Crises estruturais

As perguntas sobre como definir uma crise e explicar suas origens voltaram de novo a primeiro plano.

Immanuel Wallerstein 11 ago 2020, 15:46

O termo “crise” desempenhou um papel central em muitos debates políticos nacionais durante a década de 1970, ainda que a definição do termo não variasse amplamente. Até o final do século, havia sido substituído por outro mais otimista: “globalização”[1]. Entretanto, desde 2008, o tom se tornou sombrio de novo e a ideia de crise ressurgiu de forma brusca. Mas sua utilização é tão vaga como sempre. As perguntas sobre como definir uma crise e explicar suas origens voltaram de novo a primeiro plano.

No final da década de 1960 e começo da seguinte, tanto o ciclo hegemônico como o ciclo econômico global do sistema-mundo moderno entraram numa fase de declive. O período que começa em 1945 e acaba ao redor de 1970 – acertadamente chamado em francês les trente glorieuses [N.d.T. os trinta gloriosos], havia marcado o auge da hegemonia dos Estados Unidos, ao mesmo tempo que coincidiu com a fase descendente A, a mais expansiva do ciclo de Kondratiev[2] que jamais havia conhecido a economia-mundo capitalista. As recessões eram absolutamente normais, não somente no sentido de que todos os sistemas têm ritmos cíclicos – assim é como vivem, essa é a maneira como resolvem as inevitáveis flutuações de suas operações – mas também de como funciona o capitalismo como sistema-mundo. Nisso há dois temas fundamentais: como os produtores conseguem lucros e como os Estados garantem a ordem mundial dentro da qual os produtores podem conseguir lucros. Vamos nos ocupar deles de um em um.

O capitalismo é um sistema em que a acumulação sem fim do capital é sua raison d’être [N.d.T. razão de ser]. Para acumular capital, os produtores devem obter lucros de suas operações o que a uma escala significativa somente é possível se o produto pode ser vendido por uma quantidade consideravelmente maior do que custa produzi-lo. Numa situação de concorrência perfeita, é impossível conseguir ganhos a essa escala: requer-se um monopólio, ou pelo menos um quase-monopólio, do poder-mundo econômico. O vendedor pode exigir qualquer preço sempre que não ultrapasse o que permite a elasticidade da demanda. Sempre que a economia-mundo se expande significativamente, alguns produtos “chave” são relativamente monopolizados e, a partir dos lucros que geram, podem ser acumuladas grandes quantidades de capital. As conexões para frente e para trás destes produtos formam a base para uma expansão global da economia-mundo. A isso chamamos de “fase A” de um ciclo de Kondratiev. Para os capitalistas, o problema é que todos os monopólios são autoliquidáveis graças ao fato de que, por muito bem defendido politicamente que esteja um determinado monopólio, no mercado mundial podem entrar novos produtores. Evidentemente, a entrada requer tempo, porém, mais cedo ou mais tarde, o grau de concorrência aumenta, os preços baixam e por isso os lucros também. Quando os lucros dos produtos-chave baixam o suficiente, a economia-mundo deixa de se expandir e entra num período de estagnação, a “fase B” de um ciclo de Kondratiev.

A segunda condição para o lucro capitalista é que haja algum tipo de relativa ordem global. Ainda que as guerras do mundo ofereçam a alguns empresários oportunidades muito boas, também ocasionam uma enorme destruição do capital fixo e uma considerável interferência no comércio mundial. O balanço geral das guerras mundiais não é positivo, um ponto que Schumpeter[3] sublinhou repetidamente. Assegurar a situação relativamente estável que requer a obtenção de lucros é a tarefa de uma potência hegemônica suficientemente forte para impô-la sobre o sistema-mundo em seu conjunto. Os ciclos hegemônicos têm sido muito mais longos que os ciclos de Kondratiev: num mundo de múltiplos Estados soberanos (assim eles são chamados), não é fácil se estabelecer como uma potência hegemônica. Assim fizeram as Províncias Unidas em meados do século XVII, depois o Reino Unido no século XIX e finalmente os Estados Unidos em meados do século XX. O auge de cada potência hegemônica tem sido o resultado de uma longa luta contra as potências potencialmente hegemônicas. Até agora, o vencedor foi o Estado que conseguiu ser capaz de montar a maquinaria produtiva mais eficiente e ganhar depois uma “guerra de trinta anos” contra seu principal rival. O hegemônico então é capaz de estabelecer as regras com as quais opera o sistema interestatal para assegurar seu funcionamento fluido, e maximizar o fluxo de capital acumulado até seus cidadãos e empresas produtivas. Poder-se-ia chamar a isso um quase-monopólio do poder geopolítico. 

O problema para a potência hegemônica é o mesmo que enfrenta uma indústria de ponta: seu monopólio gera seu próprio esgotamento. Em primeiro lugar, em algumas ocasiões o hegemônico precisa fazer uso de seu poderio militar para manter a ordem. No entanto, as guerras custam vidas e dinheiro, e têm um impacto negativo sobre seus cidadãos, cujo orgulho inicial pela vitória pode evaporar-se à medida que pagam os custos crescentes da atuação militar. As operações militares em grande escala amiúde são menos efetivas do que o esperado, e isso fortalece àqueles que desejam resistir no futuro. Em segundo lugar, mesmo se a eficiência econômica do hegemônico não fraqueja imediatamente, a de outros países começa a ficar em perigo, fazendo-lhes menos dispostos a aceitar seus ditames. A potência hegemônica entra num processo de declive gradual em relação às potências em ascensão. O declive pode ser lento, mas, apesar de tudo, é essencialmente irreversível. 

O que tornou tão relevante o período de 1965-1970 foi a conjunção destes dois tipos de crise: o final da historicamente expansiva fase A de Kondratiev e o começo da decadência da hegemonia historicamente poderosa. Não é casual que a revolução mundial de 1968, que na realidade se estende de 1966 a 1970, se levasse a cabo este ponto de inflexão como expressão do mesmo.

Deslocando a Velha Esquerda

A revolução mundial de 1968 marcou um terceiro declive, um que, entretanto, somente se produziu uma vez na história do sistema-mundo moderno: o declive dos movimentos antissistêmicos tradicionais, da assim chamada Velha Esquerda. Composta essencialmente de comunistas, social-democratas e movimentos de libertação nacional, a Velha Esquerda surgiu lenta e trabalhosamente no sistema-mundo principalmente ao longo do último terço do século XIX e a primeira metade do XX, passando da marginalidade e debilidade políticas ao redor de 1870 a uma de centralidade e considerável força ao redor de 1950. Estes movimentos alcançaram o ponto culminante de seu poder de mobilização no período que vai desde 1945 a 1968, exatamente no momento tanto da extraordinária expansão da fase A do ciclo de Kondratiev como do auge da hegemonia dos EUA. Não creio que isso fora algo fortuito, ainda que possa parecer contraintuitivo. O boom econômico mundial conduziu os empresários a acreditar que as concessões às demandas materiais de seus trabalhadores lhes custavam menos dinheiro que as interrupções do processo produtivo. Com o tempo, isso significou o aumento dos custos de produção, um dos fatores que se encontram atrás do fim dos quase-monopólios em indústrias pioneiras. Mas a maior parte dos empresários tomaram decisões para maximizar os lucros a curto prazo – sobre uns três anos – e deixar o futuro nas mãos dos deuses.

As políticas da potência hegemônica se viram influenciadas por considerações paralelas. Manter uma estabilidade relativa no sistema-mundo era um objetivo essencial, mas os Estados Unidos tinham que conter o custo da atividade repressiva em relação ao custo das concessões às demandas dos movimentos de libertação nacional. Com relutância a princípio, mas depois deliberadamente, Washington começou a favorecer uma “descolonização” controlada, que teve o resultado de levar ao poder esses movimentos, e assim em meados da década de 1960 se podia dizer que os movimentos da Velha Esquerda haviam alcançado seu objetivo histórico de conquistar o poder do Estado quase em todas as partes; pelo menos em teoria. Os partidos comunistas dominavam um terço do mundo, os social-democratas estavam no poder, ou alternando no poder, em mais de outro terço; era um mundo pan-europeu. Além disso, a principal política dos partidos social-democratas, o Estado de bem-estar, foi aceita e praticada por seus oponentes conservadores. Os movimentos de libertação nacional haviam chegado ao poder na maior parte do antigo mundo colonial, como o haviam feito os movimentos populistas na América Latina. Hoje em dia, muitos analistas e militantes criticariam a atuação desses movimentos, mas isso é esquecer o medo que dominava o estrato mundial mais rico e mais conservador à vista do que lhes parecia um gigantesco igualitarismo destrutivo, equipado com o poder do Estado.

A revolução mundial de 1968 mudou tudo isso. Em seus múltiplos levantes predominaram três temas: o primeiro era que o poder hegemônico dos EUA estava forçado ao máximo e era vulnerável. No Vietnã, a ofensiva do Tet foi tomada como uma sentença de morte das operações militares dos Estados Unidos. Os revolucionários também atacaram o papel da União Soviética, considerada por eles como um participante em conluio com a hegemonia dos EUA; tal sentimento estava em crescimento em todas as partes pelo menos desde 1956[4]. O segundo tema foi que os movimentos da Velha Esquerda haviam fracassado no cumprimento de suas promessas históricas. As três variedades se baseavam na assim chamada estratégia de duas etapas: primeiro tomar o poder do Estado, depois mudar o mundo. Os militantes disseram: “Vocês tomaram o poder do Estado, mas vocês não mudaram o mundo. Se queremos mudar o mundo, necessitamos novos movimentos e novas estratégias”, e a Revolução Cultural chinesa foi considerada por muitos como o modelo desta possibilidade. O terceiro tema era que a Velha Esquerda havia ignorado os grupos relegados, os oprimidos por sua raça, gênero, etnia ou sexualidade. Os militantes insistiram em que as exigências para um tratamento igualitário não podiam ser adiadas, em que constituíam parte do urgente presente. Por muitas razões, o movimento Black Power nos Estados Unidos foi o exemplo paradigmático. 

A revolução mundial de 1968 foi politicamente tanto um enorme triunfo como um enorme fracasso. Surgiu como uma fênix e ardeu com força pelo globo, porém em meados da década de 1970 parecia ter se extinguido quase em todas as partes. O que havia conseguido este efêmero fogo? O liberalismo centrista havia sido destronado como a ideologia governante do sistema-mundo e ficou reduzido a ser simplesmente uma alternativa entre outras; os movimentos da Velha Esquerda ficaram destruídos como agentes de qualquer tipo de mudança fundamental. Mas o triunfalismo de 1968 demonstrou-se superficial e insustentável. A direita mundial ficou igualmente libertada de qualquer laço com o liberalismo centrista. Tirou proveito da estagnação do sistema-mundo e do colapso da Velha Esquerda para lançar uma contra-ofensiva, a da globalização neoliberal. Os principais objetivos eram reverter todos os ganhos obtidos pelos estratos mais inferiores durante a fase A do ciclo de Kondratiev: reduzir os custos de produção, destruir o Estado de bem-estar e abrandar o declínio do poder dos Estados Unidos. Sua progressão pareceu culminar em 1989, quando o fim do controle soviético sobre os países satélites da Europa oriental e central e o desmantelamento da própria URSS conduziram a um novo triunfalismo na direita.

A ofensiva da direita mundial foi tanto um grande êxito como um grande fracasso. O que sustentou a acumulação do capital desde a década de 1970 foi um giro desde a busca de lucros por meio da eficiência produtiva até sua busca através da manipulação financeira, mais corretamente denominada especulação. O mecanismo crucial foi o fomento do consumo via endividamento. Isso se sucedeu em todas as fases B do ciclo de Kondratiev; a diferença desta vez foi a escala. Depois da maior expansão da história da fase A, a seguir veio a maior obsessão especulativa. As bolhas se moveram por todo o sistema-mundo, das dívidas nacionais do Terceiro Mundo e do bloco socialista na década de 1970 aos bônus lixo das grandes corporações na década de 1980, ao endividamento do consumo na década de 1990 e ao endividamento do governo dos EUA na era Bush. O sistema tem ido de bolha em bolha e atualmente está tentando inflar outra, com resgates bancários e emissão de dólares.

A recessão na qual caiu o mundo continuará durante algum tempo e será bastante profunda. Destruirá o último pilar que restava de relativa estabilidade econômica, o papel do dólar estadunidense como moeda reserva para proteger a riqueza. Quando se suceder isso, a principal preocupação de todos os governos do mundo será impedir levantes de trabalhadores sem emprego e de estratos médios cujas poupanças e pensões estão desaparecendo. Atualmente os governos estão se voltando para o protecionismo e a emissão de dinheiro como seu último recurso. Estas medidas podem mitigar momentaneamente a dor da gente comum, mas é provável que piorem a situação ainda mais. Estamos entrando na paralisia sistêmica, da qual sair será extremamente difícil. Isso se expressará em flutuações cada vez maiores, que converterão os prognósticos a curto prazo – tanto econômicos como políticos – em meras conjecturas. Isso por sua vez agravará os temores populares e o sentido de alienação.

Alguns afirmam que a grande melhora relativa da posição econômica da Ásia – Japão, Coreia do Sul, Taiwan, China e, em menor grau, a Índia – permitirá um renascimento da empresa capitalista através de uma simples mudança de localização geográfica. Mais uma ilusão! O desdobramento relativo da Ásia é uma realidade, mas uma realidade que mina ainda mais o sistema capitalista ao dispersar a distribuição de mais-valor, reduzindo em vez de aumentar a acumulação global de capitais individuais. A expansão da China acelera o corte estrutural de lucros da economia-mundo capitalista.

Gastos sistêmicos

Neste ponto, devemos considerar as tendências seculares do sistema-mundo, em oposição a seus ritmos cíclicos. Estes ritmos são comuns a muitos tipos de sistemas e são parte de como operam, de como respiram caso se queira dizer assim. Mas a fase B nunca acaba no ponto onde começou a fase A precedente. Podemos pensar em cada subfase de ascensão como uma contribuição a lentas curvas ascendentes, cada uma se aproximando de sua própria assíntota. Na economia-mundo capitalista, não é difícil discernir quais curvas importam mais. Dado que o capitalismo é um sistema no qual a acumulação sem fim é primordial, e que se acumula capital obtendo lucros no mercado, o aspecto-chave é como fabricar produtos por um preço inferior ao que podem ser vendidos. Por isso temos que determinar tanto o que se vai nos custos de produção como aquilo que determina os preços. Logicamente, os custos de produção são os de pessoal, os dos insumose os fiscais. Os três estiveram subindo como porcentagem do preço real a que se vendem os produtos. Isso é assim apesar dos repetidos esforços capitalistas que os pressionam para baixo, e apesar das ondas de melhorias tecnológicas e organizativas que aumentaram a denominada eficiência da produção.

Os custos de pessoal, por sua vez, podem ser divididos em três categorias: a mão de obra relativamente sem qualificação, os quadros intermediários e os altos diretores. Os salários dos não qualificados tendem a aumentar na fase A como consequência de algum tipo de ação sindical. Quando durante a fase B estes salários crescem demasiadamente para determinados empresários, especialmente para as indústrias pioneiras, o principal remédio é a recolocação em áreas que historicamente têm salários menores; ocorre o mesmo na nova localização, se produzindo um novo movimento. Estas mudanças são custosas, mas lucrativas; entretanto, à escala mundial os incrementos logrados se revertem, mas não se anulam totalmente e, em consequência, as reduções nunca eliminam por completo os aumentos. Há 500 anos, este repetido processo esgotou os pontos onde poder recolocar o capital. Isso se põe em evidência com a desruralização do sistema-mundo. 

O aumento dos custos dos quadros médios é o resultado, em primeiro lugar, da ampliação de escala das unidades produtivas que requerem mais pessoal deste tipo. Em segundo lugar, os perigos políticos da organização sindical do pessoal relativamente pouco qualificado ficam contrarrestados pela criação de um estrato intermediário de maiores dimensões, aliado político do estrato dirigente e que constitui modelos de mobilidade ascendente da maioria sem qualificação. Finalmente, o aumento dos custos dos altos diretores é o resultado direto do aumento da complexidade das estruturas empresariais, a famosa separação entre propriedade e controle. Isso faz possível que os altos diretores se apropriem como renda de porções cada vez maiores das entradas da empresa, reduzindo assim o que vai para os proprietários como lucro do investimento. O aumento destas rendas foi espetacular durante as décadas passadas.

Os custos dosinsumos estiveram subindo por razões análogas. Os capitalistas aspiram a externalizar os custos, ou seja, a não pagar a fatura completa pelo tratamento dos resíduos tóxicos, pela renovação de matérias-primas e pela construção de infraestruturas. Desde o século XVI até a década de 1960, esta externalização dos custos havia sido uma prática habitual, mais ou menos não questionada pelas autoridades políticas. Os resíduos tóxicos simplesmente eram vertidos no domínio público. Porém o mundo esteve se esvaziando de espaço público, em paralelo à desruralização da força de trabalho. As consequências e os custos para a saúde se tornaram tão elevados e tão próximos à própria casa como para produzir exigências de limpeza e controle ambiental. Os recursos também se converteram numa grande preocupação como consequência do acusado aumento da população mundial. Atualmente há uma ampla discussão sobre a escassez dos recursos energéticos, a água, os bosques, a pesca e a carne. Os custos de transporte e de comunicações também subiram à medida que se tornaram mais rápidos e mais eficientes. Os empresários historicamente pagaram somente uma pequena parte da fatura de infraestruturas. A consequência de tudo isso foi a pressão política sobre os governos para que assumam maiores custos de eliminação e limpeza de resíduos tóxicos, de renovação de recursos e expansão das infraestruturas. Para fazer isso, os governos devem aumentar os impostos e insistir uma maior internalização dos custos pelos empresários, o que, evidentemente, corta as margens de lucros.

Finalmente, os impostos subiram. Há múltiplos níveis de imposição, inclusive os impostos privados em forma de corrupção e máfias organizadas. Os impostos cresceram à medida que o alcance da atividade da economia-mundo se ampliou e a burocracia estatal se expandiu, mas o maior impulso veio dos movimentos antissistêmicos mundiais, que pressionaram a favor de garantias estatais em educação, saúde e fluxos de rendas para a vida. Cada uma destas aumentou geograficamente como em temos dos níveis de serviços exigidos. Nenhum governo atualmente está isento da pressão para manter o Estado de bem-estar, inclusive se os níveis de provisão variam. 

Os três custos de produção subiram sustentadamente como porcentagem dos preços reais de venda dos produtos, ainda que na forma de aumentos na fase A, logo atenuados na fase B, porém não anulados absolutamente nesta última há 500 anos. Os aumentos mais espetaculares foram produzidos no período posterior a 1945. Não se pode simplesmente subir os preços aos quais se vendem os produtos para manter as margens de lucros reais? Isso é precisamente o que se tentou no período posterior a 1970, em forma de subidas de preços sustentadas por uma ampliação do consumo, sustentado por sua vez pelo endividamento. A situação em meio do colapso econômico em que nos encontramos não é outra coisa que a expressão dos limites da elasticidade da demanda. Quando todo mundo gasta muito acima de sua renda real, chega um ponto em que alguém se detém e rapidamente todo o mundo sente que tem que fazer o mesmo. 

Lutas pela sucessão

A conjunção dos três elementos – a magnitude do crack “normal”, a subida dos custos de produção e a pressão extra sobre o sistema que supõe o crescimento (e asiático) – significa que entramos numa crise estrutural. O sistema está muito longe do equilíbrio e das flutuações são enormes. De agora em diante, estaremos vivendo em meio a uma bifurcação do processo sistêmico. A pergunta já não é “como vai se reparar o sistema capitalista e renovar seu impulso para frente?”, mas sim “o que vai substituir o sistema?”, “qual ordem vai surgir deste caos?”.

Podemos pensar neste período de crise sistêmica como um cenário de luta pelo sistema sucessor. O resultado pode ser inerentemente imprevisível, mas a natureza da luta está clara. Nós nos encontramos com escolhas alternativas que não podem ser explicadas com detalhes desde o ponto de vista institucional, mas que podem sugerir-se a grandes traços. Podemos escolher coletivamente um novo sistema que essencialmente se assemelhe ao atual: hierárquico, explorador e polarizador. Este sistema poderia tomar muitas formas e algumas poderiam ser mais severas que o sistema-mundo capitalista no qual estivemos vivendo. Como alternativa, podemos escolher um sistema radicalmente diferente, um que previamente nunca existiu, um sistema que é relativamente democrático e relativamente igualitário. Estive chamando a estas duas alternativas “o espírito de Davos” e o “espírito de Porto Alegre”, mas os nomes não são importantes. O que é importante é ver as possíveis estratégias organizativas de cada lado, numa luta que está se desenvolvendo de alguma forma desde 1968 e pode prolongar sua resolução até algo em torno de 2050.

Primeiro devemos destacar duas características decisiva de uma crise estrutural. Graças ao fato de que as flutuações são tão selvagens, há pouca pressão para regressar ao equilíbrio. Durante o longo e “normal” período de vida do sistema, semelhante pressão foi a razão pela qual as amplas mobilizações sociais – as assim chamadas revoluções – foram sempre tão limitadas em seus efeitos. Mas quando o sistema está longe do equilíbrio, pode suceder o contrário, pequenas mobilizações sociais podem ter repercussões muito grandes, o que a ciência da complexidade chama de “efeito mariposa”. Também o poderíamos chamar o momento no qual a agenda política prevalece sobre o determinismo estrutural. A segunda característica decisiva é que em nenhum dos campos há um pequeno grupo no alto que toma as decisões: um operativo “comitê executivo da classe dirigente” ou um politburo das massas oprimidas. Mesmo os que estão comprometidos na luta por um sistema sucessor, há múltiplos jogadores que defendem diferentes ênfases. Os dois grupos de militantes confidenciados de ambos os lados também encontram dificuldade em convencer os grandes grupos que formam suas bases potenciais da utilidade e possibilidade de organizar a transição. Em resumo, o caos da crise estrutural se reflete na relativamente ordenada configuração dos dois campos.

O bando de “Davos” está profundamente dividido. Estão os que desejam substituir um sistema altamente repressivo que glorifica o papel de dirigentes privilegiados sobre sujeitos submissos. Há um segundo grupo que crê no caminho em direção ao controle e o privilégio se encontra num sistema meritocrático que cooptaria o grande número de quadros necessários para manter-se com o mínimo de força e o máximo de persuasão. Este grupo fala uma linguagem de mudança fundamental, utilizando consignas que surgiram dos movimentos antissistêmicos – “universo verde”, “utopia multicultural”, “oportunidades meritocráticas para todos” -, enquanto conserva um sistema polarizado e desigual. Dentro do bando de “Porto Alegre”, há uma divisão paralela. Estão os que concebem um mundo altamente descentralizado, que privilegia a distribuição racional a longo prazo sobre o crescimento econômico e permite a inovação sem criar bolsas de conhecimentos incontestáveis para a sociedade em geral. Há um segundo grupo que está mais orientado para a transformação a partir de cima, por quadros e especialistas; eles concebem um sistema inclusive mais coordenado e integrado, um igualitarismo formal sem uma inovação real. Por isso, mais que uma simples batalha de duas vertentes pelo sistema sucessor, concebo uma batalha a três bandas, uma entre os dois grandes campos e outra segunda dentro de cada campo. Esta é uma situação de confusão, moral e política; o resultado é fundamentalmente incerto. 

Quais passos práticos podemos dar qualquer um de nós para avançar neste processo? Não há uma agenda que possa ser formulada, somente há linhas de ênfase. No princípio da lista de ações que poderíamos levar a cabo, a curto prazo, poderia minimizar a dor que surge do colapso do sistema existente e das confusões da transição. Isso poderia incluir ganhar eleições para obter maiores benefícios materiais para os que têm menos; maior proteção dos direitos judiciais e políticos; medidas para combater a progressiva erosão de nossa riqueza planetária e condições para a sobrevivência coletiva. Entretanto, estes não são em si mesmos passos rumo à criação do sistema sucessor de que necessitamos. Se requer um sério debate intelectual sobre os parâmetros do tipo de sistema-mundo que queremos e da estratégia para a transição. Para isso se necessita a vontade de ouvir àqueles aos quais consideramos de boa vontade, inclusive se não compartilham nossas posições. O debate aberto criará uma maior camaradagem e quiçá evite que caiamos no sectarismo que sempre derrotou os movimentos antissistêmicos. Finalmente, onde for possível, deveríamos construir modos de produção desmercantilizados alternativos. Fazendo isso, podemos descobrir os limites de muitos métodos concretos e demonstrar que há outros métodos para assegurar uma produção sustentável que um sistema de recompensa baseado na motivação do lucro. Além disso, a luta contra as desigualdades fundamentais do mundo – de gênero, classe, e raça/etnia/religião – tem que estar em primeiro plano de nossos pensamentos e fatos. Esta é a tarefa mais dura de todas, já que nenhum de nós estamos livres de culpa e a cultura do mundo que herdamos milita contra nós. Creio não ser necessário dizer também que devemos evitar qualquer sensação de que a história está do nosso lado? Como muito, temos 50% de possibilidades de criar um mundo melhor do que aquele no qual vivemos. Mas 50% é muito. Devemos tratar de apressar a Fortuna, antes que ela nos escape. Há outra coisa mais útil que possa fazer qualquer um de nós?

Artigo originalmente publicado na. New Left Review. N. 62. Mar-Abril 2010. Disponível em inglês. Tradução de Charles Rosa para a Revista Movimento.


[1] Uma versão anterior deste artigo foi apresentada no Congresso Mundial do Instituto Internacional de Sociologia, em Erevan, em 13 de junho de 2009.

[2] Nikolai Dimitrievich Kondratiev (1892-1938) foi um economista soviético, célebre por formular a teoria do ciclo econômico longo, cuja duração flutua entre 48 e 60 anos. Seria fuzilado em 1938 durante os Processos de Moscou.

[3] Joseph Alois Schumpeter (1883-1950) foi um economista e cientista político austríaco.

[4] Ano da Revolução Húngara esmagada pelos tanques soviéticos.


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