Não, o coronavírus não é responsável pela queda nos preços das ações

Todos os fatores para uma nova crise financeira estão reunidos há vários anos, pelo menos desde 2017-2018.

Éric Toussaint 17 mar 2020, 17:44

Estamos assistindo a uma grande crise nas bolsas de Wall Street, da Europa, do Japão e de Xangai, e alguns culpam o coronavírus. Na última semana de fevereiro de 2020, a pior semana desde outubro de 2008, o Dow Jones caiu 12,4 %, o S&P 500 caiu 11,5 % e o Nasdaq Composite caiu 10,5 %. Mesmo cenário na Europa e na Ásia durante a última semana de fevereiro. Na Bolsa de Londres, o FTSE-100 caiu 11,32 %, em Paris o CAC40 caiu 12 %, em Frankfurt o DAX perdeu 12,44 %, na Bolsa de Tóquio o Nikkei caiu 9,6 %, as bolsas chinesas (Shanghai, Shenzhen e Hong Kong) também caíram. Na segunda-feira, 2 de março, após (promessas de) intervenções maciças dos bancos centrais para sustentar as bolsas, os índices voltaram a subir, com exceção de Londres. Na terça-feira, 3 de março, o banco central dos EUA, a Fed, em pânico, baixou sua taxa principal em 0,50 %, o que é uma queda considerável. A nova taxa de base da Fed está agora num intervalo de 1 a 1,25 %. Deve-se notar que a taxa de inflação nos Estados Unidos entre fevereiro de 2019 e janeiro de 2020 atingiu 2,5 %, o que significa que a taxa de juros reais da Fed é negativa. A grande imprensa escreve que esta medida se destina a apoiar a economia dos EUA ameaçada pela epidemia da COVID-19. O diário francês Le Figaro botou na manchete «Coronavirus precipita uma queda acentuada na taxa de juros de referência da FED» (https://www.lefigaro.fr/conjoncture/coronavirus-la-fed-baisse-ses-taux-de-0-5-point-a-la-surprise-generale-20200303 ver também em inglês https://edition.cnn.com/2020/03/03/investing/federal-reserve-interest-rate-cut-coronavirus-emergency/index.html). No entanto, a saúde da economia americana apresentava fraquezas muito antes dos primeiros casos de coronavírus na China e dos seus efeitos na economia mundial (ver https://www.cadtm.org/Panico-na-Reserva-Federal-e-retorno-ao-credit-crunch-num-oceano-de-dividas). Em suma, a Fed e a grande imprensa não falam a verdade quando explicam que a medida se destina a lidar com o coronavírus. Apesar da decisão da Fed, na terça-feira 3 de março, o S&P 500 caiu novamente 2,81 % e o Dow Jones caiu 2,9 % (https://edition.cnn.com/2020/03/03/investing/dow-stock-market-today/index.html). Nos dias 3 e 4 de março, várias bolsas de valores asiáticas também sofreram uma baixa. Não se deve excluir uma retomada na bolsa de Nova York no dia 4 de março para saudar o retorno de Joe Biden à corrida presidencial nos Estados Unidos durante as primárias democráticas no dia 3 de março, pois isso representa um alívio para eles diante de Bernie Sanders, que ainda assim permanece na liderança. Joe Biden é claramente o candidato do Establishment democrata e dos bilionários que apoiam esse partido. Note também que Donald Trump num tweet na semana passada ligou o seu destino ao da bolsa de valores em Wall Street. Em 26 de fevereiro, ele convidou seus colegas do 1 % mais rico a não vender suas ações e a apoiar a bolsa. Ele afirmou ainda que se for reeleito para a presidência dos Estados Unidos em outubro de 2020, o mercado acionário subirá enormemente, enquanto que se ele perder, haverá um crash no mercado acionário numa escala nunca vista antes (de acordo com o Financial Times, Trump anunciou que «O mercado saltará milhares e milhares de pontos se eu ganhar» … «e se eu não ganhar, você vai ver um crash como você nunca viu antes … Estou mesmo falando sério», https://www.ft.com/content/399783e2-57e9-11ea-a528-dd0f971febbc). O que vai acontecer nos detalhes nos mercados bolsistas nos próximos dias e semanas é imprevisível, mas é muito importante analisar as causas reais da atual crise financeira.

As principais mídias afirmam de forma ultra simplória que esta queda generalizada das bolsas de valores é causada pelo coronavírus e esta explicação é amplamente retomada nas redes sociais. No entanto, não é o coronavírus e sua expansão a causa da crise, a epidemia é apenas um elemento detonador. Todos os fatores para uma nova crise financeira estão reunidos há vários anos, pelo menos desde 2017-2018 (https://www.cadtm.org/Cedo-ou-tarde-surgira-nova-crise-financeira, de abril de 2018). Quando a atmosfera está saturada com materiais inflamáveis, a qualquer momento uma faísca pode causar uma explosão financeira. Era difícil prever de onde viria a faísca. A centelha age como detonador, mas não é a causa raiz da crise. Ainda não sabemos se a forte queda do mercado acionário no final de fevereiro de 2020 «degenerará» em uma enorme crise financeira. É uma possibilidade real. O fato de o crash bolsista coincidir com os efeitos da epidemia do coronavírus na economia produtiva não é uma coincidência, mas dizer que o coronavírus é a causa da crise é uma inverdade. É importante ver de onde vem realmente a crise e não se deixar enganar por explicações que erguem uma cortina de fumaça frente as verdadeiras causas.

As principais mídias afirmam de forma ultra simplória que a queda generalizada das bolsas de valores é causada pelo coronavírus […] Ora, a epidemia é apenas um elemento detonador. Todos os fatores para uma nova crise financeira estão reunidos pelo menos desde 2017-2018

O Grande Capital, os governos e as mídias a seu serviço têm todo o interesse em culpar um vírus do desenvolvimento de uma grande crise financeira e depois econômica, o que lhes permite lavar as mãos dele (desculpem a expressão).
A queda nos preços das ações foi prevista muito antes do aparecimento do coronavírus.

O preço das ações e o preço dos títulos de dívida (também chamados obrigações) subiram de forma totalmente exagerada em comparação com a evolução da produção nos últimos dez anos, com uma aceleração nos últimos dois ou três anos. A riqueza dos 1 % mais ricos da população também cresceu fortemente, uma vez que se baseia em grande parte no crescimento dos ativos financeiros.

É de salientar que o momento em que os preços da bolsa caem é o resultado de uma escolha (não falamos de conspiração): uma parte dos muito ricos (os 1 %, o Grande Capital) decidiu começar a vender as ações que adquiriu porque considera que cada festa financeira tem um fim, e em vez de a sofrer prefere tomar a liderança. Estes grandes acionistas preferem ser os primeiros a vender, a fim de obter o melhor preço possível antes da queda muito acentuada do preço das ações acontecer. Grandes empresas de investimento, grandes bancos, grandes empresas industriais e bilionários encaminham aos traders ordens de venda de parte das ações ou títulos de dívida privada (ou seja, obrigações) que possuem, para embolsar os 15 % ou 20 % de alta dos últimos anos. Acham que agora é o momento de fazê-lo: chamam isso realizar «os seus lucros». Na opinião deles, tanto faz se provocar um efeito manada de venda. O importante para eles é vender antes que outros o façam. Isto pode causar um efeito dominó e degenerar em uma crise generalizada. Eles sabem disso e pensam que eventualmente sairão dela sem grandes problemas, como aconteceu com muitos deles em 2007-2009. Este é particularmente o caso dos Estados Unidos, onde os dois principais fundos de investimento e gestão de ativos BlackRock e Vanguard têm se saído muito bem, assim como Goldman Sachs, Bank of America, Citigroup, Google, Apple, Amazon, Facebook, etc.

Outro ponto importante a salientar é que o 1 % (os muito ricos) vende ações de empresas privadas, o que provoca a queda dos preços das suas ações e leva à queda das bolsas. Ao mesmo tempo, porém, eles compram títulos da dívida pública que são considerados seguros. Este é particularmente o caso dos Estados Unidos, onde o preço dos títulos do Tesouro norte-americano subiu na sequência de uma procura muito forte. É de salientar que um aumento no preço dos títulos do tesouro nacional que são vendidos no mercado secundário tem o efeito de baixar o rendimento desses títulos. Os ricos que compram estes títulos do tesouro estão dispostos a receber um baixo rendimento, porque o que eles procuram é segurança num momento em que os preços das ações das empresas estão em queda. Portanto, é preciso salientar que, mais uma vez, são os títulos públicos que são considerados pelos mais ricos como os mais seguros. Não percamos isto de vista e estejamos preparados para o afirmar publicamente, porque devemos esperar que o conhecido refrão da crise da dívida pública e os receios dos mercados sobre os títulos do governo voltem em breve.

O Grande Capital (o 1 %) reduziu os investimentos na produção e aumentou os montantes em circulação na esfera financeira

Mas voltamos ao que vem acontecendo repetidamente há pouco mais de trinta anos, ou seja, desde que a ofensiva neoliberal e a grande desregulamentação dos mercados financeiros [1] se aprofundaram: o Grande Capital (o 1 %) reduziu a parte que investe na produção e aumentou a parte que coloca em circulação na esfera financeira (o que também é o caso de uma empresa «industrial» emblemática, como a Apple). O fez na década de 1980 e produziu a crise do mercado obrigacionista de 1987. Ele voltou a fazê-lo no final dos anos 90 e produziu as crises das dot-com e da Enron em 2001. Repetiu a dose entre 2004 e 2007 e produziu a crise dos subprimes, a crise dos produtos estruturados e uma série de falências de alto nível, incluindo a Lehman Brothers em 2008. Desta vez, o Grande Capital especulou principalmente na alta dos preços das ações nas bolsas e no preço dos títulos de dívida no mercado de obrigações (ou seja, o mercado onde ações de empresas privadas e títulos de dívida emitidos por governos e outras autoridades públicas são vendidos). Entre os fatores que levaram ao aumento extravagante dos preços dos ativos financeiros (ações da bolsa e títulos de dívida privada e pública) está a ação nefasta dos principais bancos centrais desde a crise financeira e econômica de 2007-2009. Analisei isto entre outras coisas em https://www.cadtm.org/A-crise-economica-e-os-bancos-centrais.

Este fenômeno não data, portanto, do dia seguinte à crise de 2008-2009; é um fenômeno recorrente no contexto da financeirização da economia capitalista. E antes disso, o sistema capitalista também tinha passado por importantes fases de financeirização tanto no século XIX como na década de 1920, o que levou à grande crise bolsista de 1929 e ao prolongado período de recessão da década de 1930. A seguir o fenômeno da financeirização e desregulamentação foi parcialmente inibido durante 40 anos após a Grande Depressão da década de 1930, a Segunda Guerra Mundial e a subsequente radicalização da luta de classes. Até o final da década de 1970, não teve maiores crises bancárias ou bolsistas. As crises bancária e bolsista reapareceram quando os governos deram ao Grande Capital a liberdade de fazer o que bem quisesse no sector financeiro.

As crises bancária e bolsista reapareceram quando os governos deram ao Grande Capital a liberdade de fazer o que bem quisesse no sector financeiro

Vamos voltar à situação dos últimos anos. O Grande Capital, que considera que a taxa de retorno que deriva da produção não é suficiente, desenvolve atividades financeiras não diretamente relacionadas com a produção. Isto não significa que abandona a produção, mas que desenvolve proporcionalmente mais os seus investimentos na esfera financeira do que os seus investimentos na esfera produtiva. Isto também é chamado de financeirização ou globalização financeirizada. O capital «lucra» com o capital fictício através de atividades em grande parte especulativas. Este desenvolvimento da esfera financeira aumenta a tomada de endividamento massivo pelas grandes corporações, incluindo empresas como a Apple (escrevi uma série de artigos sobre este assunto, ver: «A Montanha de Dívidas Privadas das Empresas Estará no Âmago da Próxima Crise Financeira»).

O capital fictício é uma forma do capital, desenvolve-se exclusivamente na esfera financeira sem qualquer ligação real com a produção (ver box: «O que é capital fictício?»). É fictício no sentido de que não se baseia diretamente na produção material e na exploração direta do trabalho humano e da natureza. Falo de exploração direta porque, obviamente, o capital fictício especula sobre o trabalho humano e a natureza, o que geralmente degrada as condições de vida dos trabalhadores e a própria natureza.

O que é capital fictício?

«O capital fictício é uma forma de capital (títulos da dívida pública, ações, dívidas) que circula enquanto os rendimentos da produção a que dão direito são meras promessas, cujo resultado é, por definição, incerto». Conversa com Cédric Durand conduzida por Florian Gulli, «Le capital fictif, Cédric Durand», La Revue du projet: http://projet.pcf.fr/70923.

De acordo com Michel Husson, «o quadro teórico de Marx permite-lhe a analise do “capital fictício”, que pode ser definido como o conjunto de ativos financeiros cujo valor se baseia na capitalização de um fluxo de rendimento futuro: «Chamamos à capitalização a constituição de capital fictício»» [Karl Marx, O Capital, Livro III]. Se uma ação proporcionar uma renda anual de £ 100 e a taxa de juros for de 5 %, seu valor capitalizado será de £ 2000. Mas este capital é fictício, na medida em que «não há absolutamente nenhum vestígio de qualquer ligação com o processo real de valorização do capital» [Karl Marx, O Capital, Livro III]. Michel Husson, «Marx et la finance: une approche actuelle», À l’Encontre, dezembro de 2011, https://alencontre.org/economie/marx-et-la-finance-une-approche-actuelle.html.

O capital fictício é uma forma de capital que se desenvolve exclusivamente na esfera financeira, sem ligação direta com a produção. É fictício no sentido de não assentar diretamente na produção material e na exploração direta do trabalho humano e da natureza

Para Jean-Marie Harribey: «As bolhas explodem quando a distância entre o valor realizado e o valor prometido se torna demasiado grande e alguns especuladores compreendem que as promessas de liquidação lucrativa não podem ser honradas para todos, ou seja, quando as mais-valias financeiras nunca poderão ser realizados por falta de mais-valias suficientes na produção». Jean-Marie Harribey, «La baudruche du capital fictif, lecture du Capital fictif de Cédric Durand», Les Possibles, N° 6 – Printemps 2015: https://france.attac.org/nos-publications/les-possibles/numero-6-printemps-2015/debats/article/la-baudruche-du-capital-fictif.

Leia também François Chesnais, «Capital fictif, dictature des actionnaires et des créanciers: enjeux du moment présent», Les Possibles, No. 6 – Printemps 2015: https://france.attac.org/nos-publications/les-possibles/numero-6-printemps-2015/debats/article/capital-fictif-dictature-des.

Concordo com Cédric Durand quando afirma: «Uma das principais consequências políticas desta análise é que a esquerda social e política deve tomar consciência do conteúdo de classe da noção de estabilidade financeira. Preservar a estabilidade financeira significa tornar realidade as alegações de capital fictício. Para libertar as nossas economias das garras do capital fictício, precisamos de nos empenhar na desacumulação financeira. Em termos concretos, isto refere-se, naturalmente, à questão da anulação da dívida pública e da dívida privada das famílias modestas, mas também à redução dos rendimentos das ações, o que se traduz mecanicamente numa redução da capitalização bolsista. Não se iludam, tais objetivos são muito ambiciosos: envolvem inevitavelmente a socialização do sistema financeiro e a ruptura com a livre circulação de capitais. Mas elas permitem-nos compreender precisamente algumas das condições necessárias para virar a página do neoliberalismo». Cédric Durand, «Sur le capital fictif, Réponse à Jean-Marie Harribey», Les Possibles, N° 6 – Printemps 2015: https://france.attac.org/nos-publications/les-possibles/numero-6-printemps-2015/debats/article/sur-le-capital-fictif

O capital fictício anseia captar parte da riqueza produzida na produção (os marxistas dizem que parte da mais-valia produzida pelos trabalhadore(a)s na esfera da produção) sem botar as mãos na massa, ou seja, sem ter de investir diretamente na produção (na forma de compra de máquinas, matérias-primas, pagamento pela força de trabalho humano sob a forma de salários, etc.). O capital fictício é uma ação cujo dono espera que ele pague um dividendo. Ele comprará uma ação Renault se prometer um bom dividendo, mas também pode vender esta ação para comprar uma ação General Electric ou Glaxo Smith Kline ou Nestlé ou Google se prometer um melhor dividendo. O capital fictício é também uma obrigação de dívida emitida por uma empresa ou um título da dívida pública. É também um derivado, um produto estruturado… O capital fictício pode dar a ilusão de que gera lucros por si só, ao mesmo tempo em que se desliga da produção. Traders, corretores ou gestores de grandes empresas estão convencidos de que estão «produzindo». Mas num dado momento, uma crise brutal irrompe e uma massa de capital fictício vira fumaça (queda dos preços nas bolsas, queda dos preços do mercado obrigacionista, queda dos preços do imobiliário…).

Traders, corretores ou gestores de grandes empresas estão convencidos de que estão «produzindo». Mas num dado momento, uma crise brutal irrompe e uma massa de capital fictício vira fumaça

O Grande Capital, repetidamente, quer acreditar ou fazer acreditar que é capaz de transformar chumbo em ouro na esfera financeira, mas periodicamente a realidade o castiga e a crise irrompe.

Quando a crise irrompe, é necessário distinguir entre o elemento detonador, por um lado (hoje a pandemia de coronavírus pode ser o detonador), e as causas profundas, por outro lado.

Nos últimos dois anos tem havido uma desaceleração muito significativa na produção material. Em várias economias importantes como Alemanha, Japão (último trimestre de 2019), França (último trimestre de 2019) e Itália, a produção industrial diminuiu ou desacelerou acentuadamente (China e Estados Unidos). Alguns setores industriais que haviam se recuperado após a crise de 2007-2009, como a indústria automotiva, entraram em uma crise muito forte durante os anos 2018-2019, com uma queda muito significativa nas vendas e na produção. A produção na Alemanha, o maior fabricante mundial de automóveis, caiu 14 % entre outubro de 2018 e outubro de 2019. [2] A produção automotiva nos Estados Unidos e na China também caiu em 2019, assim como a produção na Índia. A produção de carros na França cai drasticamente em 2020. A produção em outro carro-chefe da economia alemã, o setor que produz máquinas e equipamentos, caiu 4,4 % só em outubro de 2019. Este é também o caso do sector de maquinário e outros equipamentos industriais. O comércio internacional estagnou. Durante um período mais longo, a taxa de lucro diminuiu ou estagnou na produção material, enquanto os ganhos de produtividade também diminuíram.

Em 2018-2019, esses vários fenômenos de crise econômica na produção se manifestaram muito claramente, mas como a esfera financeira continuava a operar a pleno vapor, os principais meios de comunicação e governos estavam fazendo o máximo para afirmar que a situação era globalmente positiva e que aqueles que anunciavam uma próxima grande crise financeira, além de uma desaceleração acentuada da produção, eram apenas aves de mau augúrio.

O ponto de vista de classe social também é muito importante: para o Grande Capital, enquanto a roda da fortuna na esfera financeira continuar a girar, os jogadores continuam na roda e gostando da situação. O mesmo se aplica a todos os governantes, porque estão de fato ligados ao Grande Capital, tanto nas antigas economias industrializadas como a América do Norte, Europa Ocidental ou Japão, como na China, Rússia ou nas outras grandes economias chamadas emergentes.

Apesar de a produção real ter parado de crescer em 2019 ou ter começado a estagnar ou a diminuir, a esfera financeira continuou a expandir-se

Apesar de a produção real ter parado de crescer significativamente em 2019 ou ter começado a estagnar ou a diminuir, a esfera financeira continuou a expandir-se: os preços da bolsa continuaram a subir, atingindo mesmo máximos históricos, os preços dos títulos de dívida privada e pública continuaram a subir, os preços do imobiliário voltaram a subir numa série de economias, etc.

Em 2019, a produção desacelerou (China e Índia), estagnou (grande parte da Europa) ou começou a diminuir no segundo semestre do ano (Alemanha, Itália, Japão, França), sobretudo porque a procura global diminuiu: a maioria dos governos e dos empregadores interveio para baixar os salários e as pensões, o que reduziu o consumo porque o crescente endividamento das famílias não foi suficiente para compensar a queda dos rendimentos. Da mesma forma, os governos estão sustentando uma política de austeridade que leva a uma redução dos gastos públicos e dos investimentos públicos. A combinação da queda do poder de compra da maioria da população com o declínio das despesas públicas leva a uma queda da procura global e, portanto, parte da produção não encontra escoamentos suficientes, o que, por sua vez, leva a uma queda da atividade econômica. [3]

É importante esclarecer a nossa posição: estou falando de uma crise de produção, não porque eu seja um defensor do crescimento da produção. Sou a favor da organização (planeamento) do decrescimento para responder em particular à atual crise ecológica. Portanto, pessoalmente, a queda ou estagnação da produção a nível global não me preocupa, pelo contrário. Está tudo muito bem se forem produzidos menos carros e as vendas caírem. Mas para o sistema capitalista, não é a mesma coisa: o sistema capitalista precisa de desenvolver constantemente a produção e conquistar constantemente novos mercados. Quando não consegue ou quando começa a ficar apertado, responde à situação desenvolvendo a esfera da especulação financeira e emitindo cada vez mais capital fictício não diretamente ligado à esfera produtiva. Isto parece funcionar durante anos e, a dada altura, as bolhas especulativas explodam. Em vários momentos da história do capitalismo, a lógica da expansão permanente do sistema capitalista e da produção tem sido expressa por guerras comerciais (e isso é novamente o caso hoje, especialmente entre os Estados Unidos e seus principais parceiros) ou por guerras reais, e essa saída não é totalmente excluída hoje.

É necessário iniciar imediatamente e planificar urgentemente o decrescimento para combater a crise ecológica. É necessário produzir menos e melhor

Do ponto de vista das classes sociais exploradas e despojadas que constituem a esmagadora maioria da população (daí a imagem dos 99 % em oposição ao 1 %), a conclusão é claramente que devemos fazer uma ruptura radical com a lógica da acumulação de capital, seja ele produtivo ou financeiro, ou produtivo financeirizado, pouco importa o nome. Tem que iniciar imediatamente e planificar urgentemente o decrescimento para combater a crise ecológica. É necessário produzir menos e melhor. A produção de certos produtos vitais para o bem-estar da população deve crescer (construção e renovação de moradias decentes, transportes públicos, centros de saúde e hospitais, distribuição de água potável e tratamento de esgotos, escolas, etc.) e outras produções devem diminuir radicalmente (carros individuais) ou desaparecer (fabricação de armas). As emissões de gases com efeito de estufa devem ser reduzidas de forma drástica e abrupta. É necessário reconverter toda uma série de indústrias e atividades agrícolas. Uma grande parte, e em alguns casos a totalidade, da dívida pública deve ser cancelada. Bancos, seguradoras, o setor energético e outros setores estratégicos devem ser expropriados sem compensação e transferidos para o serviço público. Os bancos centrais devem ser encarregados de outras missões e dotados de outras estruturas. E tem outras medidas, tais como a implementação de uma reforma fiscal abrangente com um elevado imposto sobre o capital, uma redução global do horário de trabalho com contratações compensatórias e manutenção dos níveis salariais, serviços públicos de saúde gratuitos, educação, transportes públicos, medidas eficazes para garantir a igualdade de gênero. A riqueza deve ser distribuída com respeito pela justiça social e dando prioridade aos direitos humanos e ao respeito pelos frágeis equilíbrios ecológicos.

A grande massa da população que vê a sua renda real cair ou estagnar (ou seja, o seu poder de compra real) compensa esta queda ou estagnação recorrendo ao endividamento para manter o seu nível de consumo, inclusive em questões vitais (como encher a geladeira, como assegurar a escolaridade das crianças, como chegar ao trabalho se tiver que comprar um carro porque não há transporte público, como pagar por alguns cuidados de saúde, etc.). Soluções radicais devem ser encontradas para este crescente endividamento da maioria das pessoas ao redor do mundo e se deve recorrer ao cancelamento da dívida. Isto significa cancelar uma grande parte das dívidas domésticas privadas (incluindo dívidas de estudantes, dívidas hipotecárias abusivas, dívidas abusivas de consumo, dívidas abusivas ligadas a microcréditos etc.). É necessário aumentar a renda da maioria da população e melhorar muito a qualidade dos serviços públicos de saúde, educação, transporte público, praticando a gratuidade.

Devemos lutar contra a crise multidimensional do sistema capitalista e avançar resolutamente para uma saída ecologista-feminista-socialista. Esta é uma necessidade absoluta e imediata

Estamos enfrentando uma crise multidimensional do sistema capitalista mundial: crise econômica, crise comercial, crise ecológica, crise de várias instituições internacionais que fazem parte do sistema de dominação capitalista do planeta (OMC, NATO, G7, crise no Fed – o banco central dos Estados Unidos –, crise no Banco Central Europeu), crise política em países importantes (especialmente nos Estados Unidos entre os dois grandes partidos do grande capital). Na mente de muitas pessoas em muitos países, a rejeição do sistema capitalista é maior do que jamais foi nas últimas cinco décadas, desde o início da ofensiva neoliberal sob Pinochet (1973), Thatcher (1979) e Reagan (1980).

A abolição das dívidas ilegítimas, esta forma de capital fictício, deve fazer parte de um programa muito mais amplo de medidas adicionais. O ecossocialismo deve ser colocado no centro das soluções e não deve ser deixado de lado. Devemos liderar a luta contra a crise multidimensional do sistema capitalista e avançar resolutamente para uma saída ecologista-feminista-socialista. Esta é uma necessidade absoluta e imediata.

Reprodução da tradução de Alain Geffrouais para o CADTM.

Notas :
[1] Ver Éric Toussaint, Bancocratie, 2014, Capítulo 3 «De la financiarisation/dérèglementation des années 1980 à la crise de 2007-2008».

[2] A indústria automotiva alemã emprega 830.000 trabalhadores e 2.000.000 empregos relacionados dependem diretamente dela (Fonte: Financial Times, «German industrial output hit by downturn», 7-8 de dezembro de 2019).

[3] Quanto à explicação das crises, entre os economistas marxistas, «duas grandes «escolas» se confrontam: a que explica as crises pelo subconsumo das massas (a superprodução de bens de consumo); e a que as explica pela «superacumulação» (a insuficiência de lucro para continuar a expansão da produção de bens de capital). Esta disputa é apenas uma variante do velho debate entre os defensores da explicação das crises por «demanda agregada insuficiente» e os defensores da explicação das mesmas por «desproporcionalidade».» Ernest Mandel. La crise 1974-1982. Les faits. Leur interprétation marxiste, 1982, Paris, Flammarion, 302 p. No seguimento de Ernest Mandel, considero que a explicação da atual crise deve ter em conta vários fatores que não podem ser reduzidos a uma crise produzida pela superprodução de bens de consumo (e portanto pela procura insuficiente) ou pela acumulação excessiva de capital (e portanto pelo lucro insuficiente).


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