A esquerda é punitiva? uma análise marxista

Sobre o suposto punitivismo de esquerda.

João Pedro de Paula 10 set 2020, 13:04

Com o recente afastamento do governador do Rio, Wilson Witzel, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), foi retomado o debate sobre o punitivismo de esquerda. Sobretudo, pela possível interferência de Bolsonaro nessa decisão, haja vista o rompimento de ambos, vislumbrando uma possível eleição presidencial em 2022. A prática da família do presidente, de interferir em julgamentos e investigações, não é nenhuma novidade, conforme exposto mais uma vez na saída de Sérgio Moro de seu governo. 

Muitos comentaram que seria um erro comemorar o afastamento pelo STJ, por conta das possíveis irregularidades, já que legitimaria o uso político do direito (lawfare) em outros momentos[1]. A ideia central, proposta por essas pessoas, é que não podem ser utilizados duas medidas para situações equivalentes, em uma defesa abstrata da igualdade em face da lei. Assim, estaríamos salvaguardados de prisões políticas. Se essa posição fosse eficaz, Lula não teria sido preso nem afastado da eleição de 2018. Esse caso é apenas um exemplo da histórica recente, mas existem inúmeros outros.

A ex-magistrada Maria Lúcia Karam, importante parceira das lutas contra a violência policial, publicou um livro em 1995 em que cunhou o termo “esquerda punitiva”. O texto crítica a criminalização e a busca por punição utilizada pelos movimentos sociais, como fazem os movimentos LGBT e feminista. Com a vinda da operação Lava-Jato, o debate apresentado pela jurista voltou aos holofotes, porque figuras públicas de esquerda responderam aos anseios populares de apoio à punição dos corruptos. Feito um sucinto resumo do debate, cabe apresentar as premissas tomadas para a elaboração desse texto. 

O presente artigo busca fazer uma análise do suposto punitivismo de esquerda, a partir do instrumental teórico marxista. Portanto, não se reconhece a existência de uma justiça de olhos vendados, que trata situações iguais da mesma forma. Em um modo de produção divido em classes, o direito não é neutro, posto que está a serviço da manutenção das condições que permitem o funcionamento do sistema capitalista. Assim, como algo decorrente do universo em que tudo é mercadoria, o direito nasce em essência como desigual, já que privilegia os interesses da classe dominante, apesar de sua racionalidade aparentar que todos são iguais perante a lei (por exemplo, no artigo 5º da Constituição Federal).

Concorda-se com o abolicionismo presente na produção teórica e prática de Angela, para qual a “instituição da prisão serve como um local para depositar pessoas que representam grandes problemas sociais”[2]. Seletivo como é, o sistema penal absorve diversos desses problemas, como um depósito para aquilo que o capitalismo é incapaz de resolver. Logo, não se compreende a punição como uma solução para os nossos desafios. 

Contudo, a realidade deve ser compreendida em suas contradições. Ainda que não cremos no direito, não cabe a nós aguardar uma revolução social para que possamos dar resposta aqueles que geram exploração e opressão (assassinos, estupradores, corruptos, racistas, etc). Nessa linha, não podemos impedir o desenvolvimento dos movimentos sociais, suas pautas e vanguardas, essenciais para o desenvolvimento da luta de classes, em prol de um suposto antipunitivismo abstrato. A luta feminista, antirracista e LGBT muitas vezes desemboca no poder judiciário, como uma forma de responsabilizar práticas que sustentam o capitalismo. Semelhante é o caso da luta contra a corrupção, algo quase que inerente ao modo de produção vigente, que produz subjetividades individualistas e pautadas na busca incessante por mais dinheiro.

Não se trata, contudo, de um ingênua esperança no direito para solução dos problemas da sociedade, mas de uma utilização dos mais variados meios para a luta. Por mais que não reivindicamos diversas estruturas existentes, temos que utilizá-las para a sua própria superação. Lênin já dizia isso, algo que veio a ser notado por Pachukanis, o principal intelectual marxista do direito. [3]

O combate ao sistema penal deve ter uma perspectiva de classe, posto que a defesa abstrata das garantias processuais nos levaria a uma defesa do próprio Estado de Direito,  sob o véu do qual se perfaz um genocídio da juventude negra e pobre nas favelas e periferias do Brasil. Como aponta o professor da UERJ, Afrânio Silva Jardim: 

“Lamentavelmente, temos de usar até mesmo o “direito burguês”, desigual e seletivo, para combater estas práticas antissocialistas. Por ora, é o instrumento de que se dispõe. Não podemos deixar que apenas os despossuídos levem “pauladas” do Direito Penal.”[4]

Trata-se de um equívoco a comparação da agenda dos movimentos sociais, compostos pela classe trabalhadora, com aquela pautada pelos representantes da burguesia, pela qual defende-se “a lei e a ordem”. Em defesa da “esquerda punitiva”, Ricardo Timm de Souza reconhece a existência dessa contradição, mas responde:

“Haveria então uma contradição em ter uma posição diferente nos dois casos? Sim, é claro que há uma contradição, mas ela não é nossa, não é meramente uma contradição lógica-discursiva, e sim da própria realidade. Não fomos nós que decidimos a aplicação seletiva da norma, mas a própria configuração material das relações de poder na nossa sociedade hierárquica brasileira. Trata-se, portanto, de se posicionar concretamente diante da realidade contraditória que nos é apresentada, e não apenas residir em universalismos abstratos que acabam servindo de legitimação do status quo. Ou seja, a negativa da abstração das condições materiais é, ao fim e ao cabo, recusa da concretude da pura e simples injustiça.”[5]

Pelo exposto, sustenta-se que a luta pela responsabilização daqueles que geram exploração e opressão à classe trabalhadora, como os corruptos, não gera prejuízos concretos a mesma. Pelo contrário, a esquerda ganha referência pela resposta aos anseios do povo e se forma uma vanguarda, que pode avançar em sua consciência de classe e assumir a bandeira da luta por uma nova sociedade. Esperar que a população abdique da luta pela criminalização desses sujeitos é assumir uma postura idealista da qual nós, enquanto materialistas, não devemos sustentar. Certamente, todos querem ver a punição daqueles que usufruem da máquina pública para enriquecer. A luta socialista é aquela que a une as demandas históricas com as imediatas, como elaborou Marx em 1844: “A teoria só é efetivada num povo na medida em que é a efetivação de suas necessidades”.[6] 

Como visto, a defesa abstrata de um antipunitivismo, sem um caráter de classe, não produz um direito menos desigual, visto que a relação de desigualdade é inerente a forma jurídica, como um produto de uma sociedade dividida em classes e estruturada para a manutenção da classe dominante. Vale lembrar algo sempre dito pelo professor da USP, Alysson Mascaro: a quantidade de direitos não modifica a qualidade (natureza) do direito.

Artigo originalmente publicado no portal justificando.com.

Notas:

[1] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-09-02/f-limongi-acao-contra-witzel-passou-a-linha-do-estado-de-direito-e-hora-das-forcas-da-razao-darem-um-basta.html#?sma=newsletter_brasil_diaria20200902

[2] DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 38.

[3] https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/download/36565/26080

[4] https://emporiododireito.com.br/leitura/esquerda-punitiva-esclarecimento-sobre-o-nosso-pensamento-atual-em-relacao-a-aplicacao-do-sistema-penal

[5] SOUZA, Ricardo Timm de. Em defesa da esquerda punitiva. Rastros (n. 1). Desterro: Cultura e Barbárie, outubro de 2012, p. 3-4.u Disponível em: http://culturaebarbarie.org/rastros/rastrosn1s.pdf.

[6] MARX, Karl. Crítica à filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 152.


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