Rabiscos sobre o modo dialético de dizer “não” de Belchior

Em virtude dos três anos da morte do artista.

Charles Rosa 30 abr 2020, 14:26

Texto dedicado aos trabalhadores nordestinos que interpretaram “A palo seco” no ato de 1 de maio de 2011 – reprimido pela PM de Alckmin – na Praça da Sé. Desde então, Belchior e a militância jamais saíram da minha vida

O tempo andou mexendo conosco. Lá se vão três anos de um domingo de abril. Uma manhã de muito calor em que eu planejara investir meu tempo num dolce far niente teve sua programação alterada pela ligação de uma amiga: “Charles, você viu quem morreu? Não vá se abalar, a vida é assim…”. A sábia preocupação de Luciana possuía toda a justiça do mundo. Durante a madrugada, um aneurisma de aorta havia encurtado a existência física do artista que eu escuto sagradamente todos os dias desde a minha vinda para São Paulo em 2011. Antônio Carlos Belchior (1946-2017) já não poderia mais voltar, conforme eu, ela e outros amigos havíamos pedido aos céus (talvez a Baco…) num bloquinho de Carnaval na Vl. Madalena algumas semanas antes. As lágrimas vieram me prestar as primeiras condolências. Na companhia delas, não me contive e decidi, então, cometer uma carta de fã e publicá-la:

“Estimado mestre Belchior,

Chegou sua morte ou coisa parecida. Como deixar de coisa e seguir a vida?

Chorei pra cachorro a notícia. O que é que pode fazer o homem comum neste presente instante senão sangrar?

Sei bem que nesta divina comédia humana nada é eterno e que o novo sempre vem.

Não querendo lhe reverenciar, mas, cara, você foi demais. Um Dorian Gray latino-americano.

Você não voltou. Não sistematizou nenhuma “tiuria”. Desobedeceu a tudo e a todos, inclusive aos fãs. Sumiu, quando queriam lhe domesticar.

Mas não ficou em casa, contando os metais. Foi fazer o que deu na telha.

A música popular brasileira acaba de perder o melhor afiador de palavras que ela já conheceu. Um compositor que quando cantava cortava a carne. Um cantador que quando compunha cortava a alma.

O seu coração selvagem descansa agora, o que é uma cena inimaginável para mim. Um delírio. Uma alucinação.

Você já não sente nem vê, mas eu não posso deixar de lhe dizer, meu amigo: você foi melhor que os seus pais.

Daqui a um mês, eu completo 25 anos. Suportar o dia a dia requer de tempos em tempos lhe ouvir.

Obrigado por ter experimentado a vida antes de nós para nos contar como ela é.

Viver é melhor que sonhar, quando lembramos que sua música existe.”

(30/04/2017)

O que aconteceu com o Brasil nestes mais de mil e cem dias que nos separam do falecimento de Belchior, julgo desnecessário recordar em detalhes. Como diria outro Antonio Carlos, o Moraes Moreira, despencamos a ladeira. Sim, o desespero ainda é moda em 2020. Espumando delirantemente, eles venceram, o sinal está fechado para nós que somos jovens e o novo que sempre vem ainda não veio. Sim, o fantasma, por décadas escondido no porão da democracia, voltou a subjugar o país. Quem diria que um filhote da ditadura que Belchior ajudou a derrubar em comícios das Diretas Já poderia voltar a nos dominar? Do lado de cá, da esquerda que resiste, o cheiro de nova estação ainda vem vindo e, apesar de não nos servirem mais, continuamos usando as velhas roupas do passado. Enquanto isso, ao povo que caninamente trabalha, só têm restado as migalhas pela chão e um destino aparentemente vazio de significado.

Como modesto alento e contraface a esse retrato sombrio, nós a ala dos “belchioristas incorregíveis”, poderíamos reconhecer que a obra de nosso porta-voz vem sendo mais ouvida do que nunca (embora o mote “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”, recuperado por Emicida em “AmarElo” e muito pronunciado no último Reveillon, realmente possa ter soado para Cronos um desafio bastante arrogante…). Estimo ainda que corretamente venham se multiplicando as referências ao “rapaz latino-americano” em nomes de chapas de Centros Acadêmicos. Na capital paulistana, por exemplo, disco de Belchior na vitrola já configura um estilo de vida em alguns bairros descolados de classe média, se juntando à coleção de samambaias, aos chãos de taco e às franjas de cabelo hipster. Acredito que a interessante biografia escrita por Jotabê Medeiros e lançada em agosto de 2017 tenha contribuído bastante para repopularizar o sobralense.

Mas o que me fez mesmo dedicar algumas horas desta semana para redigir tão despretensiosas linhas foi a vontade incontrolável de me apoderar de uma parte de vossas playlists nesta quarentena. Caros leitores, eu exorto o que resta de suas preciosas sensibilidades logopéicas: forrem o estômago com Belchior, ensaboem o pescoço com Belchior, reguem as plantas com Belchior, encerem o chão com Belchior, batam panelas com Belchior, cortem o cérebro improdutivo dos vizinhos fascistas com o canto torto de Belchior! Ouvir suas canções é, antes de mais nada, aprender a dizer intransigentemente “não” ao velho estabelecido. Que nenhum poder ou senso comum venha nos dizer “de que lado nasce o sol”, pois isso nosso coração sempre vai saber…

Refletindo sobre a anarquia que Belchior professava em entrevistas, confesso nunca ter encontrado em todo o nosso rico cancioneiro (e aí até concedo à hipótese de não ter conhecido o suficiente ainda em quase 28 anos de vida) uma boa definição para aquele regime de liberdade intelectual ilimitada, que Leon Trotsky e Andre Breton conceituaram no México em 1938, que não nestes versos de “Como Diabo Gosta”:

“O que transforma o velho no novo, bendito fruto do povo será! A única forma que pode ser norma é nenhuma regra ter! É nunca fazer, nada que o mestre mandar, sempre desobedecer e nunca reverenciar”.

O fato é que quem escuta Belchior com atenção aprende a reconhecer o elemento trágico de qualquer situação, mas jamais se avassalar a essa determinação a priori inibidora. Ao contrário, retomando aquilo que Heráclito de Éfeso já sabia há uns 2500 anos, “tudo flui”; o que ainda-não-é, amanhã poderá vir a ser, caso não esmoreçamos no presente. Em “Galos, noites e quintais”, por exemplo: o poeta, saudoso de um passado idílico, admite que “não é feliz” com a passagem do tempo, para em seguida também afirmar que “não é mudo”, e é precisamente por esses dois motivos que ele “canta muito mais” . Em “Não Leve Flores”, sua esperança de jovem não se realizou, mas ainda assim, ele agradece ao tempo. Por quê? Pois se existe o tempo, ainda há futuro; se no presente sua “voz resiste” e sua “fala insiste”, seus inimigos que “não cantem vitória muito cedo, não/(…) quem viver, verá”. Em “Alucinação”, seu delírio é “suportar o dia-a-dia”, o que não altera seu interesse maior por “amar e mudar as coisas”.

De um ponto de vista mais concreto, podemos fazer apologia ao Belchior dialético que experimenta a mudança geográfica. O rapaz que se enxerga como apenas um latino-americano (Mano Brown também se reconheceria como tal em “Capítulo 4, versículo 3”, numa direta referência a Belchior), que migra do interior em condições paupérrimas e sem poderosas influências familiares, sabe que “divino” e “maravilhoso” não são adjetivos cabíveis para um retirante na metrópole. Mas, se a realidade é pior do que o otimismo de alguns poderia ter lhe sugerido, ele não recua em sua única convicção: “tudo muda”. Em “Fotografia 3×4”, se é pela dor do imigrante maltratado e desnorteado na cidade grande (em tempos de urbanização descontrolada dos tempos de ditadura) que ele descobre “o poder da alegria”, é por essa dor também que ele descobre a certeza de que tem coisas novas para viver e dizer. Já em “Conheço o meu lugar”, o sobralense rejeita a desumanização de quem trata os humildes “a pontapé”, assim como rechaça a “mente positiva” dos que riem à toa, para reafirmar sua preferência pela “voz ativa”, e é com ela que se reconhece como “pessoa” que no início da canção, mesmo sangrando, tenta inaugurar “a vida comovida/inteiramente livre e triunfante”.

Indo pouco mais além, numa seara mais romântica (e por isso perigosa, como nos ensina “Coração Selvagem”), poderíamos inclusive arriscar que o Belchior que fala de amor também é instrutivo de como a contradição é o combustível que move o mundo em seus mais diferentes níveis. Ou não é do pavor da viagem de avião (que compartilho na integralidade…) que lhe vem a coragem inesquecível de “segurar pela primeira vez” a mão dela? O inverso também é verdadeiro. Em “Paralelas”, temos um eu lírico que é bem realizado financeiramente, trabalha num escritório e ganha dinheiro. Mas quanto mais ele multiplica seus ganhos materiais, menos amor ele sente. Errada ou não essa nossa interpretação bem superficial, o fato é que, movido pelo afeto da paixão fundamental (“Brasileiramente Linda”), “edípica e vulgar”, ele busca se colocar no mundo, reinventando seu próprio ser.

Bem, não me alongarei mais, sob pena de sofrer um boicote generalizado de meus amigos beletristas. Mesmo na quarentena, o dia continua tendo 24 horas e há uma infinidade de coisas serem descobertas. Se lhes sobrar algum tempo, entre lives e feridas espirituais, entreguem-se à poesia de Belchior. Ela é pode ser porta giratória de acesso a outros gigantes de nossa espécie, tais como Drummond, Poe, Pessoa, Cabral de Mello Netto, García Lorca, Dante. Enquanto, alguém continuar dizendo “não” ao que é estranho e insuportável à substância humana, o canto torto de Belchior continuará com o corte afiado.


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