Por que terapeutas deveriam falar sobre política

A psicoterapia, como campo, não está preparada para responder aos principais problemas sociais que afetam a vida de nossos pacientes.

Richard Brouillette 7 out 2019, 16:09

“Vou me reunir com minha chefe mais tarde”, disse meu paciente. “Estou preocupada que ela me diga que não estou dando o meu melhor e que eu deveria me oferecer para trabalhar mais horas a fim de demonstrar meu comprometimento”.

Esta tensão estava se acumulando em seu trabalho durante meses, e ela temia que houvesse uma ameaça tácita nesta reunião: trabalhar mais horas, sem compensação, ou demissão. Já lhe era muito complicado passar tanto tempo fora de casa. Mas ela não podia se dar ao luxo de arriscar seu emprego.

“O que eu deveria dizer aos meus filhos”, perguntou ela, caindo em prantos.

A cena embrulhou meu estômago. Tais preocupações entre meus pacientes estão se tornando tão comuns, tão persistentes, que me encontro concentrando-me cada vez menos em problemas e neuroses que são específicos de pacientes individuais, e cada vez mais no que ocorre na estrutura da vida diária.

Como psicoterapeuta com uma prática privada em Manhattan, vejo muitos profissionais no início e na metade da carreira lidando com implacáveis obrigações de emails e redes sociais, apagando os limites de trabalho/vida, recebendo salários que permanecem sem mudanças desde o final da década de 1990. Vejo empregados “mais velhos” (de 30 anos em diante) tratando ansiosamente de se adaptar a um mercado laboral no qual as pessoas têm que mudar de trabalho repetidamente e cultivar sua “marca pessoal”. Ninguém tira todos os seus dias de férias. Todos trabalham mais horas do que as obrigatórias há uma geração.

De forma geral, os terapeutas evitam discutir temas sociais e políticos nas sessões. Se o paciente aborda isso, o terapeuta dirige a conversa para uma discussão dos sintomas, as habilidades de enfrentamento, os temas relevantes na infância e na vida familiar do paciente. Porém estou cada vez mais convencido de que isso é inadequado. A psicoterapia, como campo, não está preparada para responder aos principais problemas sociais que afetam a vida de nossos pacientes.

Quando as pessoas não podem cumprir com as exigências cada vez mais rigorosas da economia, frequentemente se culpam a si próprias e depois lutam para viver com a culpa. Você vê esta mesma tendência, obviamente, numa variedade de contextos, desde as crianças divorciadas que se sentem responsáveis pela separação de seus pais até a “culpa do sobrevivente” daqueles que vivem depois de desastres. Em situações que podem parecer impossíveis ou inaceitáveis, a culpa se torna um escudo para a raiva que você sentiria de outra maneira: a criança pode estar chateada com seus pais por se divorciar, o sobrevivente pode estar chateado com os que faleceram.

Isso não é diferente a nível social. Quando um sistema econômico ou governo é responsável por danos pessoais, os afetados podem se sentir profundamente indefesos e cobrir essa impotência com autocrítica. Hoje, caso não possa se tornar aquilo que o mercado deseja, pode sentir que tem falhas e não tem nenhum recurso, exceto estar deprimido.

Penso que durante os últimos 30 anos, estas mudanças nos locais de trabalho tiveram um efeito psicológico lento, ainda que de uma maneira mais difusa e menos detectável que com qualquer evento traumático. Num grau que talvez não saibam, as pessoas sentem menos esperança e mais estresse, sua auto-estima está prejudicada; creem que estão destinados a tomar o que possam obter; existem num estado próximo à impotência adquirida.

Chega um momento em que a gente não pode aguentar mais, quando lhes é exigido demasiadamente. Quanta culpa podem tolerar as pessoas dirigindo-se a si mesmas? Quando elas botam essa culpa para fora?

Minha sensação é que os psicoterapeutas estão desempenhando um papel importante ao direcionar esta culpa para dentro. Infelizmente, muitos terapeutas, graças ao fato de que foram treinados para não discutir temas políticos na sala de consulta, são parte do problema, reforçando implicitamente suposições falsas sobre a responsabilidade pessoal, o isolamento e o status quo social.

Se o paciente descreve uma situação de trabalho quase insuportável, o terapeuta terá de se concentrar na natureza da resposta do paciente à situação, tratando implicitamente a situação como algo imutável, um fato da vida. Mas um entorno insustentável ou injusto nem sempre é somente um fato da vida, e os terapeutas devem considerar como falar disso explicitamente.

Isto é, de certo modo, um velho dilema em psicoterapia. Deveria a terapia se esforçar para ajudar um paciente a se adaptar ou ajudá-lo a se preparar para mudar o mundo que o rodeia? O mundo interno do paciente está desequilibrado? Ou é o chamado mundo real aquele que anda mal? Geralmente, é uma combinação dos dois, e acredito que um bom psicoterapeuta ajudará ao paciente a navegar entre esses dois extremos.

Quando os terapeutas fazem o diálogo sobre a narrativa da vida de seus pacientes, sem incluir uma discussão franca sobre as dificuldades sociais e econômicas, correm o risco de reduzir a psicoterapia a uma ferramenta de controle social. Isso pode soar bastante polêmico, mas considere uma proposta de governo na Grã-Bretanha do ano passado para colocar psicoterapeutas em centros de trabalho para oferecer auxílio aos desempregados, e os desempregados possivelmente enfrentem uma redução em seus rendimentos caso rechacem o tratamento. Em tal situação, a terapia poderia se converter facilmente num braço do estado, buscando “curar” a apatia ou a relutância a trabalhar, limitando potencialmente a consciência social e política entre aqueles a quem se pretende servir.

Com muita frequência, quando o mundo encontra-se em péssimo estado por razões políticas, os terapeutas guardam silêncio. Em contrapartida, o terapeuta deve reconhecer esse fato, apoiar o paciente e discutir o problema. É inerentemente terapêutico ajudar a uma pessoa a compreender a injustiça de sua situação, refletir sobre a questão de sua própria agência e tomar qualquer ação que considere conveniente. Quando estou nesta situação com um paciente, introduzo em nosso diálogo a ideia de que o que está ocorrendo não é justo. Isso nos abre a oportunidade de explorar como reage meu paciente à ideia de que está sendo maltratado, o que pode ser revelador e vital para a terapia.

Uma vez tive uma paciente que havia chegado a um ponto crítico com a situação na start-up em que estava empregada. Em sua terapia, tinha lutado durante anos com a ideia de que era possível ter uma comunicação autêntica nas relações. Nossa terapia a ajudou a aprimorar sua raiva em um e-mail de grupo corajoso, bem considerado e pontual, que resultou em quase metade de seus colegas de trabalho apoiando-a e iniciando negociações diretas de trabalho com o executivo-chefe.

O papel de apoio desempenhado pela pela terapia em tais eventos pode afetar algumas pessoas mais como trabalho social ou organização do que como tratamento de saúde mental. Mas isso estaria mal. Os terapeutas devem considerar tal interação política na sala de consulta como inerente ao processo terapêutico. Os pacientes se motivam para mudar o mundo que os rodeia como uma solução ao que havia se convertido em estressores internos. Esta é uma experiência não somente de mudança externa mas interna, que brinda uma nova confiança e uma sensação de compromisso que se converte em parte do caráter do paciente.

Vocês iriam se surpreender com a pouca frequência com que as pessoas acreditam que seus problemas não são sua culpa. Ao se concentrar na equidade e na justiça, um paciente pode ter a oportunidade de encontrar o que se perde com tanta frequência: a capacidade de se cuidar e de se defender. A culpa pode ser substituída por uma ira clarificadora, uma que liberta um desejo, e uma demanda, de prosperar, de voltar-se para os demais em lugar de voltar-se para dentro, uma que impulsiona a fazer mudanças.

Artigo originalmente publicado no The New York Times. Tradução de Charles Rosa para a Revista Movimento.

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