Ken Loach: retratos da classe trabalhadora precarizada

Ken Loach nos conduz por uma trama realista e sensível acerca do trabalho e das famílias operárias nos dias de hoje.

Israel Dutra 15 abr 2020, 21:02

O ícone do aplicativo está na tela do nosso celular e no uniforme ou adesivo do trabalhador que entrega nas ruas a mercadoria. Uber, Rappi, Glovo, entre outros. Alguns defendem que esse é o emblema do que chamam de “indústria 4.0” ou “quarta revolução industrial”. Das grandes concentrações de Bombaim ao bairro de Santa Ifigênia em São Paulo, de carro, moto, vans ou bicicletas, os “proletários do tempo presente” seguem não tendo mais do que sua família e suas dívidas bancárias.

É nesse cenário que Ken Loach apresenta sua nova obra de arte, o filme “Você não estava aqui”. Há aqui uma trágica coincidência: o filme estreou nos cinemas do mundo no final de 2019, meses antes do planeta entrar em “modo delivery”. A pandemia e a nova depressão vão aprofundar as contradições do capitalismo.

A relação de trabalho por detrás dessa modalidade é ainda mais precária e instável do que a forma das entregas. A desvalorização salarial e os contratos de trabalho sem quaisquer garantias flertam com a ideologia sádica do “empreendedorismo”.

Ken Loach, o grande cineasta, com raízes no marxismo revolucionário, nos conduz por uma trama realista e sensível acerca do trabalho e das famílias operárias nos dias de hoje. Aproveite e conheça mais a obra desse gênio durante a quarentena. Vai valer a pena.

A safra da razão crítica

As situações excepcionais da humanidade encontraram correspondência em grandes obras cinematográficas, muitas das quais fundaram verdadeiras escolas de cinema. A Revolução Russa, com Eisenstein; todo o cinema de guerra; o pulso libertário da nouvelle vague francesa, acompanhando a explosão libertária dos anos 1960; o cinema italiano como recorte histórico; as obras dos poloneses… Mesmo Holywood, com suas inúmeras fases, expressa tal relação: sem o movimento antiguerra não teríamos obras como “Platoon”, “Nascido para matar” ou “Apocalipse now”.

Nos dias de hoje, com o crescimento do formato streaming, o acesso a inúmeras séries e filmes diversifica o conteúdo da cultura cinematográfica. A era digital propiciou novas formas de “reprodutibilidade da técnica” para usar o conceito de Benjamim. Nesse terreno, ainda em desenvolvimento, os novos produtores e roteiristas estão inovando ao retornar com força à temática social.

A última temporada nos brindou com uma bela safra de filmes críticos com contexto social: a máxima expressão foi a vitória, no Oscar, de “Parasita”, do coreano Bong Joon-ho (que, como curiosidade, foi militante da esquerda radical quando jovem). Além disso, filmes como “Coringa”, “Bacurau” e “Fim de Festa” lotaram salas entre 2019 e 2020, sendo considerados sucessos de público e crítica. Dessa safra de qualidade extraordinária, destacaria “Em Guerra”, “Os miseráveis” e, por fim, “Você não estava aqui”, de Loach, que tratamos nessa resenha.

Ken Loach, militante da sétima arte

Ken Loach é considerado um dos maiores gênios do cinema contemporâneo. Além do rigor artístico, nunca abandonou a trincheira militante, sempre engajado em campanhas internacionalistas em defesa dos imigrantes, a favor da Palestina e ao lado da esquerda radical. Aos 83 anos de idade, mais velho do que seus contemporâneos de luta política, como Corbyn e Sanders, Ken Loach mantém o vigor da batalha das ideias.

Seus filmes formaram toda uma geração: seu olhar agudo combina um enfoque extremamente sensível com uma crítica social inteligente. Como esquecer “Terra e Liberdade”, onde conta a grandeza moral do combate do POUM contra o stalinismo nas barricadas da guerra civil espanhola; ou a disputa política que opõe e separa dois irmãos nas divergências internas da luta armada republicana irlandesa em “Ventos da liberdade”; ou a beleza das tradições e da auto-organização da classe trabalhadora em “Jimmy’s Hall”; ou a luta nicaraguense retratada em “Canção para Carla”? Sua extensa filmografia – com documentários inesquecíveis como “11/09” e “O Espírito de 1945” – traz clássicos como “Pão e Rosas”, “Apenas mais um beijo”, “A procura de Eric”, “Rota Irlandesa” e um dos mais recentes “Eu, Daniel Blake”, que ganhou a Palma de Ouro (Cannes, 2016).

Os protagonistas de Ken Loach são trabalhadoras e trabalhadores. Gente simples, da classe trabalhadora, como qualquer um de nós, sem superpoderes ou refino, vivendo os dramas do real.

A lente sensível sobre a condição de classe

“Você não estava aqui” é um filme de combate e atual. Arriscaria dizer que foi a melhor expressão sobre as reais condições de vida da maioria da população nesse tempo histórico. Loach construiu com seu parceiro de sempre, o roteirista Paul Laverty, um enredo que desenvolve de forma simples a rotina de uma família trabalhadora em 2019. O drama realista de “Você…” tem como ponto de partida, concreto sensível, a estrutura familiar e suas relações. Essa abordagem é comum a vários filmes de Ken Loach, formado na tradição da classe operária inglesa. A história se passa em Newcastle, norte da Inglaterra, tendo como protagonista Rick Turner, ex-operário da construção civil, que busca se recuperar da crise financeira atuando no ramo de entregas. Para financiar a van que vai dispor à empresa de entregas, Rick empenha boa parte das economias familiares, especialmente o automóvel de Abbie, sua esposa, que trabalha a domicílio como cuidadora de idosos e pessoas que necessitam de tratamentos especiais.  O núcleo familiar completa-se com um jovem problemático, Seb, que abandona a escola para se dedicar ao grafite e à pixação, e com a caçula, Liza, criança inteligente que percebe a ausência dos pais e crise familiar. 

A nova forma de trabalho de Rick é permeada pela visão de que ele próprio é seu patrão. A empresa a que ele vende seu trabalho (com seu próprio meio de transporte) fornece-lhe um roteiro, um supervisor e um aparelho eletrônico que identifica toda a sua movimentação. Também lhe oferece, ironicamente, uma garrafa vazia para que possa urinar, nos poucos minutos disponíveis, sem que possa sequer ir ao banheiro.  E o mundo urbano, com um trânsito atroz, é o teatro de operações do capitalismo selvagem. Abbie, agora sem poder se locomover de carro para seu trabalho a domicílio, tem cada vez menos tempo fora do trabalho e dos longos deslocamentos de transporte público. Isso acaba criando uma rotina doentia do núcleo familiar, acossado pela superexploração de seu suor.

O filme retrata um tipo de trabalho, considerado como parte de um processo de “uberização”, no qual a subcontratação, apesar do discurso liberal da autonomia e do empreendedorismo, leva à degradação das condições de vida no sentido mais amplo. O fim dos antigos contratos sociais, burlando ou liquidando as leis trabalhistas, resulta em maior exposição e exploração e menos direitos. O retrocesso das condições de vida do conjunto dos que precisam trabalhar e a falta de perspectiva aos jovens são duas faces de uma mesma moeda, na alegoria da família de Rick.

Uma das cenas mais emocionantes repõe a memória da classe trabalhadora quando Abbie conversa com uma de suas clientes, uma idosa que lembra com saudosismo das “grandes greves mineiras” do período Thatcher. Naquela instante, ao resgatar a tradição coletiva e de solidariedade da classe operária inglesa, também joga luzes na derrota histórica que permitiu aos mais perversos planos neoliberais se instalarem no conjunto da sociedade.

Da arte à vida

O verdadeiro terremoto mundial que vivemos leva a duas questões presentes no filme. A falência absoluta do neoliberalismo e um agravamento da deterioração das condições de vida.

O receituário neoliberal, que faz com que Rick e Abbie fiquem à própria sorte na sua luta por sobrevivência, está se esgotando de forma trágica. Um exemplo foi a atitude de Boris Johnson, oriundo da ala mais à direita dos “Tories” (conservadores), que teve que reconhecer que sua vida foi salva pelo NHS (sistema de saúde pública) e pela equipe médica composta por imigrantes.  A defesa da vida está em contradição com a política de destruição de direitos do neoliberalismo. Essa falência requer pensar outro projeto de sociedade. A nova crise capitalista vai elevar os índices de pobreza e miséria. Diante da crise, espera-se, em escala mundial, a entrada de novas 500 milhões de pessoas na pobreza. O futuro de Rick está em aberto. Os defensores do interesse do capital vão querer rebaixar as condições de trabalho a formas anteriores ao século XX. O proletariado com novas feições e formas, mas ainda assim responsável por fazer a roda da economia “girar” ficará inerte ou passivo? Ken Loach nos traz uma reflexão, com beleza e realismo, sem buscar ser profético ou indicar um veredito final. A última palavra sobre o futuro de Rick e sobre nosso futuro ainda não foi dada. Vai depender da velha e novíssima luta de classes.


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