O silêncio das palavras

O ocaso de escritores é triste, mas sua obra, mesmo que em silêncio, fica eternizada nas palavras, nas linhas e linhas escritas.

Israel Dutra 21 abr 2020, 19:43

A semana passada foi marcada por perdas. A começar por uma perda próxima, a do jornalista Renan Antunes de Oliveira. A ironia da história juntou a “saída de cena” de Renan, um dos melhores jornalistas que conheci, com outros nomes grandes da literatura. A paixão pelas palavras uniu tão diferentes trajetórias. Renan foi um jornalista de tamanho similar ao físico. Um gigante de quase dois metros, com uma careca reluzente, impossível de passar desapercebido. Para além do carinho e da dor da perda, vale registrar que Renan andou pelos cinco continentes, cobriu guerras, golpes, revoluções, sendo um jornalista apaixonado pelo ofício. Não cabe aqui fazer um artigo sobre sua enorme biografia, recheada de histórias intensas e ricas. Aos 70 anos, nos deixa um legado para ser conhecido e socializado. Fica a indicação de seu livro “Reportagens em carne viva, com calda de chocolate”, lançado no começo deste ano, onde conta muitas dessas histórias.

A morte levou outros três grandes do mundo das letras. A semana que passou deixou um rastro de silêncio entre as palavras. Escritores, diversos entre si, que nos deixam num período no qual a morte ronda através do medo e da pandemia. Justo a morte que foi uma temática tantas vezes tratada no universo da literatura de Fonseca, Garcia-Roza e do chileno Luis Sepulveda.

Rubem Fonseca, escritor carioca, nos deixa aos 94 anos. Inspirou jornalistas de todo tipo pela crueza de sua escrita. Delegado de polícia, fez do ofício um laboratório para passear pelas condições humanas. Refletiu temas existenciais, com muita habilidade, num cenário de violência do submundo pelas ruas do Rio de Janeiro. “Feliz Ano Novo” é seu livro clássico, apreendido pela ditadura, um livro de contos, com alcance e reconhecimento internacional.

O outro grande da literatura nacional que nos deixou foi Luiz Alfredo Garcia-Roza, escritor e psicanalista. Sua inspiração fundamental foi o inconsciente humano, seja nas vias literárias ou nos estudos de psicanálise. Um livro muito importante foi “Freud e o inconsciente” (1984).

No âmbito latino-americano, o desparecimento físico de um dos maiores escritos da geração que viveu os anos de chumbo das ditaduras coroou o silenciamento das palavras. Luis Sepulveda se tornou conhecido com “Cronicas de Pedro Nadie” e “O Velho que lia romances de amor”, lançados em 1969 e 1989, respectivamente. De escrita cortante, foi ativista, roteirista de cinema, além de jornalista e escritor. Morreu aos 71 anos deixando um legado na esquerda radical. Foi sempre dissidente dos setores majoritários da esquerda chilena, como o PC e a maioria do PS; foi parte da guarda-armada de Allende, ligando-se à ala mais combativa do PS, influenciado pelas ideias de Luis Vitale, sempre antistalinista. Participou do apoio à lendária Brigada Simón Bolívar, combatendo nas trincheiras da revolução sandinista. A Brigada Simón Bolívar foi um importante momento e inciativa dos trotskystas latino-americanos, dirigida pela corrente de Nahuel Moreno. E isso já história para outro artigo. Esse breve texto busca, além de homenagear os que defenderam as trincheiras das letras, indicar leituras e referências que sirvam para os que estão em casa possam ir descobrindo as veias abertas da literatura. O ocaso de escritores é triste, mas sua obra, mesmo que em silêncio, fica eternizada nas palavras, nas linhas e linhas escritas. Esse mistério da imortalidade é também o prazer singular da literatura. Aproveitem!


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