“Segunda chamada”, desconstrução e indústria cultural
Ambientada em escola pública na periferia de São Paulo, nova série lança luz sobre os múltiplos dilemas enfrentados por corpos em precariedade no contexto da Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Nenhuma escolha narrativa parece aleatória na nova produção da Globo em parceria com a 02 Filmes. Desde a trilha sonora, que conta, por exemplo, com Elza Soares e Emicida, até o nome da escola a partir da qual se desenvolve a trama (Carolina Maria de Jesus), muitos são os elementos desconstrutores na obra criada por Carla Faour, Julia Spadaccini e Jo Bilac. Marcada pela pegada realista, a série Segunda Chamada se propõe a dialogar com histórias de personagens que extrapolam as fronteiras da ficção e, em seu episódio de estreia, na última terça-feira, já pretendeu mostrar a que veio.
Não é de hoje que alguns produtos televisivos têm incorporado a crítica social, o que não deve deixar de causar certo incômodo em torno de teorizações e tradições teóricas que se construíram a partir de um olhar de desdém sobre a indústria cultural e o popular massivo. Para além do que, na gramática dessa perspectiva, poderia ser chamado de alienação ou manipulação, talvez seja mais interessante pensarmos, sobretudo a indústria do audiovisual, não apenas na lógica estritamente comercial ou ideológica, mas em relação às suas estratégias de aproximação com seus públicos. É só a partir dessa chave que se faz possível entendermos como novos discursos e práxis sociais emergentes acabam sendo refletidos no interior de produções mainstream.
Nos últimos anos, as lutas por reconhecimento de diversos grupos e segmentos das sociedades contemporâneas adquiriram grandes proporções, impulsionadas por um contexto de expansão de determinado compromisso compartilhado por amplos setores com o discurso e a busca pela efetivação dos direitos humanos. Assim, a própria noção de representatividade precisou ser incorporada pelos meios de comunicação ditos hegemônicos. Ocorre que mesmo diante de um cenário de evidentes retrocessos democráticos, não é fácil um retorno ao status quo ante, no sentido de perda de todo o espaço social-midiático conquistado por muitas bandeiras. Ao contrário, é nesse momento que atores considerados conservadores em vários pontos se apresentam, de forma surpreendente para alguns, como eventuais aliados em face da degradação de um acúmulo civilizatório até então erguido.
Segunda Chamada é, nessa linha, um exemplo modelar, que faz atuar a estratégia geral da desconstrução, para se dizer com Derrida, tanto sobre a compreensão elitista que atribui um lugar subalterno, associado necessariamente à reprodução das estruturas sociais opressivas, para a cultura de massas, quanto em relação à própria disputa ideológica vivenciada hoje, cujo motor se encontra na atuação de grupos reacionários (ou seja, reativos, que reagem a avanços democráticos) para conservar valores supostamente correspondentes à ordem natural das coisas, o que, em grande medida, seria um culto à estática, típica do mundo antigo e dos primórdios da filosofia.
Ademais, faz-se mister ressaltar que se trata de uma série cuja narrativa aposta na educação como a grande possibilidade de emancipação social, política e econômica para aqueles que são colocados à margem de um sistema calcado historicamente em exclusões (é só olharmos para a linha da animalidade traçada pelo menos desde Aristóteles e redesenhada ao longo da história do Ocidente). Em um léxico butleriano, Segunda Chamada insurge-se contra a condição politicamente induzida e distribuída da precariedade, segundo a qual alguns corpos são mais acentuadamente expostos às violações, à fome, à miséria extrema, às guerras (em lato sensu), ao mundo da criminalidade.
Sem moralismos, que de nada parecem servir quando lidamos com vidas precárias marcadas pela ausência de alternativas, a trama global discute temáticas como o aborto e a violência machista/patriarcal. Outrossim, a luta contra a LGBTIfobia ganha centralidade em torno da personagem Natasha, vivida por Linn da Quebrada, a qual precisa enfrentar todas as barreiras impostas para que corpos travestis possam ocupar espaços como o da sala de aula. Condenados à invisibilidade e a determinados lugares sociais, esses corpos estão fazendo política ao frequentarem instituições de ensino e reivindicarem existências plurais, dignas e igualitárias.
Débora Bloch, em irretocável trabalho, dá vida à professora Lúcia na série, protagonista que se move pela máxima de que “o aluno pode desistir da escola, mas eu não desisto do aluno”. E é em uma de suas falas, durante uma aula na turma noturna de alunos da EJA, que a docente questiona o mito da suposta democracia racial no Brasil. Ao perguntar à turma majoritariamente composta por negras e negros quantos já sofreram algum tipo de abordagem diferenciada nas ruas ou tiveram, em algum momento, constrangimento ao utilizar um elevador social, Lúcia escancara as entranhas do racismo em nossa sociedade, muitas vezes reproduzido de maneira velada.
É ao lado dos colegas professores, os quais lidam, concomitantemente ao trabalho, com diversos problemas no âmbito de suas vidas privadas, que ela se vê envolvida com os discentes por laços que superam a tradicional relação professor-aluno. Em que pese toda a precariedade de tal carreira, gerando inclusive elevados índices de adoecimento físico e psíquico dos profissionais da educação, só quem vivencia a realidade em torno de todos os conflitos que circundam e atravessam a escola pública, sobretudo de periferia, sabe que estar ali exige mais do que o interesse pelo magistério.
Por último, mas não com menor relevância, é preciso salientar que, na série, os arquétipos encarnam tipos sociais que não se encaixam na tradicional estrutura dicotômica do melodrama clássico, a saber, a separação entre mocinhos (representantes do bem) vs. vilões (representantes do mal). Com personagens cheias de nuances e complexidades, a trama advoga que as condições de vida e o meio em que as pessoas se inserem são responsáveis por as forjarem para além dos paradigmas morais da modernidade europeia.
O que Segunda Chamada, em última instância, nos oferece passa por um recado político em tempos difíceis (e um recado muito disruptivo), haja vista comprar uma briga em defesa da educação pública, apontando-a como a grande esperança para que possamos, enquanto sociedade, vivermos dias melhores. Trata-se, em síntese, de um segunda chamada a todas, todos e todes para a desconstrução dos mitos e o empoderamento como uma condição subjetiva fundamental para a luta coletiva em torno daquilo pelo qual vale a pena lutar.