século que foi de fins do 19 até os anos 70 do século passado.

O reconhecimento de meu próprio erro não foi acompanhado de gesto igual, pois sequer a correspondência do próprio ministro através de seu advogado chegou ao conhecimento público, informando que ele próprio havia sugerido a renúncia à ação judicial que anunciara, substituindo-a por uma troca de correspondência que considerasse as duas partes satisfeitas. Isto é parte da sutil prática de desqualificação aos que fazem oposição, a permanência do “homem cordial” que não suporta a distância, que toma a assunção de uma responsabilidade cidadã como retratação e covardia. Ao invés de ver nela a recusa do princípio schmittiano da política como relação amigo-inimigo, que pode contribuir para liquidar de vez o que ainda há –e como!– de autoritário na política brasileira.

Poderia alegar minha condição de fundador do partido, muito antes que muitos que hoje desfrutam do poder a ele tivessem chegado. Mas não me interessa glorificar nem heroicizar minha posição: abomino as instituições de herança aparentadas ao capitalismo e declino das homenagens.

Partido é uma associação de cidadãos livres para um projeto coletivo de poder, na definição clássica, baseada em alguma experiência comum, de qualquer natureza, mas sobretudo de classe. Não é uma questão afetiva, embora ao longo dos anos muitos laços afetivos importantes tenham se construído. Quando a liga que faz o partido, o projeto coletivo de poder para transformação da sociedade no sentido do socialismo, e de mobilização da sociedade para tanto, se esgota, então é hora de deixá-lo. As amizades, se forem sólidas e para além do partido, continuarão.

Tampouco me movem ressentimentos, como áulicos novos e antigos intrigam na corte de Brasília. Qualquer dos intrigantes, na corte ou alhures, está desafiado a relatar qualquer conversa que eu tenha tido a respeito de cargos ou funções no governo. Salvo Paulo Vannuchi, e ele –tendo sido portador de uma mensagem do já eleito, mas ainda não empossado presidente, em que este dizia que os cargos de primeiro escalão teriam que ser negociados, mas para qualquer cargo do segundo escalão, nas áreas de minha competência e preferência, bastava eu escolher– sabe de minha pronta recusa.

Abriu no meu escritório, em conversa reservada que ele pediu, um imenso organograma do Estado brasileiro, para localizar cargos ou funções de minha escolha. Pedi-lhe que fechasse o organograma e dissesse ao presidente que eu nunca iria para qualquer cargo governamental, mesmo o mais importante, pois a missão do intelectual é exercer a crítica.

Foi a mesma conversa que havia tido com ele dois anos antes na casa do professor Antonio Candido, quando Marta Suplicy se elegeu prefeita de São Paulo, e o hoje presidente mandou dizer igualmente que queria que eu escolhesse o cargo. E ele teve a mesma resposta que lhe dei dois anos depois. Que foi a mesma resposta que dei à companheira –sim, companheira– deputada Luiza Erundina, quando se elegeu prefeita de São Paulo e convidou-me pessoalmente, por telefone, ela mesma no aparelho, para ser seu secretário de Planejamento. Declinei e indiquei o professor Paul Singer. Que terminou sendo o excelente secretário de Planejamento de Luiza Erundina; sem jactância, certamente ajudei Luiza a fazer a escolha, com que São Paulo ganhou um de seus melhores secretários dos últimos tempos.

Muitos acharão precipitada a decisão, na convicção de que o governo Lula ainda está em disputa. Não é o meu caso: o governo Lula nunca terá a hegemonia, apenas a formação de maiorias “ad hoc”, sem nenhuma solidez.

O PT trocou a hegemonia que se formava por um amplo movimento desde a ditadura, no qual o próprio partido tinha lugar e função central, a direção moral que reclamava transparência, separação das esferas pública e privada, fazia a crítica do neoliberalismo, organizava os trabalhadores, incluía os excluídos, indicava o caminho do socialismo, pelo prato de lentilhas da dominação.

O PT no governo é um prolongamento da longa “via passiva” brasileira, a expansão do capitalismo da exclusão, a repetição do mesmo, desde o aliancismo desembestado até as políticas dos tíquetes do leite. O PT é hoje o partido de centro no espectro político brasileiro, junto com aquele que escolheu como irmão, o PSDB: se odeiam, mas são irmãos. E o pior é que não sabe disso. Pensa que está reformando o país.

Embora transformações estruturais que o próprio PT sempre subestimou ajudem a explicar boa parte do seu aburguesamento, ou do seu envelhecimento precoce, nas palavras de Marx e Engels, dois “renegados” pelo PT do poder, a responsabilidade das lideranças é inescapável. E a do presidente assume um lugar central: ele é a liderança carismática responsável, posto que ela projeta uma sombra de proteção e encantamento sobre os processos reais.

Quando a própria liderança carismática não tem consciência desse papel que lhe é imanente, então a política como atividade dos cidadãos corre um sério risco, pois o mito anula a política. Aos cidadãos cabe recuperar o sentido da política e o primeiro e essencial passo é desmitificar o mito.

Folha de S. Paulo, 14/12/2003


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Pedro Micussi