Bacurau: você que não entendeu não perde por esperar
Aqueles que subestimam o poder e resistência do povo terão que enfrentar os vários Bacuraus desse país.
Numa escola, adultos e crianças ao chão, sob a mirade um tiroteio.
Eis uma cena real em escolas de algumas comunidades do Brasil que se encontram na rota de conflitos e disputas, mas que no caso compõe também o rico, violento e belíssimo amalgama que é Bacurau, filme que tem colecionado elogios, inúmeras análises e que já é premiado pelo júri em Cannes, tendo, a níveis de cinema nacional, superado muitas expectativas de público e crítica, consolidado-se como obra de grande alcance e sucesso. A riqueza e a qualidade da obra demonstram mais uma vez a importância de se valorizar e defender o cinema nacional, em especial contra os ataques dos que, tal como o atual governo, não o compreendem ou reconhecem nele uma ameaça ao seu projeto político.
Bacurau é escrito e dirigido por Kleber Mendonça, o mesmo de O som ao redor (2013) e Aquarius (2016), dessa vez em parceria com Juliano Dornelles. Enredos por vezes alegóricos e com temáticas reconhecidamente políticas não são novidade para o diretor. No caso de O som ao redor, são as heranças colonialistas e escravagistas que se reproduzem no Brasil de hoje. No caso de Aquarius, a inescrupulosa ganância do capital, através da especulação imobiliária premente, que consome não apenas edificações mas, em essência, história e memórias — subjetivas e coletivas — nelas encerradas. O mesmo Aquarius marcou o início do governo de Michel Temer, notadamente quando seus atores e produtores denunciarem ao mundo, no festival de Cannes, as artimanhas que haviam levado o então presidente ao poder.
Bacurau, no entanto, supera, tanto em conteúdo temático quanto em estilo e composição, as duas obras anteriores, abandonando qualquer sutileza e deixando mais evidentes as vísceras de uma sociedade em profunda crise, convocando à tela, à arena do conflito, a própria memória histórica e os valores culturais e morais.
A cena inicial do filme traz, ao som de Gal Costa, imagens do espaço sideral, aproximando-se aos poucos da Terra, do continente sul-americano, nos fazendo embrenhar até o profundo interior do Brasil. É uma perspectiva que parte imagética e alegoricamente do universal para o local, em um enredo que, no entanto, evidencia o caráter universalizante de Bacurau, tal como a construção genial do sertão de Guimarães Rosa — retomado no filme pela canção “Réquiem para Matraga”, em mais uma demonstração de que a trilha sonora também é parte fundamental e muitíssimo significativa da narrativa.
Ainda na sequência inicial, um caminhão pipa atravessa estradas esburacadas do sertão, já anunciando o cenário escolhido para se falar de tantas problemáticas: o Brasil profundo, por muitos inacessível, o Brasil que só se alcança ao penetrar-se profundamente nos rincões. É à essa profundidade que o filme se lança. O Brasil das capitais, por outro lado, aparece apenas como referência — na figura dos “sulistas brancos” e na tela de um aparelho, anunciando um espetáculo com execuções em praça pública.
Ao desenrolar do filme, fica logo evidente que a pequena Bacurau vive uma dinâmica social própria, baseada em princípios de auto-organização e solidariedade. Em sua rua principal, coexistem harmoniosamente vários organismos da cidade: escola, bar, ambulatório, além de uma igreja, que curiosamente é relegada ao papel de depósito. A cultura é também fundamental na cidade — desde as bibliotecas a que se refere o prefeito, à roda de capoeira, além da aula de música mostrada de passagem. A importância maior, no entanto, é dada ao museu local, que a princípio parece, a quem não é da cidade, irrelevante, assim como o lugarejo é considerado pacato, de população vulnerável e frágil (estereótipo com o qual muitos estigmatizam os nordestinos).
Entretanto, desde o princípio, demonstra-se que o povo local é ativo e altivo, vivendo em disputa direta com o prefeito, que figura o típico político coronelista das oligarquias — segundo o jingle, ele caminha “no meio do povo”, porém fica logo evidente que ao povo ele só recorre em defesa dos próprios interesses — o que não é perdoado pelo povo de Bacurau. A personalidade rasteira da personagem também é manifesta na emblemática cena em que livros, carregados em caminhão basculante, são despejados como “doação” na porta da escola.
A cidade aos poucos vai demonstrando que, tal como o pássaro que lhe dá nome, é um “bicho brabo”. Sob ameaça, sabe defender-se. Nesse processo, alia-se a Lunga, pária de personalidade ambígua e sanguinária, que guarda muitas semelhanças com os líderes do cangaço — outra referência continuamente retomada no filme. De aparente fragilidade, o povo desse lugar pega em armas — algumas delas do próprio acervo do tão importante museu. Neste momento, é interessante notar que Bacurau toma em mãos não apenas as armas de seu museu, mas a própria história que ele encerra — uma história de resistência.
Consegue-se por fim derrotar os forasteiros. As semelhanças e referências ao cangaço e a Canudos ficam cada vez mais fortes, fazendo valer o registro de Euclides da Cunha: “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”.
Ainda que vencido o combate, no entanto, Bacurau amarga a perda de muitos dos seus. Nesse momento, o diálogo com episódios recentes da nossa realidade ficam ainda mais evidentes. Entre os mortos, crianças — uma delas, assassinada pelas mãos de um agente que confunde uma lanterna com uma arma. Mães choram a perda de seus filhos e roupas ensanguentadas são hasteadas no varal (como não lembrar de Bruna da Silva a brandir o uniforme ensanguentado do filho, Marcos Vinicius, assassinado a caminho da escola?). Os tiros contra carros parecem guardar dolorosa referência à família alvejada pelo exército dentro de um carro no Rio de Janeiro ainda neste ano, além do próprio assassinato de Marielle, nome que é citado no filme entre as vítimas do conflito local. Retomando a cena mencionada no início do texto, temos a escola sob a mira de tiroteios. Ainda que alvo, no entanto, a escola constitui-se também como centro de resistência da cidade.
Sob o impacto do filme, não podemos deixar de refletir sobre nossos próprios desafios e tarefas ante tantos ataques e em uma realidade que, tal como o filme, por vezes se aproxima tanto de uma distopia.
Em uma sociedade que, assim como os forasteiros amantes de armas que competem e colecionam assassinatos no filme, se compraz com a violência gratuita, em que dizimam os nossos e na qual querem nos ver “fora do mapa”, não temos escolha que não resistir. É preciso resgatar de nossos museus (ainda que em chamas) nossa história de resistência e nossas armas. É necessário nos negarmos a tomar o que no filme se denomina tranquilizantes tarja preta — que, em várias formas, tentam nos alienar. É preciso fortalecer nossas comunidades, nossos pequenos Bacuraus, e lutar em sua defesa.
Tudo isso é necessário se quisermos derrotar os que querem nos dizimar, para que, antes que cogitem nos atacar, conheçam nossa história de resistência, e temam. Plínio (professor e liderança popular), ao relembrar sua mãe, Carmelita (figura matriarcal de Bacurau), assevera que os herdeiros dela são muitos e estão espalhados pelo Brasil e pelo mundo — “Bacurau e Carmelita vivem em todos eles”. Incorporando essa declaração à nossa realidade: somos muitos os que resistem e carregamos em nós a herança de muitos que vieram e lutaram antes de nós. Da placa que indica caminho de Bacurau, a mensagem é incisiva: “se for, vá em paz”, pois aqui vive povo guerreiro, que resiste e não se entrega.
Bacurau é o retrato potente de um país que, em pequenas comunidades, se organiza, resiste, combate, e que vencerá.
Aqueles que subestimam o poder e resistência do povo terão que enfrentar os vários Bacuraus desse país: “Você, que não me entendeu, não perde por esperar.”