A narrativa literária e a narrativa histórica: considerações acerca de Romanceiro da Inconfidência
Autora analisa texto de Cecília Meireles.
“…Atrás de portas fechadas, /à luz de velas acesas,
entre sigilo e espionagem, /acontece a Inconfidência,
E diz o Vigário ao Poeta:/ ‘Escreve-me aquela letra
do versinho de Virgílio…’ /E dá-lhe papel e a pena,
E diz o Poeta ao Vigário, /com dramática prudência:
‘Tenha meus dedos cortados, /antes que tal verso escrevam…’
LIBERDADE AINDA QUE TARDE/ouve-se ao redor da mesa.
E a bandeira já está viva, /e sobe, na noite imensa.
E os seus tristes inventores/já são réus- pois se atreveram
a falar em Liberdade/ (que ninguém sabe o que seja).”
Por esse trecho do Romance XXIV se levanta, com as palavras de Cecília Meireles, em seu Romanceiro da Inconfidência (1953), o estandarte sob o qual se inscreve a narrativa de um dos episódios mais significativos da história brasileira: a Inconfidência Mineira, ocorrida em 1789.
Inserida no contexto de absoluta crise do sistema colonial e do Antigo Regime como um todo e contemporânea à Revolução Francesa, a Inconfidência- ou Conjuração- se inspirava nos ideais iluministas, que no plano intelectual anunciavam amplas e profundas transformações políticas e sociais na Europa e, consequentemente, em suas colônias.
Como dito pela própria Cecília em sua conferência denominada “Como escrevi o Romanceiro da Inconfidência”, proferida em Ouro Preto em 1955, “Concentrou entre estes muros de pedra, tão longe do convívio fácil dos lugares ilustres do século 18, um grupo de homens que estiveram, na sua época, tão ao corrente dos fatos e dos vultos seus contemporâneos- que puderam repercutir, neste pequeno recanto, as ideias mais avançadas da Europa…”.
É preciso, no entanto, compreender os limites da Liberdade defendida por esse movimento, que embora inspirada pelos ideais republicanos e libertários, motivado principalmente pela crise econômica advinda do declínio da atividade mineradora e pela crescente opressão da fiscalização portuguesa, não se atentava a demandas populares nem propunha mudanças sociais mais profundas.
Foi, em realidade, um movimento liderado por membros da elite e que contava com seu principal nome, Tiradentes, como o único elo possível com os setores populares. Até mesmo a abolição da escravatura era uma questão indefinida entre os ideais do movimento. Nesse sentido, é importante lembrar de outras revoltas que, ocorrendo no mesmo período, possuíam um caráter mais popular: é o caso da Conjuração Baiana (1798) e a Revolução Pernambucana de 1817.
Como se sabe, no início do período republicano a Inconfidência foi resgatada e ressignificada (de rebelião criminosa e duramente desmantelada à sua época a movimento reverenciado contemporaneamente), em uma narrativa que buscava dar símbolos e heróis nacionais à jovem república brasileira, sendo o próprio Tiradentes alçado à posição de patrono cívico.[1]
Além de narrar a revolta em si, as páginas do Romanceiro descreve ainda aspectos gerais da atividade mineradora, que ainda hoje sangra o estado de Minas Gerais, culminando em tragédias como os crimes ambientais da Vale: rompimento de barragens em 2015 e ainda nesse ano, em Brumadinho. Nas palavras de Cecília, a riqueza mineral, embora tão reluzente, “turva tudo: / honra, amor e pensamento.”. A obra reflete também sobre o poder e a opressão, os desmandos das autoridades portuguesas no Brasil colonial e sua ganância, como no Romance LXXXI:
“Levantai-vos dessas mesas, / saí das vossas molduras;
vede que masmorras negras, /que fortalezas seguras,
que duro peso de algemas, /que profundas sepulturas
nascidas de vossas penas, /de vossas assinaturas!”
Ainda que se considere as limitações e contradições do movimento, é necessário reconhecer nele um dos primeiros gestos organizados de resistência ao domínio colonial, e aqui retomamos esse episódio para refletir mais detidamente sobre o registro literário que dele se compôs. Afinal, o Romanceiro é a primeira obra que busca narrar episódios da história nacional, sendo por isso considerada por alguns segmentos da crítica literária como uma obra épica.[2]
Ao contrário de suas outras obras, Cecília Meireles assume em Romanceiro uma temática de interesse histórico e nacional, sem no entanto perder a sensibilidade e lirismo característicos de sua produção. É inegável que na obra a autora assume o lado dos Inconfidentes (enaltecendo principalmente a figura de Tiradentes), e constrói uma imagem que reforça o caráter heroico do movimento e de seus participantes.
Outra característica interessante da obra é o fato de Cecília dar espaço a múltiplas vozes ao longo da narrativa- desde a rainha D. Maria I até figuras marginais, como o bêbado que testemunha a execução de Tiradentes. Dessa forma a autora compõe a trama sob diversas perspectivas e, nesse ponto, se diferencia da narrativa historiográfica- unívoca e focalizada sobretudo nos centros de poder.
Nesse ponto é inevitável refletir acerca das fronteiras e diálogos entre a História e a Literatura enquanto narrativas. Tal questão é pensada desde a Antiguidade, com apontamentos de Aristóteles, e assume contemporaneamente novos contornos principalmente a partir das considerações de Roger Chartier e Walter Benjamin.
Sabe-se que tanto a História quanto a Literatura são discursos que almejam representar as experiências humanas ao longo do tempo. Nas palavras da professora Sandra Pesavento, “ambas são formas de explicar o presente, inventar o passado, imaginar o futuro. […] ambas são formas de representar inquietações e questões que mobilizam os homens em cada época de sua história…”.[3]
Tal questão é considerada pela própria Cecília Meireles, cujo Romanceiro é fruto de intensas pesquisas históricas. Segundo ela, embora a narrativa não pudesse reconstruir inteiramente as cenas do episódio histórico, teria a vantagem de “também não as deformar inteiramente; de preservar aquela autenticidade que ajusta à verdade histórica o halo das tradições e da lenda.”
Nesse sentido, Walter Benjamin afirma que “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência”[4]. Assim sendo, Cecília, para compor a narrativa histórica de Romanceiro, apropria-se da memória para narrar um fato, de acordo com determinados objetivos, tal como um historiador.
Ao relatar seu processo de composição da obra, a autora conta que foi levada a escrever sobre o tema pelos “fantasmas” dos personagens históricos envolvidos na trama- vozes que “falavam, que se confessavam (…) exigiam, quase, o registro da sua história”. Tal consideração fomenta a perspectiva da Literatura como fonte histórica possível e, além disso, reafirma o poder social da Literatura enquanto ente cultural fundamental no processo de formação de uma nação.
Portanto, ao propor uma narrativa literária que é, ao mesmo tempo, registro historiográfico, Cecília confere ao ofício de escritora um compromisso maior com a realidade empírica, social e política, ainda que a obra, como dito anteriormente, constitua-se como uma reinterpretação e reescrita dos fatos históricos.
Por tudo isso, é notável a riqueza composicional, temática e estilística de Romanceiro da Inconfidência. Ao resgatar literariamente episódios importantes de nossa história, Cecília Meireles nos leva a refletir sobre os ideais revolucionários que cultivamos.
O Romanceiro nos remete sobretudo à
luta humana pela sonho de liberdade ao longo da história. Nesse sentido, é
necessário pensar o caráter da Liberdade defendida pelos Inconfidentes e, acima
de tudo, buscar aprofundá-lo e perseverar na luta pela sua conquista, ainda que
tardia.
[1] Sobre essa questão o professor José Murilo de Carvalho (UFRJ) dedica aprofundado estudo em A formação das almas: o imaginário da República no Brasil (Companhia das Letras, 2017)
[2] Vide trabalhos como os de Lúcia de Fátima Pelet (UFG).
[3] História & História Cultural. Autêntica, 2003.
[4] Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Editora Brasiliense, 1996.