Um país, dois sistemas e uma infinidade de manifestantes pela democracia
Hong Kong tornou-se sinônimo de uma série de manifestações democráticas no noticiário internacional.
Conhecida por seus modernos e opulentos arranha-céus, Hong Kong tornou-se sinônimo de uma série de manifestações democráticas no noticiário internacional. Tudo porque centenas de milhares de seus habitantes estão saindo às ruas nas últimas semanas com o objetivo de barrar um projeto de lei que facilita extradições para a China continental. Trata-se de mais um capítulo turbulento da relação entre os moradores dessa região administrativa especial e o governo autoritário chinês.
O mais recente dos protestos ocorreu nesta segunda-feira (1 de Julho), no 22º aniversário de transferência da soberania de Hong Kong do Reino Unido para a China. Estima-se que meio milhão de pessoas compareceram às três principais avenidas da cidade com bandeiras e gritos democráticos. À certa altura da noite, o Parlamento regional foi cercado e um grupo de manifestantes conseguiu furar o bloqueio repressivo e penetrou o prédio, onde permaneceu por cerca de 5 horas até que a polícia local conseguisse dispersar a ocupação durante a madrugada.
Esta fatídica segunda-feira dá continuidade ao mês de Junho, cuja marca também a forte indignação das ruas. Em 4 de Junho, uma gigantesca vigília foi organizada para lembrar e homenagear as vítimas do Massacre de Tiananmen, que acabara de completar 30 anos. Em seguida, ganharam corpo as mobilizações contra a tentativa de o regime de Xi Jinping ampliar a ascendência sobre o sistema judicial de Hong Kong, ameaçando erodir ainda mais o arranjo institucional conhecido popularmente como “um país, dois sistemas”, em que a ilha dispõe de relativa autonomia constitucional e política. O medo de muitas organizações ativistas é que a nova lei possa respaldar a captura de vozes críticas a Pequim (algo que a polícia chinesa já costuma fazer na clandestinidade), ao passo que os suspeitos de crimes de colarinho branco permaneçam ilesos. Vale lembrar que desde o ano passado, Hong Kong é considerada a capital mundial dos super-ricos, ultrapassando metrópoles como Paris, Nova York ou Tóquio.
No dia 16 de Junho, cerca de 2 milhões de pessoas (ou 30% da população local) estiveram presentes no maior protesto da história recente da região. Um dia depois, o jovem Joshua Wong, líder da “Revolução dos Guarda-Chuvas” (2014), saiu da cadeia após cumprir três meses de detenção em decorrência dos eventos de cinco anos atrás e se juntou ao tsunami de manifestantes. O fato é que, em 18 de Junho, a força descomunal dos protestos fez com que o governo regional paralisasse a tramitação do projeto de lei por tempo indefinido. Aquilo que o mundo acompanhou ontem demonstra que o recuo tático das autoridades não foi suficiente. Grande parte dos manifestantes demanda agora não apenas a extinção do projeto, como também a queda da governadora Carrie Lam, cuja imagem que se consolida é a de uma marionete do regime chinês.
Ao que tudo indica, as ruas de Hong Kong colocam em xeque o sistema de escolha indireta do Chefe Executivo local, que na prática conduz ao poder um vassalo de Pequim e dos megaempresários residentes na ilha. O sufrágio universal e o fim das perseguições políticas entram cada vez mais na ordem do dia dos protestos. E mais do que uma questão localizada (que por si só já seria importantíssima, haja vista que colocou contra a parede todo o forte aparato repressivo de Xi Jinping), os protestos de Hong Kong se inserem num ciclo internacional de rebeliões democráticas contra regimes autoritários. As ruas de Hong Kong expressam um anseio por democracia real semelhante ao que vimos recentemente no Sudão e na Argélia (onde governos caíram) ou na República Tcheca (onde sua população acaba de protagonizar as maiores manifestações do país em 30 anos contra as tentativas de distorcer o sistema judicial feitas pelo seu primeiro-ministro, Andrej Babis, um bilionário corrupto identificado como homólogo de Trump) .
É dever de todos os que encampam as bandeiras das liberdades democráticas observar, saudar e apoiar a tenacidade das massas de Hong Kong, que cinco anos depois do “Movimento dos Guarda-Chuva”, desencadeia uma tempestade contra os poderes instituídos.
LINHA DO TEMPO
SETEMBRO-DEZEMBRO (2014)
- Pedindo mais democracia e autonomia, dezenas milhares de jovens estudantes de Hong Kong protagonizam o “Movimento dos Guarda-Chuvas”, cujo apetrecho é utilizado para se proteger das bombas de gás lacrimogêneo atiradas pelas forças policias.
SETEMBRO DE 2016
- Jovens líderes das manifestações de 2016 (entre os quais, Joshua Wang e Nathan Law) são eleitos para o Parlamento regional.
MARÇO DE 2017
- Apoiada pela alta burocracia de Pequim, Carrie Lam é eleita Chefe do Executivo pela maioria do Colégio Eleitoral de 1194 membros.
SETEMBRO DE 2018
- Acusado de ameaçar a segurança e a ordem local, o Partido Nacional Hong Kong (força independentista sem representação) é proscrito.
ABRIL DE 2019
- Nove líderes dos protestos pró-democracia de 2014 são condenados à prisão.
- Carrie Lam encaminha projeto de lei que agiliza pedidos de extradição feitos pela China Continental.
04 DE JUNHO DE 2019
- Trinta anos depois do Massacre da Praça da Paz Celestial, cerca de 200 mil pessoas no Victoria Park em Hong Kong para homenagear os mortos.
06 DE JUNHO DE 2019
- Passeata de parlamentares contrários ao projeto de lei sobre extradição.
09 DE JUNHO DE 2019
- Mais de um milhão de pessoas comparecem à convocatória dos contra as mudanças na lei de extradição.
12 DE JUNHO
- Centenas de milhares retornam às ruas pela retirada do projeto de lei sobre extradição. Apesar da forte repressão, governo é obrigado a adiar a votação do projeto.
15 DE JUNHO
- Carrie Lam pede desculpas públicas e adia indefinidamente a votação do projeto.
16 DE JUNHO
- Cerca de 2 milhões de manifestantes protestam contra o governo de Carrie Lam.
17 DE JUNHO DE 2019
- Sai da prisão o ativista pró-democracia, Joshua Wong, manifestando apoio ao novo ciclo de protestos.
22 DE JUNHO DE 2019
- Milhares de jovens cercaram o quartel-general da polícia exigindo que as autoridades policiais assumissem a responsabilidade pela feroz repressão dos outros atos.
27 DE JUNHO DE 2019
- Protestos contra o governo Lam voltam a reunir milhares de pessoas nas ruas de Hong Kong.
01 DE JULHO DE 2019
- No 22º aniversário da devolução do território de Hong Kong à China, meio milhão de pessoas ocuparam as principais ruas da cidade exigindo a renúncia do governo. Uma parte dos manifestantes conseguiu adentrar ao Parlamento e ocupá-lo durante cinco horas num perigoso desafio a Pequim.
P.S.: Do ponto de vista das lutas dos jovens da China continental contra a ditadura burocrática do PCCh, é interessante recordar a perseguição aos universitários marxistas de Pequim que se solidarizaram com a greve dos trabalhadores da fabrica de soldas Jasic Technology no sudeste do país no final de 2018. Embora o regime burocrático amplie o controle sobre a circulação de informações na China, percebem-se cada vez mais o interesse de uma nova geração por resgatar o sonho de casamento entre o socialismo e a liberdade, três décadas depois de Tiananmen.