Precisamos falar de socialismo
Num mundo marcado por aquecimento global, desigualdades crescentes e crises, o socialismo tornou-se mais atual do que nunca.
Nos anos 1990, o senso comum foi dominado pela ideia de que o socialismo morreu. Com a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética, parecia não haver dúvida para a maioria das pessoas de que o socialismo havia sido uma aventura que, depois de ter assombrado as elites dos países capitalistas por cerca de 150 anos, finalmente chegava ao fim junto com o século XX. Entretanto, nos últimos anos, a palavra “socialismo” tem aparecido novamente nos discursos políticos. Porém, dessa vez com maior frequência na boca dos seus inimigos do que de seus defensores.
A extrema direita tem reeditado a paranoia do “perigo comunista” típica da Guerra Fria para atacar praticamente qualquer coisa. De educação sexual a direitos humanos, passando por Lei Rouanet e controle sobre posse de armas, tudo pode ser acusado de “socialismo” (ou “marxismo cultural”, para os mais eruditos).
Mas, ao contrário do que disse Bolsonaro em seu discurso na ONU, o Brasil não chegou nem perto de ser um país socialista. Infelizmente, eu diria. O socialismo pode estar muito mais distante do que a paranoia neofascista sugere, mas nunca foi tão necessário. De acordo com pesquisa realizada pela Oxfam, em 2017, as 7 milhões de pessoas que formam o 1% mais rico da humanidade ficaram com 82% de toda a riqueza mundial. A metade mais pobre não ficou com nada. O Brasil, particularmente, é o país em que o 1% super-rico mais concentra renda no mundo, atrás apenas do Qatar (país dominado há décadas por uma dinastia monárquica), de acordo com Relatório da Desigualdade Global. Essa situação tem piorado desde a crise estourada em 2015. De lá para cá, os 10% mais ricos tiveram um incremento de 3,3% em sua renda, enquanto os 40% mais pobres perderam mais de 20% de sua renda, de acordo com pesquisa realizada pela FGV.
Isto é perfeitamente perceptível quando se observa que os bancos brasileiros continuam batendo recordes de lucratividade enquanto milhões de brasileiros desistem dos empregos formais e migram para empregos cada vez mais precários, mal remunerados e com alta rotatividade. Enquanto, de acordo com reportagem da Época, os “bikeboys” trabalham 12 horas por dia, 7 dias por semana, para ganhar um pouco menos de um salário mínimo, 16 brasileiros entraram para a lista de bilionários do mundo organizada pela Forbes. Nada disso é por acidente. O capitalismo é um sistema baseado na acumulação crescente gerada por meio da exploração do trabalho. A desigualdade, portanto, não é fruto de um programa de governo específico, mas é uma tendência necessária ao próprio desenvolvimento desse sistema.
Além disso, o capitalismo é irracional, anárquico e nos leva a crises periódicas e progressivamente mais devastadoras. Desde o final dos anos 1960, o capitalismo mundial tem tido dificuldade para manter taxas de crescimento satisfatórias. Para compensar a queda nas taxas de lucro, os capitalistas têm arrancado, via capital financeiro, porções de valor produzidas pelos trabalhadores cada vez maiores. Por exemplo, não conseguindo investir em empresas lucrativas pois as pessoas estão sem dinheiro para consumir, os capitalistas emprestam dinheiro para Estados de países subdesenvolvidos, como o Brasil, e exigem cortes nas áreas sociais para que os governos garantam o pagamento dos juros. Esse tipo de investimento, além de aprofundar a desigualdade, tornou os mercados ainda mais imprevisíveis e sujeitos ao estouro de bolhas especulativas. Isso aconteceu em 1973. Novamente em 1979. Depois, diversas vezes ao longo dos anos 1980 e 1990. Em 2008, o mundo todo foi à bancarrota com o escândalo das hipotecas subprime, e boa parte dos analistas econômicos acreditam que o mesmo ocorrerá entre este ano e o ano que vem.
Há quem resista a esse cenário de barbárie. Recentemente, foi organizada uma manifestação internacional contra o aquecimento global, outro sinal grave da devastação capitalista. Em 2017, o movimento feminista organizou a Greve Internacional das Mulheres contra a exploração e a violência de gênero. Há também incontáveis exemplos de manifestações contra governos autoritários e precarização das condições de trabalho. Ao contrário de muitos socialistas do século passado (e alguns da atualidade, infelizmente), eu não penso que essa diversidade de pautas seja ruim. Muito pelo contrário, elas marcam a riqueza do movimento emancipatório no século XXI. Porém, acredito que todas essas lutas terão muito mais força – na verdade, elas só serão plenamente vitoriosas – se tivermos um elemento em comum a todas elas: a superação do capitalismo, isto é, o fim da sociedade de classes.
Portanto, é preciso falar de socialismo. Mas não da forma caricatural e paranoica que descrevi no início desse texto. É preciso, por exemplo, revistar as teses de Marx e dos marxistas. Vejam só vocês: logo após o estouro da crise de 2008, os livros marxistas tornaram-se best-sellers em Wall Street. É preciso também estudar as tentativas de construção do socialismo ao longo da história, inclusive reconhecendo os momentos em que elas foram sabotadas por figuras autoritárias e oportunistas como Joseph Stalin, na URSS. Mas, sobretudo, é preciso radicalizar nosso discurso e nossa prática.
Ser “radical” significa ir à raiz dos problemas. Por conseguinte, significa também reconhecer que não há “humanização” a se esperar do capitalismo. Pois, vivemos hoje numa “ditadura dos mercados”. Vejam o caso da Argentina: o país afundou-se numa crise terrível por ter adotado integralmente o pacote de medidas liberais. Agora que o político responsável por isso está prestes a perder a eleição, os mercados punem severamente o país com mais fuga de capitais, desvalorização da moeda, etc. Detalhe: seu concorrente propõe uma política econômica apenas ligeiramente mais reguladora dos mercados. Nesse sentido, o autoritarismo de Bolsonaro não é nem um pouco contraditório com as tendências do capitalismo contemporâneo. Ao contrário, é a sua medida perfeita. Não há mediações possíveis com isso. É preciso defender intransigentemente nosso princípio absoluto: o fim da toda opressão e exploração.
Felizmente, há quem esteja se dando conta disso. Nos EUA, as organizações socialistas, como o Democratic Socialists of America, tiveram uma explosão no número de filiações logo após a eleição de Donald Trump. Ao mesmo tempo, ganham cada vez mais destaque figuras públicas daquele país que se reivindicam abertamente socialistas, como a deputada Alexandria Ocasio-Cortez e o senador e pré-candidato a presidente Bernie Sanders. Tudo isso no coração do capitalismo mundial! Já aqui no Brasil, o PSOL cresce em eleitorado, filiações e militância. No plano cultural, vão se disseminando obras com subtexto mais radical, como o filme Bacurau. Sejamos todas e todos socialistas!
Artigo originalmente publicado em Mídia Ninja.