“A questão ecológica muda a nossa compreensão do que é o socialismo”

Michael Löwy concedeu entrevista após evento que celebrou 20 anos do Movimento Esquerda Socialsta.

No dia 15 de novembro de 2019, em São Paulo, o Movimento Esquerda Socialista celebrou seus 20 anos de história de luta, reunindo mais de 1300 militantes e amigos de nossa corrente na quadra do Sindicato dos Bancários, em São Paulo. Entre os diversos camaradas de organizações internacionais que saudaram o evento, estava Michael Löwy, dirigente da IV Internacional, sociólogo e militante revolucionário brasileiro há décadas radicado na França.

Em sua intervenção no encontro, Löwy valorizou a incorporação do MES à IV Internacional e destacou a gravidade da crise ecológica em todo o mundo, além da importância da incorporação do ecossocialismo como perspectiva estratégica dos revolucionários. Relembrando a batalha da Praça da Sé, em 1934, Löwy resgatou as lições da Frente Única Antifascista e da história de luta da classe trabalhadora brasileira.

A Revista Movimento encontrou-se com Michael Löwy ao fim do evento, num típico boteco do centro paulistano, a metros de onde há mais de oito décadas acontecera a “revoada das galinhas verdes”. Em nossa pauta, a trajetória de luta de Löwy e suas avaliações sobre a situação internacional e o governo Bolsonaro. Em particular, falamos sobre a perspectiva ecossocialista e os desafios do PSOL e da IV Internacional. Acompanhem a seguir.

Movimento – Michael, muito obrigado por conversar conosco. Estamos aqui no centro de São Paulo, neste evento que celebra 20 anos do Movimento Esquerda Socialista. Como você vê a cidade hoje, comparando-a com aquela em que você se formou nos anos 1950 e 1960?

Michael Löwy – Olha, é completamente diferente, mas continua sendo a mesma coisa: os pobres continuam sendo pobres, a classe dominante continua dominando e o capitalismo continua estragando a vida das pessoas. Por outro lado, mudou, claro, São Paulo virou um monstro, uma cidade de proporções desumanas. Não é só a cidade que mudou, mas a nossa compreensão dos problemas.

M – Vamos falar sobre essas diferenças…

ML – A principal coisa que mudou em relação ao que a gente pensava sobre o marxismo, o comunismo, o capitalismo e a luta de classes nos anos 1960 e 1970 é a questão ecológica. Como bem diz a Naomi Klein, muda tudo, sobretudo a questão da mudança climática. Muda a nossa compreensão do capitalismo – que continua não só explorador, responsável por monstruosas injustiças sociais e desigualdades – como um sistema destruidor da natureza, do meio ambiente e, portanto, em última análise, da própria vida humana. Então, as razões para lutar contra o capitalismo se multiplicaram: é ainda mais decisiva a necessidade de buscar uma alternativa e, mais do que nunca, a única alternativa é anticapitalista. A questão ecológica reforça nosso compromisso de lutar contra o capitalismo e o coloca de forma diferente: por isso falamos em ecossocialismo, já que a questão ecológica muda também a nossa compreensão do que é o socialismo, que é obviamente uma mudança na forma da propriedade, sem a qual não podemos avançar, mas é muito mais do que isto: é uma mudança no aparelho produtivo, nas fontes de energia, no padrão de consumo, no modo de transporte. Enfim, é toda a civilização capitalista industrial moderna que é questionada. A nossa concepção de socialismo enriqueceu-se e se radicalizou: ela exige uma leitura muito mais radical do padrão civilizatório burguês, colocando a questão da relação com o meio ambiente, com a natureza, com a mãe Terra no centro da reflexão, no centro do que nós entendemos como revolução e no centro do que entendemos como alternativa socialista. Então, essa é a grande mudança que ocorreu desde os anos da minha juventude até o que nós pensamos nos dias de hoje. Quando falo em nós, falo da IV Internacional, mas não só, já que a noção do ecossocialismo já tem um impacto mais geral.

M – De algum modo, então, nós começamos nossa conversa pelo fim, já que estamos hoje debatendo o reencontro entre o MES e a IV Internacional, além das novas discussões estratégicas e programáticas para os revolucionários. Antes de avançarmos, gostaríamos que você falasse de sua trajetória de militância. Temos debatido o combate ao governo Bolsonaro e a seu autoritarismo. Você foi parte de uma geração marcada pela experiência do golpe militar de 1964. Neste ano, por exemplo, completaram-se 50 anos da execução de Carlos Marighella, o que tem rememorado a resistência à ditadura. Como você viveu este período?

ML – Eu estava na Europa desde o começo dos anos 1960, desde 1961. Eu não vivi o golpe nem a resistência, mas acompanhei tudo isso de longe. Eu fui para estudar, fazer minha tese de doutorado com o Lucien Goldmanm. Depois, veio o golpe e eu acabei não voltando. Fiquei na Europa, vários países. Finalmente, fiquei na França, onde eu moro desde 1969. Não voltei ao Brasil depois do golpe. Fiquei um tempo apátrida porque a ditadura me confiscou o passaporte brasileiro. Eu participei, naturalmente, das campanhas de solidariedade à resistência contra a ditadura. Eu me lembro de ir conversar com o Jean-Paul Sartre em 1970 para ele ajudar a fazer um abaixo-assinado denunciando a tortura no Brasil. Enfim, eu vivi tudo isso de longe. Só voltei ao Brasil nos anos 1980 depois da anistia. Em 1979, foi a minha primeira visita ao Brasil, já participando do processo de fundação do PT, enfim, já nas fileiras da IV Internacional.

Você mencionou o Marighella e eu gostaria de falar uma palavra sobre ele. Na época, eu tinha uma grande admiração pelo Marighella, não só por ele, mas por todos que assumiram esse compromisso da resistência contra a ditadura. Já na IV Internacional, eu tentei fazer contato com pessoas que estavam representando a ALN na França. Bom, sempre tive esta admiração. Sempre que estou no Brasil, todos os anos, com a minha companheira, nós vamos à Alameda Casa Branca onde está aquela pedra em homenagem ao Marighella. Claro, a gente pode discutir nossas diferenças com sua estratégia e suas táticas, se estavam certas ou erradas. Todas as críticas são legítimas, mas não se pode negar a estatura moral dessas figuras como Marighella, como Toledo, como Lamarca, que se ergueram contra a ditadura, pegaram em armas contra a ditadura, então acho que se deve reconhecer essa grandeza moral, que é também política, naturalmente, mais além de todas as críticas que podem ser feitas. Eu sempre insisto nesse ponto.

M – Quando se deu sua adesão à IV Internacional?

ML – Foi em 1969. Eu fui um dos fundadores da Polop no Brasil. Quando houve o racha da Polop, os meus amigos mais próximos se empenharam num pequeno grupo chamado Partido Operário Comunista. Esse pessoal decidiu aderir à IV Internacional e eu estava de acordo com eles, de que aquela era uma opção justa. Então, alguns de nós fomos ao IX Congresso da IV Internacional, em 1969, e a partir daí nos integramos na IV Internacional. Como eu estava vivendo na França, eu me integrei na seção francesa da IV Internacional. Bom, este foi o meu percurso pessoal. Curiosamente, através do Brasil que eu me integrei na IV Internacional embora eu estivesse vivendo na França. Deixe eu contar uma brincadeira: quando eu era aluno na USP, um dos meus professores, que era reacionário, me deu uma nota muito baixa para um exame de Teoria Política, uma coisa que me interessava muito, e me disse o seguinte: senhor Michael, talvez algum dia o senhor se transforme num líder revolucionário, numa espécie de Lênin brasileiro, mas carreira acadêmica não é para você [risos]. Infelizmente, essa profecia não se realizou e não fiz mais do que uma carreira modesta como intelectual marxista e nunca me transformei no grande líder revolucionário do Brasil [risos].

M – A este respeito, talvez fosse interessante perguntarmos como você conciliou ambas as atividades, o que não parece ser sempre muito fácil, já que elas demandam características diferentes do indivíduo.

ML – Sem dúvida. Bem, na verdade eu comecei meu interesse pelas teorias sociais como um militante socialista, marxista, luxemburguista na verdade, nos anos 1950. Eu só fui estudar Ciências Sociais porque eu achava, um pouco por ilusão, que era alguma coisa que tinha relação com o socialismo. Então, para mim, sempre o interesse pela teoria veio pelo compromisso político. Sempre, para mim, os dois foram inseparáveis. É o que está no Marx, nas Teses sobre Feuerbach: a filosofia da práxis. Não se pode separar a filosofia da prática, os dois são interligados. E a minha experiência, em todos esses anos, é que a teoria só tem valor quando ela é dialeticamente vinculada à prática é a própria prática não pode ocorrer se não é iluminada pela teoria. Então, longe de os dois se contradizerem ou se oporem, os dois se reforçam mutuamente. Quer dizer, a teoria só tem realmente força transformadora se ela está vinculada a uma prática e a prática só tem uma capacidade revolucionária se ela está relacionada com uma teoria. As duas coisas são para mim não só dialeticamente inseparáveis, ligadas, mas elas se reforçam mutuamente. Esta é a minha experiência. Bom, claro, em alguns momentos você privilegia mais uma frente ou outra. Você tem que buscar um equilíbrio na maneira como você organiza a sua vida pessoal, mas, digamos, o princípio é este: como dizia Lênin, sem teoria revolucionária, não há prática revolucionária e – eu diria – vice-versa: sem prática revolucionária, não há teoria revolucionária. A moral da história é esta.

M – Você nos falava do seu retorno ao Brasil em 1979, quase 20 anos após deixar o país, num momento de efervescência política, com a criação do PT. Você esteve vinculado a este processo, então com a Democracia Socialista, e acompanhou o desenvolvimento futuro do PT. Que balanço você faz desta experiência?

ML – Bem, desde o início eu aderi ao projeto do PT – não sozinho, mas com meus companheiros brasileiros numa organização revolucionária marxista, a Democracia Socialista, que entrou no PT. Eu, naturalmente, acompanhei o processo com muito entusiasmo e, para mim – que quase em toda a minha vida, sobretudo no Brasil, mas mesmo na França, sempre fiz parte de pequenas organizações um pouco marginais –, o fato de participar de uma organização com centenas de milhares de aderentes, com implantação na classe operária e nas fábricas era uma coisa formidável, uma experiência realmente muito entusiasmante. Então, a gente se jogou nisso inteiramente, esperando que este partido seria, senão um partido revolucionário, um partido de luta de classes – o que ele foi no começo. Podemos discutir até quando, mas acho que ele foi um partido de luta de classes e mesmo, eu diria, um partido anticapitalista porque, no congresso de 1990, foi aprovado um documento, que eu acho muito interessante, chamado O socialismo petista, que é um documento que diz claramente: “Nós somos anticapitalistas e o capitalismo é contrário à democracia. Então, nosso socialismo é anticapitalista e por isto nós nos dissociamos da social-democracia”. É um documento muito interessante, com alguns aspectos que nós podemos criticar, mas que foi muito interessante. Eu acho que nós, que saímos do PT já há muito tempo, devemos reclamar este documento e esta herança anticapitalista do PT, que foi pouco a pouco se diluindo, na medida em que o partido foi assumindo posições no aparelho do Estado burguês, mas eu acho que pelo menos até o começo dos anos 2000, até o momento da virada, com a eleição do Lula – e mesmo antes, com a famosa “Carta aos brasileiros”… Bom, aí é o momento da virada em que o PT, de forma explícita, assume o compromisso com o Estado burguês. A partir daí, começa um itinerário de compromisso com as classes dominantes, que vai se afirmar bastante rapidamente e que nós da IV Internacional acompanhamos sempre com maiores preocupações até que em 2003, se não me engano, nós mandamos uma carta da IV Internacional aos nossos companheiros da Democracia Socialista, dizendo: bom, chegou o momento de vocês saírem desse governo porque ele não corresponde à nossa concepção da luta socialista. Infelizmente, a maioria dos nossos companheiros não aceitou isto e, a partir daí, nossos caminhos se separaram. Desde então, nós apoiamos e participamos dessa nova aventura que é o PSOL, com a esperança de que ele vai ser a vanguarda da luta contra o capitalismo no Brasil.

M – Fale-nos, então, sobre sua avaliação a respeito dos desafios da construção do PSOL.

ML – Eu acho que tem uma expressão, não sei de quem, de que a democracia não é boa, mas os outros regimes são piores [risos], tampouco o PSOL está longe de ser o ideal, que nós gostaríamos, em termos de partido de classe e revolucionário, mas é de longe a formação política mais interessante de que nós dispomos no Brasil atualmente, portanto nós precisamos apostar em construir o PSOL, ajudá-lo a tomar uma orientação de classe, anticapitalista, a criar raízes nos movimentos sociais, na classe trabalhadora e a desenvolver um programa radical, um programa ecossocialista, o que eu acho muito importante. Então, todos esses desafios estão colocados, mas a aposta nossa é que através do PSOL a gente possa avançar nessa agenda. Agora, é claro que o PSOL tem muitos limites e questões internas, falta de inserção social, mas houve grandes avanços. A representação parlamentar do PSOL ampliou-se não só em números, mas ela ganhou uma qualidade nova com essa geração de jovens mulheres, muitas delas negras. Acho isto formidável e é um elemento de grande esperança. Então, acho que há muitos aspectos positivos e o trabalho que vocês vêm fazendo com a juventude e com o Emancipa é uma dessas experiências muito encorajadoras que estão se dando no interior do PSOL.

M – A despeito das diferenças entre Bolsonaro e os governos brasileiros anteriores, talvez pudéssemos apontar, como aspecto comum, a aposta no extrativismo e no agronegócio como modelo de desenvolvimento para o Brasil. Como seria possível discutir as questões sensíveis ao ecossocialismo dialogando, ao mesmo tempo, com elementos concretos como a necessidade de desenvolvimento econômico do país?

ML – Eu acho que não se trata só de extrativismo, mas de maneira mais geral do que poderíamos chamar de ideologia desenvolvimentista. A ideia de que desenvolver as forças produtivas capitalistas é o caminho para o progresso, que seria preciso produzir mais bens de importação, mais matéria-prima, automóveis etc. Há uma noção produtivista e desenvolvimentista, a partir da qual se acredita que desenvolvendo as forças produtivas do capitalismo estamos caminhando em direção ao progresso e mesmo ao socialismo. É esse esquema que precisamos romper e tentar explicar que sim, o Brasil e os países do Sul precisam de desenvolvimento, mas não desse desenvolvimento capitalista destruidor do meio ambiente e da natureza. Precisamos de outro modelo de desenvolvimento, baseado na satisfação das necessidades sociais. Precisamos produzir, em primeiro lugar, uma comida não envenenada para a maioria do povo brasileiro e não commodities para o mercado mundial. Essa é a ruptura fundamental a partir da qual poderemos repensar o que é a economia, para que ela serve. O objetivo não é produzir mais e mais mercadorias, mas produzir bens ultra essenciais de necessidade social para a maioria da população. Isso significa naturalmente uma ruptura com o capitalismo. Há de haver um processo de transição ao ecossocialismo com uma planificação democrática e ecológica. Esta seria, digamos, a estratégia. Agora, temos que partir de aqui e agora, não é?  Então o mais importante é o que a Naomi Klein chamava de blockadia, bloquear os projetos mais nocivos do capital, da classe dominante e da oligarquia e, hoje em dia, do neofascismo que está no poder.

Você tem razão ao apontar a continuidade nessa ideologia extrativista e desenvolvimentista. Mas eu insistiria que, com o Bolsonaro, existe um salto qualitativo. É um projeto explicitamente destruidor do meio ambiente e da Amazônia. É uma atitude de desprezo total em relação às comunidades indígenas. Há uma disposição a entregar completamente a Amazônia ao agronegócio. Agora autorizaram a cana de açúcar, que até então estava proibida, por exemplo. Realmente, há um projeto herbicida representado pelo neofascismo do Bolsonaro. Então, eu acho que esse é o nosso inimigo agora e precisamos tentar construir uma relação de forças para bloquear essa política criminosa em todos os seus aspectos, a começar pela Amazônia. A batalha pela Amazônia é fundamental para o Brasil. Ela é do interesse não só das comunidades indígenas, obviamente, que estão na primeira linha e precisam de nossa solidariedade, mas também de todo o povo brasileiro. Se acabar com a Amazônia, vão acabar com a chuva e o sul do Brasil vai virar um deserto. Então, é uma luta fundamental dos povos da Amazônia, do povo brasileiro e da humanidade, uma vez que ela é fundamental para o equilíbrio climático mundial. A causa da Amazônia é uma causa popular-camponesa de todo o povo brasileiro e de toda a humanidade. Enquanto marxistas e ecossocialistas, nós temos que assumir essa luta para tentar bloquear a ofensiva capitalista neofacista da Amazônia. Mas é claro que temos que assumir em todas as frentes a luta pelo ecossocialismo começando com coisas concretas como essa.

Não basta fazer a propaganda do ecossocialismo: é necessário também se inserir nas lutas como, por exemplo, pelo passe livre. Esta também é uma luta social e ecológica muito importante. Sabemos que, no dia em que o transporte público for gratuito, a quantidade de automóveis irá diminuir e isso melhorará a saúde da população das cidades e vai reduzir as emissões de gases, então esse tipo de combate também é fundamental. Outro exemplo é a luta do MST contra os pesticidas e os venenos por uma agroecologia. Foi bom que eles deram essa guinada ecológica. É preciso também apoiar essa luta do MST.

Há várias frentes com que nós devemos contribuir, ajudar o PSOL a participar e levar a essas lutas a nossa mensagem anticapitalista, explicando que a luta concreta é evidentemente fundamental, mas que, em última análise, para resolver os problemas econômicos, sociais e ecológicos do país, é necessário romper com o capitalismo. É necessário levar uma mensagem anticapitalista e ecossocialista. Mas não existe muito sentido em ficarmos apenas na propaganda abstrata: é necessário levar isso para dentro das lutas dos movimentos concretos que estão hoje em dia resistindo à ofensiva ecocida do capitalismo.

M – Nós já falamos da desastrosa política ambiental de Bolsonaro, que tem sido um dos principais alvos de críticas sobre o governo para o público brasileiro e também internacional. Mas Bolsonaro não parece ser um caso isolado. Como você e a IV Internacional avaliam a ascensão de plataformas neofascistas no mundo?

ML – Obviamente que o fenômeno neofascista é internacional. Há o Trump nos EUA, o Bolsonaro no Brasil, em vários países da Europa há manifestações semelhantes, o Modi na Índia, o Shinzo Abe no Japão, é uma lista muito grande. Então, obviamente que é um enfrentamento internacional. E, por enquanto, ainda não existe uma frente única antifascista internacional. Os enfrentamentos se dão ainda a nível nacional, regional. O Pedro Fuentes me enviou há pouco tempo um documento engraçado: era um boletim de um pessoal de extrema-direita ligado ao Trump. No documento, eles se queixam de que há uma conspiração do DSA estadunidense com o PSOL e com a IV Internacional para derrubar Trump e Bolsonaro. Um pouco exagerado, certo? Mas demonstra como é importante costurar relações entre as forças de esquerda radical, socialistas e anticapitalistas que estão lutando contra esses movimentos neofascistas. Então, a relação entre o PSOL e o DSA é muito importante e a IV Internacional, modestamente, está contribuindo para isso.

É preciso avançar passo a passo. Nós estamos agora tentando organizar no Brasil, com alguns companheiros intelectuais e militantes, algo que vai se chamar o “Encontro em Defesa da Cultura contra o Neofascismo”. Vamos trazer artistas e intelectuais de vários países para fazer um encontro a se discutir o que é o neofascismo e como combatê-lo. São pequenos passos, modestos, para tentar costurar uma rede de luta contra o assenso do neofascismo.

M – Essa vai ser uma iniciativa da IV Internacional?

ML – Não. Nós participaremos dela, evidentemente, mas a ideia é que não seja algo restrito apenas à IV Internacional e sim uma coisa mais ampla. Houve também em 1935, em Paris, um encontro em defesa da cultura contra o fascismo, só que, nessa época, os stalinistas eram hegemônicos. Desta vez, em São Paulo, a hegemonia será dos marxistas revolucionários. O stalinismo, se participar, será de forma mais marginal. Alguma coisa mudou nesse quesito…

M – Chama a atenção, no bolsonarismo, a articulação de diferentes movimentos conservadores, entre os quais estão certas lideranças neopentecostais brasileiras. Você já escreveu que é um equívoco entender a abordagem marxista da religião como aquela ideia de que ela seria simplesmente o ópio do povo. Como você acha que os marxistas devem tratar fenômenos religiosos como esses?

ML – É verdade que certos movimentos religiosos, como essas igrejas neopentecostais, se parecem muito com o ópio do povo. Contudo, não podemos generalizar, seria um erro da parte dos marxistas e dos revolucionários levar uma batalha em nome do ateísmo contra a religião. Nós temos que partir da ideia de que nós respeitamos as convicções religiosas de todas as pessoas, sejam elas evangélicas, católicas ou do candomblé. O que nós denunciamos é a utilização da religião a serviço de fins políticos reacionários, do capitalismo e do neofascismo. Nós não denunciamos a religião, a fé e o evangelho. Isso nós respeitamos.

A Rosa Luxemburgo tem um artigo muito interessante – ela, que era judia e ateia – sobre a Igreja e socialismo. Ela se pergunta: quais são os valores originários do cristianismo? A comunidade, a igualdade, a partilha… Eles eram comunistas no sentido amplo da palavra. E quem são os herdeiros dos primeiros cristãos? Somos nós, os socialistas de hoje! Quem está traindo esses valores são as igrejas aliadas à burguesia e ao capital. Acho que é esse tipo de argumento que devemos utilizar. Nós devemos buscar a aliança com aquelas correntes religiosas, de pessoas que têm fé, que estão no campo da esquerda, da luta dos oprimidos e do socialismo. Devemos buscar aliança com eles, que são um componente importante da esquerda no Brasil. A nossa luta não é em nome do materialismo ateu e da ciência contra a religião, mas sim uma luta contra o capitalismo. O Frei Beto, que é uma pessoa pela qual tenho muito apreço e respeito, quando foi preso, à época da ditadura, foi interpelado por um policial que o perguntou: como o senhor, que é um frei da igreja católica, colabora com esses comunistas ateus? Ele respondeu: para mim, a humanidade não se define entre ateus ou crentes, mas ela se define entre opressores e oprimidos. Essa lição vale para nós também.

M – Ou seja, há todo um diálogo a se estabelecer…

ML – Exatamente. Mais que um diálogo, uma convergência na luta contra os nossos inimigos, que são o neofascismo e o capitalismo.                     

M – Hoje, no evento de comemoração dos 20 anos do MES, você falou a respeito do processo de aproximação e reagrupamento entre o MES e nossa tradição do trotskismo e a IV Internacional e sua tradição do trotskismo. Como forma de encerrar esta entrevista, gostaríamos que você falasse um pouco mais sobre como a IV Internacional tem visto esta aproximação.

ML – Eu acho que nós temos que ver isso como um processo, que foi se dando nos últimos anos, de aproximação e de conhecimento mútuo que desembocou com esse primeiro ato, muito importante, da adesão dos companheiros do MES à IV Internacional, em um primeiro momento, com o estatuto de grupo simpatizante. Nós achamos que a IV Internacional tem vocação para reagrupar várias correntes que vêm do trotskismo, mas também que não são do trotskismo. Temos hoje, na IV Internacional, por exemplo, partidos que vieram do maoísmo. Nós não temos uma visão estreita de que a IV Internacional é só aqueles que estão conosco desde os primórdios em função do que seria uma ortodoxia. Nós achamos que ela tem essa vocação para atrair forças revolucionárias que vêm de origens políticas distintas, de outras correntes do trotskismo e de outras correntes de pensamento revolucionário que veem a IV Internacional hoje, apesar de todos os seus problemas e limites, como a única organização internacional com presença em vários países e com participação nas lutas.

Eu acho que foi isso que se deu com o MES. Como eu disse, é um processo que vai continuar com outros desdobramentos. Nós estamos vendo e acompanhando o desenvolvimento político do MES, seja em relação ao seu trabalho com a juventude ou sua evolução programática com a inclusão do ecossocialismo, por exemplo. São coisas que vão nos aproximando. Eu imagino que a tendência é de fato chegarmos a uma fusão no sentido pleno da palavra. É claro que isso passará por outras mediações: há outros grupos que reivindicam a IV Internacional no Brasil e as relações às vezes são um pouco complicadas, mas eu sou relativamente otimista. Acredito que esse processo avançará e chegaremos ao dia em que haverá uma grande seção da IV Internacional no Brasil com companheiros de várias origens e experiências.

M – Há alguma última mensagem que você gostaria de deixar aos militantes do MES e aos demais leitores da Revista Movimento nesse momento de comemoração dos 20 anos de nossa corrente?

ML – É como eu dizia em minha intervenção: para nós é uma grande satisfação podermos nos associar ao vigésimo aniversário do MES e termos o MES nas fileiras da IV Internacional. Achamos que a colaboração política e intelectual cada vez mais orgânica entre o MES e a IV Internacional é o caminho do futuro.


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