Para uma crítica política do belo
O discurso progressista sobre a arte, determinado pela má ideia, na conjuntura atual, parece ir na direção da ruptura com a leitura reducionista, mas é só uma face da mesma moeda.
Quero me aventurar por umas pinceladas em torno da arte. Nestes dias reacionários é sempre um risco. É que para pincelar sobre tal campo, é necessário fugir da polarização que apreende a arte, suas manifestações, e a reduzem à produção de direita ou de esquerda.
No cinema, nas plataformas streaming, a produção cinematográfica é apreendida exclusivamente por seu conteúdo político. “Esse filme é bom, merece um Oscar, por que é de esquerda”, dizem uns; “isso é um produto do marxismo cultural”, dizem outros.
Exposições de arte são interditadas, atacadas, censuradas por serem de esquerda. Um especial de natal com um Jesus gay é senha para liberar ataque terrorista. Há teatrólogos nazistas, atrizes e atores de direita e de esquerda, idem cantores de rock, sertanejo e MPB.
Editais de apoio à produção artística são atravessados pela redução à essa polarização empobrecida; expressam a síntese desse ambiente material e espiritualmente empobrecido.
Para uma aproximação do sentido posto nesta redução da arte à polarização política, recorro à obra “Vorlesungen über die Ästhetik”, do filósofo Hegel. Nela, o pensador alemão aponta que existe um belo artístico (Kunstschöne) e um belo natural (Naturschöne). O primeiro tipo é que interessa, pois todo belo artístico é um produto do espírito. Assim, contrariando a polarização corrente, podemos apontar que a arte, no seu sentido pleno, está para além dessa disposição política.
Mas, Hegel reconhece que há também, além do belo como lógico-real, uma má ideia do que o mesmo seja. E a má ideia de belo, de arte, tem um conteúdo passageiro, fugidio, limitado, não-necessário. Essa má ideia, de certo modo, está em tela quando György Lukács, em “Narrar ou Descrever”, aponta uma diferença no modo de expor de Zola e de Tolstoi, ou, para citar um literato burguês caro ao filósofo húngaro, Thomas Mann. Ao reduzirmos a leitura sobre a arte a partir da má ideia, nos contentamos com reducionismos fáceis.
Quando Roberto Alvim, ainda à frente da Secretaria de Cultura do governo Bolsonaro fez uma performance nazista, com discurso nazista copiado de Joseph Goebbels, para apresentar um edital de política nazista para a cultura, tivemos uma manifestação concreta do que pode vir a ser a má ideia sobre o belo e a arte na sua face mais sombria. Manifestações desse tipo, parecem ser sobre arte, mas são apenas a má ideia posta em ação. A arte, o belo, ficaram longe.
A má ideia, em arte, no entanto, não é uma exclusividade da direita reacionária. Ela também campeia entre formuladores de discursos progressistas e sua redução da leitura artística à polarização. Assim, boa arte, é somente aquilo que a narrativa progressista hegemônica convencionou que é de “esquerda”. Filmes, músicas, pinturas, literatura, exposições, são julgadas pelos critérios da má ideia. Não é que a política seja um elemento menor na análise de obra artística, mas é que ela também é concebida a partir de uma má ideia de política, com uma narrativa bem ao gosto do lulopetismo de nossos dias e sua tática de reduzir a disputa pelo poder a uma polarização de si com o outro, o bolsonarismo. A má ideia em arte nos discursos progressistas é o espelhamento da má ideia em política.
A má ideia sobre arte e sobre política, não é, entretanto, um atributo da atual conjuntura brasileira. Isso vem de longe. Por perceber tal disposição, o sociólogo Florestan Fernandes, em “A Condição do Sociólogo”, foi implacável com os modernistas dos anos 20 e 30 do século passado. Segundo ele, os modernistas não foram efetivamente críticos da realidade brasileira; se contentaram com uma produção melancólica, lamurienta, por ter que se realizar num ambiente social que lhes contrariava em suas “aspirações mais essenciais”. Forjada no interior das contradições burguesas, a arte modernista brasileira quer ser europeia. É assim, antimoderna, pois não se compreende como negação de uma consciência conservadora.
O discurso progressista sobre a arte, determinado pela má ideia, na conjuntura atual, parece ir na direção da ruptura com a leitura reducionista, mas é só uma face da mesma moeda. É só um momento da má ideia. Ou, como apontou Florestan Fernandes, é conservadorismo travestido de progressista.
Como assinalei anteriormente, com base em Hegel, para um encontro com o belo artístico é preciso ir além da má ideia em arte e em política; o que significa ir além de determinações fragmentárias oriundas de narrativas construídas em torno do fetiche da polarização política e de sua mistificação das alternativas reformistas, que ao fim e ao cabo, só reafirmam as estruturas historicamente reacionárias que formaram a sociedade brasileira.
Assim, ao invés de definir se a produção artística, ou o artista mesmo, é de esquerda ou de direita, é mister tomar o ponto de partida do belo artístico, daquilo que significa o voo do espírito a se realizar como totalidade material, concreta, efetiva numa realidade social que deve ser apreendida nos mesmo termos. E daí, então, tirarmos as tarefas para a construção de uma sociedade menos desumanizada, menos coisificada. Pois, antes de encaixar as manifestações artísticas nos rótulos fáceis “direita” ou “esquerda”, está posto o desafio de perguntar sobre os fetiches, as mistificações, presentes neste exercício de rotulagem, que, no movimento do efetivo da conjuntura brasileira, se presta para colocar sob um manto de névoa experiências de governos reformistas, marcadas pela conciliação entre classes. Desse exercício, então, pode-se retirar as palavras “belo”, “arte”, “esquerda” do sequestro conservador a que correntemente estão submetidas.