Reflexões para um marxismo feminista e antirracista
Às vésperas do Encontro Nacional de Mulheres do PSOL, que acontece no próximo final de semana, Luciana Genro traz uma reflexão ancorada em feministas marxistas para fomentar o debate e contribuir na construção de um marxismo feminista e antirracista.
Em Ligações perigosas: os casamentos e divórcios do marxismo e do feminismo[1] Cinzia Arruzza levanta algumas questões que tem sido objeto de intensos debates no movimento feminista. Trago aqui alguns elementos muito bem abordados por ela para contribuir na necessária construção de um marxismo conectado com as lutas pela igualdade de gênero e raça.
Algumas perguntas levantadas pela autora sintetizam debates fundamentais travados pelas feministas que se reivindicam marxistas: se consideramos que a opressão das mulheres nem sempre existiu e que suas raízes não são biológicas ou psicológicas isso necessariamente significa que a opressão de gênero é uma opressão secundária, hierarquicamente subordinada à opressão de classe? Isso significa negar a sua autonomia e especificidade? Além disso, se focarmos fortemente no caráter econômico da opressão, estaremos negando os aspectos da dominação masculina ligados ao controle da capacidade reprodutiva das mulheres, os aspectos psicológicos, a especificidade da violência sexual, a autonomia e a durabilidade que a estrutura patriarcal da família adquiriu? Isso significa absorver opressão de gênero na opressão de classe?
A resposta é evidentemente negativa mas a relação entre as questões de gênero, raça e classe estão longe da simplificação.
Não é à toa que o livro, já no seu título, fala dos “casamentos” e “divórcios” do feminismo e do marxismo. Cinzia explica que a unidade do feminismo com a luta geral da classe trabalhadora não ocorreu sem contradições e dificuldades, de ambos os lados. Em primeiro lugar por que o feminismo orginalmente emergiu no espaço de liberdade aberto pela revolução burguesa e foi primeiramente teorizado por mulheres de classe média e classe alta. Em segundo lugar por que todo movimento da classe trabalhadora é uma expressão do momento histórico em que ocorre. Seus membros, líderes e teóricos não poderiam ser naturalmente livres de preconceitos, atitudes estereotipadas e resistências ao feminismo. Seu comportamento é resultado de milhares de anos de opressão das mulheres.
As reflexões de Cinzia apontam para a construção de um marxismo feminista e antirracista, que passa pela compreensão de como o capitalismo integrou e modificou as estruturas patriarcais tendo em conta que a opressão das mulheres é um elemento estrutural da divisão do trabalho. É, portanto, um dos fatores diretos através do qual o capitalismo não apenas reforça a sua dominação em termos ideológicos, mas também continuamente organiza a exploração da força de trabalho e sua reprodução.
Cinzia opera a questão da opressão de gênero e raça e exploração de classe como categorias distintas porém profundamente interconectadas, assim como a relação entre patriarcado e capitalismo. As relações patriarcais pré-capitalistas foram transformadas e integradas no novo modo de produção, tanto no âmbito da família quanto no que diz respeito à posição das mulheres na produção. Esta integração se deu de forma a garantir que a tarefa de reprodução da vida em seus amplos aspectos continuasse sendo realizada pelas mulheres.
O capitalismo rompeu os laços econômicos baseados no patriarcado, mas conservou e usa as relações de poder e a ideologia patriarcal de diversas maneiras. A família deixou de ser uma unidade produtiva, transformou-se profundamente, sem deixar de garantir que a tarefa de reproduzir a força de trabalho fosse realizada. As relações de poder patriarcais cumprem o seu papel: o capitalismo necessita descarregar as tarefas reprodutivas na família – e a subordinação das mulheres garante este resultado – agravando o peso sobre as mulheres das relações opressivas entre elas e os homens.
Aqui evidentemente há que se ressaltar uma distinção de classe pois as tarefas reprodutivas na família não recaem da mesma forma sobre todas as mulheres. As mulheres pobres, e na sua maioria negras, muitas vezes arcam com as tarefas das suas famílias e também com boa parte das tarefas domésticas nas famílias burguesas ou de classe média.
Submergir gênero na classe e acreditar que a libertação da exploração automaticamente garantirá a libertação das mulheres e o fim dos papéis sexuais é uma utopia reacionária por que paralisa e subestima a luta autônoma das mulheres. Igualmente errado é pensar que é possível remover a questão de classe erigindo um discurso que faz do gênero o principal inimigo. Cinzia nos desafia a pensar a complexidade do capitalismo e sua teia de relações de exploração, dominação e opressão, evitando simplificações.
Uma relação tensa entre a luta das mulheres e as lutas da classe trabalhadora
As revoluções burguesas criaram pela primeira vez as condições para pensar a libertação das mulheres em termos coletivos. A pressão e o controle tradicionalmente exercidos sobre as mulheres começaram a se enfraquecer pois as rígidas relações sociais foram abaladas pela irrupção dos ideais de igualdade propagados pelas revoluções francesa e inglesa. Emerge a ideia de a metade feminina da população não poderia ser excluída da liberdade e da igualdade propagadas. Os ideais iluministas também enfraqueceram uma ordem social que era fundamentalmente baseada na religião, com princípios até ali considerados imutáveis, entre os quais a submissão completa das mulheres aos seus pais e maridos.
Na revolução francesa nasceu, pela escrita de Olympe de Gouges, o que Cinzia define como o mais abrangente manifesto do feminismo burguês: a “Declaração dos Direitos das Mulheres e Cidadãs”, desmascarando o dito universalismo de uma revolução que até ali estivera limitada a pensar sobre os direitos dos homens cidadãos. O manifesto reivindicava cidadania completa para as mulheres e seu direito de ser uma parte ativa na vida social e política, com direitos legais e iguais.
Olympe foi enforcada em 1793 juntamente com outros líderes girondinos. Suas propostas não encontraram eco nas mulheres pobres. Ela também nunca demonstrou interesse pelos problemas específicos das mulheres trabalhadoras, que aplaudiram sua execução e de seus companheiros girondinos. As demandas das mulheres trabalhadoras contra o desemprego, a miséria e a inflação não eram objeto de preocupação das revolucionárias burguesas.
Mas tanto durante a revolução francesa como em diversas outras ocasiões as mulheres foram linha de frente da revolta social causada pela miséria e a fome. Unir estas experiências nesses episódios de luta social e política com o feminismo emergente, no qual as protagonistas eram mulheres das classes medias ou altas, não era nada fácil.
Cinzia descreve o emergente movimento feminista liberal que focava em dois eixos principais: a demanda por acesso à educação e cultura, o que incluía o direito a ter uma carreira, e as demandas por direitos civis e políticos, incluído aí o direito de propriedade e de herança, o direito a voto e ao divórcio. Estas demandas não se conectavam com as demandas por justiça social, e as mulheres burgueses demonstravam total falta de entendimento sobre as condições e necessidades específicas das mulheres trabalhadoras. Muito embora ambas compartilhassem uma opressão em comum, sua forma variava significativamente de acordo com a classe social de cada uma.
Episódio marcante neste sentido é o discurso de Sojoner Truth, que nasceu escrava em Nova York em 1797. Em 1851, na Women’s Rights Convention, em Ohio, ela levantou-se para questionar:
“Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari 3 treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?”[2]
Este discurso tornou-se um símbolo da luta das mulheres negras, e um exemplo vivo de como a suas vivências e problemas eram, e em grande medida ainda são, distintas da realidade das mulheres brancas burguesas ou de classe média.
Iniciada no final do século XIX, o que foi definido como a “primeira onda” do feminismo, lutou pelos ideais de igualdade prometidos pela revolução francesa. “Igualdade não pode ser real a menos que seja feita conosco” era o desafio lançado pelas feministas para aqueles que, sob a capa de um falso universalismo, haviam concebido estes valores até aquele momento apenas em termos masculinos. Apesar das dificuldades a demanda por emancipação permitiu vínculos entre o feminismo burguês e as mulheres dentro do movimento dos trabalhadores, e inclusive levou a unidade de ação em certas circunstâncias. Demandas por acesso à educação e emprego, por cidadania completa e pelo direito de votar e tomar parte na política eram preocupações compartilhadas.
Outra vertente da luta das mulheres surgiu na Alemanha, onde a relação entre a luta da classe trabalhadora e a libertação das mulheres se estreitou, graças a August Bebel e Clara Zetkin. Em 1848 Bebel publicou o livro A mulher sob o socialismo, no qual ele denunciou a situação insustentável das mulheres da classe trabalhadora e sua dupla opressão, colocando a entrada das mulheres na força de trabalho como determinante para sua emancipação. O livro teve forte impacto nas discussões internas da social democracia, assim como As origens da família, da propriedade privada e do Estado, publicado por Engels seis anos depois, e permaneceu por muito tempo como uma referência para o feminismo marxista, conforme explica Cinzia.
Clara Zetkin foi incansável na organização das mulheres dentro da social democracia alemã. Graças a pressão exercida por ela, o congresso de 1889 da Segunda internacional aprovou uma resolução em favor das mulheres trabalharem nas indústrias e por salários iguais para trabalhos iguais. Clara também foi editora de uma publicação voltada para defender os direitos das mulheres trabalhadoras, que tomava como referência as elaborações teóricas de Bebel e Engels. As demandas levantadas eram centradas na organização de classe das mulheres e seu direito ao voto.
Graças ao trabalho de Clara em 1907 aconteceu a primeira Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, com a participação de 60 delegadas vindas de 16 países. Na segunda conferência, em 1910, ocorrida concomitantemente com o 8° congresso da Internacional socialista, nasceu o Dia da Mulher, ainda sem uma data fixa. O 8 de março foi estabelecido mais tarde, em alusão ao papel das mulheres na revolução russa, quando numa grande manifestação em 23 de fevereiro, equivalente ao 8 de março no calendário atual, as mulheres deram início ao processo revolucionário que culminou na tomada do poder pelos sovietes e na criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Cinzia pontua que, apesar dos limites, dos retrocessos, da reação conservadora e das terríveis dificuldades impostas pela guerra civil e pelo colapso da economia, os primeiros anos do poder soviético certamente representaram um ponto alto do processo de emancipação das mulheres. As mulheres adquiriram cidadania plena e conquistaram direitos pelos quais lutamos até hoje, como o aborto e a socialização do trabalho doméstico, muitos dos quais foram suprimidos posteriormente durante a reação stalinista.
Em 1949 foi publicado “O segundo sexo” de Simone de Beauvoir. Segundo Cinzia a definição de que as mulheres não nascem mulheres, mas tornam-se mulheres teve uma forte influência na teoria do que foi definido como a “segunda onda” do feminismo. Simone queria sublinhar a forma como o “ser mulher” era socialmente, culturalmente e historicamente construído. Em outras palavras, a essência do “ser mulher” é a totalidade da educação, proibições, prescrições normativas e condicionamentos destinados às mulheres desde o nascimento. O “ser mulher” de uma mulher é então transformado em um dado naturalizado pelos efeitos da opressão e da exclusão do poder e da participação na esfera cultural, especialmente da produção.
Este novo feminismo desenvolveu-se a partir de um conjunto de movimentos de juventude, estudantes, rebeliões de jovens trabalhadores, lutas de libertação nacional, direitos civis e negritude. Estes movimentos se espalharam pelo planeta, dando vida para o ressurgimento do feminismo nos grandes enfrentamentos contra a ordem social e política pelos estudantes politizados nos campi da Europa e EUA, pelo movimento negros nos EUA, e por uma jovem e rebelde classe trabalhadora. Embora seja dito que a segunda onda do feminismo foi um tempo de certo divórcio entre o feminismo e o movimento dos trabalhadores, a extensão, a força e o radicalismo da luta das mulheres e o desenvolvimento teórico associado a elas seria inimaginável sem o contexto favorável criado por 1968 e os movimentos seguintes.
Cinzia explica ainda que uma das características da segunda onda feminista foi a substituição do quadro emancipatório baseado na demanda por igualdade com os homens pela recusa, em nome da teoria das diferenças, de uma igualdade entendida como submissão a uma moldura masculina e sexista. Demandar o direito à diferença foi uma poderosa ferramenta conceitual que trouxe uma ruptura com os movimentos sociais tradicionais dentro dos quais a maioria das feministas da segunda onde haviam se politizado. As mulheres começaram a desconstruir e criticar a forma da política, da sociedade e da cultura a fim de expor a sua natureza patriarcal.
Uma segunda característica comum desta onda feminista foi a centralidade da autodeterminação das mulheres; a demanda por aborto e contracepção livres, assim como a condenação da violência masculina e um novo modo de pensar a sexualidade, incluindo teorias radicais sobre a violência e a dominação inerentes ao ato sexual. Este foi o momento de expressar a ideia de uma política que une o pessoal e o político, teorizando uma imediata transformação em si e das formas de existência e relacionamento com outros homens e mulheres.
Uma das maiores fontes de inspiração da segunda onda do feminismo foram os movimentos afro americanos que se desenvolveram nos anos 60 e jogaram um papel fundamental nos protestos ocorridos nos Estados Unidos naquela época. O feminismo se apropriou de alguns novos conceitos chave daqueles movimentos; a descoberta da diferença como um processo de afirmação e definição da identidade própria; a autodeterminação; as lutas de libertação.
As jovens mulheres que tomaram parte nestes movimentos da segunda onda também foram parte de outros movimentos – pelos direitos civis, ou de esquerda, e tomaram consciência dentro destes movimentos da necessidade de um movimento de mulheres autônomo no qual houvesse espaço para as suas demandas e aspirações específicas. Apesar do envolvimento massivo de mulheres e do papel fundamental que elas cumpriram nestes movimentos e organizações, elas não conquistaram o papel de liderança correspondentes, pois eram sufocadas pelas lideranças masculinas sexistas e seus métodos de funcionamento.
Nancy Fraser aponta no mesmo sentido. Para as feministas da segunda onda injustiça não é somente má distribuição de renda. Elas reinterpretaram como injustiças as desigualdades sociais que tinham sido negligenciadas, toleradas ou racionalizadas na família, em tradições culturais, na sociedade civil e na vida cotidiana. Situações que envolvem a sexualidade, o serviço doméstico, a reprodução e a violência contra mulheres, bem como hierarquias de status e assimetrias do poder político ganham visibilidade. Fraser afirma que ao focar não apenas no gênero, mas também na classe, na raça, na sexualidade e na nacionalidade, as feministas da segunda onda foram precursoras do que hoje conhecemos como uma alternativa interseccional.[3]
Gênero, raça e classe: uma hierarquia possível?
Cinzia pontua que um debate importante e atual que emergiu com a segunda onda foi teorizar o patriarcado como um sistema de opressão que precedeu o capitalismo. Algumas teóricas chegam a considerar as relações de poder de gênero como a matriz de todas as outras formas de dominação, opressão e exploração. De forma geral houve uma rejeição a aceitar uma hierarquia de contradições que via a classe no topo, e gênero, raça, nacionalidade, logo abaixo.
Em meio a muitos debates sobre a origem da opressão das mulheres, há uma ampla concordância, segundo Cinzia, em localiza-la na transição da “matrilocalidade” à “patrilocalidade”. Isto é, a partir do momento em que, ao invés do homem ir viver com os parentes de sua mulher, ela é quem passou a deslocar-se e ir viver com a família do marido. Esta transição permitiu aos homens expropriar o trabalho e a mais valia produzida pelas mulheres, porque ir viver na casa paterna do seu marido colocava a mulher num contexto estranho para ela, onde era privada de seus laços familiares e redes de proteção. O produto do seu trabalho não mais pertencia a ela ou seus parentes, mas aos do seu marido. Além disso a coincidência entre relações de produção e relações de parentesco levou a coincidência entre a expropriação da força de trabalho das mulheres e um controle e acesso privilegiado às suas capacidades reprodutivas e, desta forma, opressão econômica e sexual se sobrepuseram e se alimentaram mutuamente.
Esta explicação para a origem da opressão das mulheres enfatiza o fato de que a opressão das mulheres nem sempre existiu e está conectada ao processo de transformação social e a transição de sociedades igualitárias para sociedades de classe e também o fato de que fatores sociais e econômicos conectados com produção, expropriação e distribuição de mais valia e força de trabalho e não a biologia são cruciais na explicação das origens da opressão das mulheres.
Não podemos deixar de mencionar outro elemento importante ressaltado pela autora: a compreensão de como o poder patriarcal é internalizado, até mesmo pelas próprias mulheres, agindo em um nível que não é econômico, e que esta internalização também tem efeitos decisivos de um ponto de vista político. Qualquer ativista político percebe os problemas que as mulheres enfrentam para falar, dar voz a suas iniciativas, tornarem-se politizadas, pois estão esmagadas entre a interiorização da opressão de gênero e a dúvida nas suas próprias habilidades que esta interiorização provoca, e como os mecanismos de opressão atuam nas relações de poder com membros masculinos das suas organizações.
Cinzia retoma a análise da relação entre patriarcado e capitalismo feita por Heidi Hartmann no artigo O casamento infeliz do marxismo e o feminismo, de 1979. Neste texto Harmannn desenvolve a assim chamada teoria da dualidade dos sistemas, analisando a intersecção do patriarcado e do capitalismo, começando pelo que ela define como malsucedido encontro entre o marxismo e o feminismo. A intuição de Engels na Origem da família da propriedade privada e do Estado, de que produção e reprodução da vida, como um fator determinante na história, consistiam em dois aspectos – produção dos meios de existência e produção dos seres humanos – não foi examinada em profundidade pelo próprio Engels ou pelos marxistas. Isto contribuiu para que as categorias marxistas permanecessem “sex- blind” (cegas em relação ao sexo), com consequências não apenas em termos de subestimar a condição de opressão das mulheres mas também minando a capacidade de entender a complexa realidade do capitalismo.
Para Hartmann o fator que permite ao capitalismo confinar mulheres nos degraus mais baixos da hierarquia da força de trabalho não é a lógica do funcionamento interno do capitalismo, mas de um outro sistema de opressão. Muito embora este sistema patriarcal esteja integrado ao capitalismo, ele tem sua própria autonomia. Portanto a subordinação das mulheres criada pelo sistema patriarcal, cuja origem é pré-capitalista, é usada pelo capitalismo para seus próprios propósitos.
Deste ponto de vista não seria possível falar de um patriarcado puro, pois suas estruturas estão sempre enraizadas em determinadas relações de produção e suas relações inextricáveis modificam suas características e natureza. Ao contrário, deveríamos falar de um patriarcado escravocrata, de um patriarcado feudal, de um patriarcado capitalista, e assim por diante.
Já Nancy Fraser, em 1997, no livro Justice Interruptus, desenvolve uma proposta teórica, também definida pelos seus críticos como parte da teoria da dualidade dos sistemas, embora bastante diferente da de Hartmann. Observando que as demandas por reconhecimento tornaram-se quase uma forma paradigmática de conflito político no final do século XX e a centralidade das lutas relacionadas a nacionalidade, gênero, raça e sexualidade, Fraser propõe um esquema conceitual que torna possível tomar em consideração tanto as diferenças específicas entre demandas por justiça baseadas na “redistribuição” quanto aquelas baseadas em “reconhecimento”, assim como a possibilidade delas estarem linkadas.
Este esquema é baseado numa distinção entre injustiça com raízes econômicas (exploração, despossessão, marginalização econômica) e injustiça de uma natureza cultural e simbólica (dominação cultural, não reconhecimento, desprezo). Considerar que em termos analíticos injustiças econômicas e culturais requerem distinção não impede de constatar a sua correlação na vida real e a circunstância de que, por exemplo, a opressão de LGBTs que se expressa em nível das estruturas e instituições, tem consequências econômicas e em outros aspectos como discriminação no mercado de trabalho e no sistema de saúde.
Entre estes dois polos, injustiça econômica e não reconhecimento, há uma gama de injustiças que englobam estes dois aspectos: este é o caso da opressão racial e das mulheres. Ambas têm raízes econômicas e são determinantes na divisão de trabalho em diferentes maneiras. No caso das mulheres, isto envolve tanto a divisão do trabalho produtivo e reprodutivo, este último destinado a ser trabalho não pago de mulheres, quanto uma hierarquia dentro da força de trabalho, onde gênero é usado para distinguir entre trabalhos melhores pagos, predominantemente masculinos, e trabalhos com piores remunerações, predominantemente femininos. Entretanto este é apenas um aspecto da opressão, pois as mulheres também são sujeitas a depreciação de uma natureza cultural e simbólica, a qual dá guarida a muitas formas de discriminação e violência.
Portanto, a opressão das mulheres, assim como a opressão racial, necessita de ambas as respostas, isto é, exige justiça redistributiva e reconhecimento. Fraser explica que há um approach afirmativo que envolve uma série de medidas em resposta à injustiça econômica e social que não desafiam as bases estruturais do sistema, como o welfare state ou o multiculturalismo e um approach transformador que tende a questionar as estruturas que geram a injustiça.
Para Cinzia a teoria Queer pertence a esta segunda categoria. Ela não levanta a demanda por identidade sexual como um objetivo em si mesmo, mas como a desconstrução da dicotomia entre as identidades homossexual/heterossexual, buscando desconstruir gênero, assim como o socialismo busca desconstruir classes: nenhum dos dois quer manter ou afirmar identidade de gênero ou de classe – muito embora na pratica política o problema de identidade é levantado por ambos – mas sim superar as divisões de classe e de gênero. Baseado nesta natureza transformativa e desconstrutivista, Cinzia levanta a hipótese de uma combinação entre socialismo e feminismo desconstrutivista capaz de lançar um ataque comum às injustiças culturais e econômicas, oferecendo respostas em termos de redistribuição e reconhecimento.
Ela aponta ainda que no final dos anos 80 a teoria da interseccionalidade (termo cunhado por Kimberlé Crenshaw em 1989) tentou enfatizar a interação entre gênero, classe e raça e em quão esta complexa interação age sobre os sujeitos e que ela não pode ser entendida como uma adição ou soma de opressões.
Na mesma trilha, em Mulher, Raça e Classe, livro de 1981, Ângela Davis afirma que nos Estados Unidos a escravização da população negra do sul, a exploração econômica da mão de obra no Norte e a opressão social das mulheres estão relacionadas de forma sistemática.[4] Isto significa que as opressões de gênero e de raça estão indissoluvelmente ligadas à estrutura capitalista da economia e que para derrubá-las é preciso questionar a própria estrutura econômica do modo de produção e reprodução capitalista que estabelece relações historicamente específicas de opressão de gênero e opressão racial.
Devido a esta interseção, ou a esta relação sistematicamente articulada, mulheres não podem ser vistas como um sujeito homogêneo, experienciando opressão de gênero e sexismo como sua principal relação com o poder, dada a sua diversidade em termos de classe, raça, etnia e status e como esta diversificação e interação de elementos joga um papel na formação das suas subjetividades. Desenvolver um olhar que faça sentido destas interseções e decifre a complexa relação entre os remanescentes patriarcais que persistem como fantasmas na globalização capitalista e as estruturas patriarcais que, ao contrário, têm sido integradas, usadas e transformadas pelo capitalismo, demanda uma renovação do marxismo.
Cinzia defende que um projeto político que tenha por objetivo reconstruir um novo movimento dos trabalhadores requer uma séria reflexão sobre como gênero e raça influenciam tanto a composição da força de trabalho como os processos de desenvolvimento das subjetividades. Defende ainda que é preciso dar um fim ao concurso sobre a opressão primária. A questão não é se classe vem antes de gênero ou gênero antes de classe, a questão é como gênero e classe se integram na produção capitalista para trazer à tona uma realidade complexa. O ponto é, portanto, como classe e gênero podem se combinar num projeto político capaz de evitar dois perigos: a tentação de juntar as duas realidades, fazendo do gênero uma classe ou da classe um gênero, e a tentação de pulverizar as relações de poder e as relações de exploração vendo nada além de uma série de opressões singulares alinhadas lado a lado e relutantes em serem parte de um projeto de libertação mais amplo.
Esta
percepção nos possibilita construir uma crítica mais profunda e abrangente ao
sistema capitalista, demonstrando como cada opressão específica se concretiza
na vida real e de como elas se inter-relacionam em cada contexto social. A luta
feminista e antirracista consequente é também anticapitalista, e vice versa.
[1] Arruzza, Cinzia. Dangerous Liaisons: The marriages and divorces of marxism and feminism. International Institute for Reseach and Education, com edição no Brasil pela Usina Editorial.
[2] https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/
[3] Fraser, Nancy. Feminismo, capitalismo e a astúcia da história. In Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de janeiro; Bazar do tempo, 2019. P. 31, 32
[4] Davis, Ângela. Mulher Raça e Classe. P. 75