Coronavírus e os limites morais do capitalismo pelo viés de Hobbes à Marx

Reflexões a partir de clássicos do pensamento político moderno.

Marcelo Vinicius Miranda Barros 17 abr 2020, 13:54

O filósofo Thomas Hobbes, que viveu entre o século XVI e XVII – que, por sinal, é também no século XVII que são difundidos os alicerces do capitalismo industrial na Inglaterra com a Revolução Gloriosa –, posicionava-se a favor da ideia de um Estado que deveria ser a instituição essencial para administrar às relações humanas, devido à condição natural dos humanos que é impulsionada à realização de seus desejos a qualquer custo, de forma violenta e egoísta. Portanto, segundo Hobbes, “se dois homens desejam a mesma coisa […] eles tornam-se inimigos” (HOBBES, 1988, p. 74-75).

Já o filósofo Karl Marx, no século XIX, alerta-nos para outra perspectiva sobe o Estado. Grosso modo, agora na modernidade, as relações humanas não são mais reguladas pelo Estado, de fato, mas sim pelos meios de produção. Inclusive, para Marx, o Estado existe para servir a uma classe, aquela que é a dominante e que busca explorar as demais classes. Aqui fica o perigo: a forma de pensar o mundo está atrelada ao modo de produção que, no nosso caso, é o capitalismo. “Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, ao contrário, são as relações de produção que ele contrai que determinam a sua consciência” (MARX; ENGELS, n/d, p. 21-23).

Um fato do pensamento hobbesiano, na atualidade, expressa-se na crise do coronavírus que reparte a Europa e põe em risco a união continental. Países mais ricos da União Européia não querem compartilhar dívida com vizinhos do Mediterrâneo.

Assim, os italianos se sentem traídos pela União Européia (EU) diante do descaso com a situação do seu país. Eles são os mais afetados pelo coronavírus, por isso não compreendem a resistência à emissão dos chamados “coronabonds”. Devido a isso, a Itália ameaça sair da União Européia, aumentando a ferida no grande sonho de unidade, sonho esse já debilitado pela saída do Reino Unido.

Também a Espanha reivindica um método de dívida compartilhada, que são tais títulos apelidados de “coronabonds”, mas países mais ricos, como Alemanha, Áustria e Holanda, negam a se comprometer com um empréstimo conjunto.

Esses casos na crise política internacional desvelam interesses próprios que se sobrepõem ao espírito de solidariedade, que é uma das bases da UE, no período em que o continente encara seu maior desafio desde a Segunda Guerra Mundial.

A justificativa da UE de não apoiar os países mais necessitados é o fato deles estarem endividados, mas isso não justifica a ausência de apoios, já que agora não se trata somente de um problema econômico, mas sim de vidas humanas. O pensamento hobbesiano que nos parece tão presente nesse caso, carrega, na verdade, como base, os meios de modo de produção capitalista bem apresentado pela filosofia marxiana, pelos quais a ideologia de lucro em detrimento do outro é uma característica, afinal, como visto, as relações de produção é que determinam a consciência humana, ou seja, determina a forma de ver e se relacionar com o mundo e com o outro. Dentro dessa lógica, constatamos a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, com o apoio da Áustria e Holanda, rejeitando as referidas propostas, mostrando do mesmo modo o quanto a União Européia só é unida quando convém aos mais fortes.

Além disso, mesmo negando, há ainda os Estados Unidos “pirateando” e desviando equipamentos de tratamentos contra o coronavírus que iriam para Alemanha, França e Brasil. “Não queremos outros conseguindo máscaras”, disse Trump, o presidente dos EUA[1].

É dessa forma que funciona a abatida moral capitalista. Estamos falando de vidas humanas, pessoas morrendo e, mesmo assim, países negando ajuda aos outros países que estão falecendo. Ao mesmo tempo, esses países que negam tal ajuda, por sua vez, foram roubados pelos Estados Unidos. O fato é que é cada um por si.

Apesar de premissas diferentes, Hobbes disse: “o homem é o lobo do homem”; já Marx afirmou que há a “exploração do homem pelo homem”. Nessas perspectivas, depois dessa pandemia, o mundo não será mais o mesmo. As máscaras caem cada vez mais. Bem-vindo ao capitalismo mais despido. Hobbes e Marx, cada um a sua maneira, mantém-se “vivos” em nossa época, na qual a pandemia do coronavírus deflagrou a pandemia de vírus ideológicos ocultos em nossa sociedade capitalista. Mas, por outro lado, enquanto o coronavírus nos coloca em quarentena, ao mesmo tempo, ele “nos sujeita” a recriar uma sociedade alicerçada na confiança nos seres humanos e na ciência, pelo menos se Hobbes não tiver acertado em absoluto a respeito da tal natureza humana.

Referências

HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção Os Pensadores. (1º volume). 4ª Edição, Nova Cultural, 1988.

MARX, K; ENGELS, F. Obras escolhidas. Vol. 1. São Paulo: Alfa-Ômega, s/d.


[1] Vide, por exemplo, o Jornal G1. ‘Não queremos outros conseguindo máscaras’, diz Trump sobre equipamentos em produção contra o coronavírus. Publicado em 04/04/2020.


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