Argélia: uma eleição presidencial para garantir a continuidade do sistema
As eleições convocadas pelo poder têm o único objetivo de assegurar a sua própria continuidade.
Antes mesmo do dia 12 de dezembro, em Paris, Nova Iorque e até em Montreal com uma temperatura de 13°C abaixo de zero, os argelinos se concentraram efm frente aos locais de votação para sensibilizar os eleitores a não apoiar a farsa eleitoral. Eles queriam, mesmo de longe, dar um exemplo para o povo argelino. Isto tem dado a população confiança para contestar essas eleições presidenciais convocadas pelo poder com o único fim de assegurar a sua continuidade.
22 de fevereiro de 2019 foi a primeira vez em que o povo se mobilizou em todo o país desde a Independência. Foi uma revolta contra a humilhação de ser governado por um morto vivo, uma foto numa moldura[1]. A candidatura de Bouteflika foi a gota que fez transbordar um vaso já bem cheio após 20 anos de deriva monárquica, de políticas de empobrecimento das grandes massas e de regressão de todas as liberdades fundamentais. Atacou sindicatos, associações, que foram fagocitadas pelo poder. Todas as intermediações sociais foram quebradas, em benefício de um consenso monárquico.
Um grande número de empresas estatais foram vendidas aos novos ricos. Bouteflika tentou emancipar-se do exército, acelerando a guerra de clãs para definir quem irá redistribuir a renda do petróleo, e para o proveito de quem. A guerra civil produziu uma profunda crise, com a impossibilidade de atuação política. Algumas regiões resistiram, em 2001 em Kabylia em particular, mas o processo não se generalizou. A situação atual é produto destes elementos.
Um movimento que nunca para
Na primeira tentativa de eleições presidenciais no início de março 2019, o povo tomou consciência da sua força, especialmente por volta do dia 8 de março e da greve geral que levou a uma racha no regime que resultou no sacrifício de Bouteflika, que encarnava a nova burguesia financeira. A saída de Bouteflika reforçou a confiança do povo. Isto levou ao fracasso das eleições de julho, porque o povo considerou que a ruptura com o poder não poderia ser alcançada através de uma eleição presidencial.
Durante o verão, o regime tentou se recompor. Em 12 de Setembro, o Chefe de Gabinete decidiu convocar eleições, e o presidente da Frente, Bensalah, convocou a eleição do 12 de dezembro. Durante esse tempo, as manifestações continuaram em Argel, como em todo o pais apesar do calor sufocante (50°C em Biskra) todas as semanas. O povo formulava as suas reinvindicações: “Yetnahaw Ga3” (“Fora todos!”), “yethasbou Ga3” (“Cadeia neles”) e “el Blad Bladna N’dirou raina” (“O pais e nosso, e mandamos nele”). Por trás deste slogan está o entendimento de que a independência foi confiscada pelo “exército das fronteiras”[2], a única força política organizada na época. Diz-se que enquanto toda a população era magra, estes “djoundis (combatentes) das fronteiras” eram gordos. O povo nunca foi consultado sobre como construir a Argélia. Tentativas de redigir uma constituição em 1963 foram controladas pelos militares.
No dia 13 de outubro, dia em que foi apresentado o projeto de lei sobre hidrocarbonetos, a mobilização foi significativa e o slogan “eles venderam o país” tomou ainda mais força. A questão social foi colocada. Em 1º de novembro, aniversário do início da Guerra da Independência, o povo saiu na rua para dizer “queremos continuar nossa revolução”, “queremos tomar o poder”, denunciando o poder atual como agente do colonialismo francês, Macron e Total. A lei foi escrita por uma empresa de consultoria americana! Houve também mobilizações contra a lei de finanças. Uma palavra de ordem resume bem a situação: “gás de xisto para os americanos, gás natural para os franceses, e para os argelinos, gás lacrimogêneo”.
Uma eleição ilegítima
Na quinta-feira, 12 de dezembro, dia das eleições, houve enormes mobilizações, entre as maiores desde o início do movimento. Mas ninguém falou sobre isso na França, porque os únicos aliados do regime são a França, os Estados Unidos, a China, os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita. Não tem apoio a nível popular.
Houve cooptação: o Conselho Constitucional, nomeado por Bouteflika, fez um fatwa para estender o mandato de Bensalah e do governo e mudar a composição do governo. A eleição do 12 de dezembro foi organizada por um governo ilegítimo, por um presidente ilegítimo, inclusive do ponto de vista da Constituição (que de fato deixou de ser aplicada desde 5 de julho), convocada de um quartel, para cooptar fantoches e assegurar a continuidade do regime neoliberal e antidemocrático.
Os locais da eleição na França foram protegidos pela polícia de choque francesa, enquanto os argelinos manifestaram pacificamente em frente à Embaixada em Paris. Na Argélia, dizem que 9 milhões de pessoas votaram, ou 39,9% de participação. Mas nenhum dos 8 canais de televisão conseguiu transmitir imagens de pessoas votando. Vimos soldados em filas, bem-disciplinados, indo votar, mas nada mais. Em Béjaïa, para ir votar, quebraram o muro entre o quartel e a escola, em vez de passar pela rua! O canal Al Magharibia, de influência islamista, que apoia o movimento e emite desde Paris, foi suspenso em outubro passado com o acordo do governo francês.
Nas duas semanas que antecederam as eleições, houve um bombardeio midiático: foi falado sobre a preocupação com os islamistas, mas eles não representam nada hoje em dia. Disseram-nos que o movimento era uma desordem Kabyle, mas foram feitas detenções em todo canto… e a bandeira Kabyle foi hasteada por todo o país. O governo denunciou uma suposta intervenção estrangeira, mas todos se lembram que os ministros franceses vieram durante anos para nos explicar que o nosso presidente era lúcido, inteligente, que ele tinha uma grande cultura quando já era um vegetal! Também se basearam numa resolução do Parlamento Europeu apelando à “libertação imediata e incondicional de todos os que são acusados de exercer o seu direito à liberdade de expressão”, para incitar o nacionalismo e organizar manifestações pelo poder… quando o poder tem acordos injustos com a União Europeia, por exemplo a implantação do sistema LMD na formação universitária, que contribui para bloquear o futuro da juventude argelina.
Tebboune, no seu discurso de posse, saudou os homens de negócios. Ele não saudou o povo em luta, nem os trabalhadores, nem os desempregados, nem as mulheres, nem mesmo os constituintes. Pelo contrário, ele tentou estimular o nacionalismo do povo. Na noite da eleição, quando Macron tomou “nota da eleição do Sr. Tebboune” e o Sr. Tebboune respondeu “não lhe responderei […], fui eleito pelo povo argelino e só reconheço o povo argelino”… depois passaram uma hora ao telefone… Como diz Mohammed Harbi, a França não deixou a Argélia, veio com o capitalismo, partiu e deixou o capitalismo.
Politização sem alternativa, sem um programa político
Em 12 de dezembro, o governo cooptou um presidente, Tebboune, que encarna a continuidade do sistema e os abismos da burocracia argelina, ex-ministro do Interior, ex-ministro da Habitação (um setor que rende), ex-primeiro-ministro de Bouteflika. O povo não aceita este presidente. Na sexta-feira 13, os manifestantes vieram com sacos de farinha e colocaram farinha no rosto, porque o filho de Tebboune está envolvido num caso de tráfico de cocaína. A maioria das palavras de ordem dizem respeito à ilegitimidade do presidente. Mas a retórica dominante propagada em particular na mídia é o alívio de finalmente ter um presidente. Haverá um retrocesso de mobilização. Isso já aconteceu quando Bouteflika se demitiu, porque parte do povo se levantou apenas contra a humilhação, e foi a juventude que impulso a continuação do movimento, frente as camadas mais abastecidas. Em março, abril e maio, a emigração clandestina (“Harraga”) praticamente desapareceu das estatísticas, porque tinha surgido uma esperança de mudança, mas ela foi voltou a aumentar durante o verão.
O movimento é pacifista porque o povo sabe que não tem condição de enfrentar militarmente o poder. A força da mobilização é o caráter maciço dos comícios de sexta-feira. No dia 12 de dezembro, 450 jovens foram presos em Oran. Em Bejaïa, foi organizada uma greve geral, com a participação dos sindicatos, antes de 12 de dezembro. Esta região, que acumulou tradições de organização desde os anos 80, com auto-organização, com manifestações em 1 de maio, com os mártires das mobilizações dos anos 80, tem o papel de pavimentar o caminho para todo o país.
O movimento é fundamentalmente democrático. Mas não há um fosso entre as questões democráticas e sociais. Em fevereiro, o PST foi a única organização a avançar a questão da Assembleia Constituinte. Uma das funções do Pacto pela Alternativa Democrática em que participamos é estruturar o debate, não deixamo-lo nas mãos de especialistas e tecnocratas. Algumas organizações do Pacto consideravam que a transição poderia passar por uma eleição presidencial…, mas o movimento forçou-as a evoluir. Outros querem negociar com Tebboune, que seguramente vai fazer ofertas. Mas até agora a força do movimento impede tal negociação, porque seu ponto de partida e o fim do sistema, e a única negociação possível é sobre a modalidade do fim, a transição.
Surgiu uma nova Argélia
Em relação às perspectivas, houve uma batalha, um primeiro tempo, que terminou. Vamos entrar numa segunda batalha, para acabar com o sistema. O movimento está produzindo as suas próprias alternativas. A alternativa, nós a chamamos de Assembleia Constituinte Soberana, tratando-se de redefinir a Argélia de amanhã, tal como os jovens de hoje a veem. Para repensar todas as questões democráticas e sociais: a situação das mulheres, que é uma questão muito importante, o lugar da religião, o direito ao trabalho, a distribuição da riqueza. Falamos de um processo constituinte soberano porque ele deve ocorrer sob controle popular, não deve ser elaborado por especialistas. Deve ser elaborado pelo povo organizado. E o povo começa a organizar-se, ao seu próprio ritmo: com debates públicos em muitas cidades em particular.
Qualquer que seja o resultado do movimento, haverá uma nova forma de se organizar, de fazer política.
As pessoas não se organizam com base num conceito, mas com base na realidade da situação, das necessidades. Por exemplo, em 2001, o movimento começou em 18 de abril e em 25 de abril saiu o primeiro apelo à auto-organização. Ele se organizou para enfrentar as mortes de jovens e para transformar os tumultos em ação consciente. Os primeiros comités populares organizaram a recuperação de pneus, tabaco etc. pilhados durante os motins. E, mais fundamentalmente, para enfrentar a repressão. Mas foi também o fruto da experiência da geração militante dos anos 80. O movimento atual vai seguir outro caminho. A auto-organização existe hoje sobre questões democráticas, especialmente a libertação dos presos, a solidariedade com as famílias necessitadas, o pagamento e o transporte de advogados e manifestantes para os julgamentos e para o debate… Foi também embrionária, mas muito eficaz na tentativa de evitar as eleições de 12 de Dezembro.
Se houver um processo constituinte, a auto-organização também tomará todo o seu lugar, porque não cabe ao aparelho de Estado organizar eeleições, cabe ao povo fazê-lo, porque é a única garantia para evitar fraudes e impor o controlo popular sobre os representantes eleitos. A consciência de hoje é sem precedentes desde a Independência.
[1] Bouteflika a tempo não participava de nenhum evento público, sendo representado por um retrato
[2] Este exército de 35 000 homens bem armados, chefiado pelo Coronel Boumédiène, ficou estacionado durante a guerra de independência fora das fronteiras da Argélia (parte no Marrocos e parte na Tunísia) e pouco participou do conflito. Isto gerou uma forte oposição e ressentimento da resistência interna, que careceu de reforços e armas, e culpou o “exército das fronteiras” pelo seu isolamento. Desde os primeiros dias da independência, o “exército das fronteiras” virou o exército argelino e foi o braço da militarização da sociedade argelina, com entre outros episódios, o golpe de Boumédiène contra Ben Bella.