Nova normativa sobre o voto indígena para a Assembleia Nacional da Venezuela é inconstitucional e não corrige a anterior

Regulamento é inconstitucional.

Vários Autores 12 set 2020, 19:02

A Plataforma Cidadã em Defesa da Constituição exige ao Conselho Nacional Eleitoral (CNE), a desaplicação do “Regulamento Especial para regular a eleição da Representação Indígena na Assembleia Nacional 2020” (RERIAN), ditado através de sua Resolução No 200824-033 de 14/08/2020 mediante o qual modifica o anterior ditado por resolução No 200630-0024 de 30/06/2020, supostamente com o propósito de atender as observações e demandas que fizeram diversas organizações indígenas a esta última, pelas seguintes razões:

  1. O questionamento central à normativa especial emitida pelo CNE em 30/06/2020 para regular a eleição dos representantes dos povos e comunidades indígenas, compartilhado por esta Plataforma Cidadã em Defesa da Constituição e por múltiplas organizações indígenas e cidadãs, é ao caráter inconstitucional e inexistente de tal instrumento jurídico.
  2. Com o suposto propósito de atender referido questionamento, em 14/08/2020 o CNE emitiu uma nova resolução na qual introduz modificações importantes o processo de votação e escrutínios dos povos e comunidades indígenas. Entretanto, mantém-se a designação dos deputados indígenas à Assembleia Nacional mediante uma eleição de segundo grau realizadas por “porta-vozes” designados pelas “assembleias comunitárias”. O novo em tal resolução é que o o voto dos “porta-vozes”, em lugar de se fazer de mão levantada, agora se fará em segredo. Essa modificação não muda em nada o fundo do problema, porque se continua violando o mandato constitucional, previsto nos artigos 63 e 186, nos quais se consagra o caráter universal, direto, personalizado e segredo do voto. Está muito claro em nossa carta magna que o voto é um ato personalíssimo e intransferível, que se exerce diretamente, sem intermediários nem “porta-vozes” e seu propósito é expressar a opinião ou vontade do cidadão ou cidadã, não a opinião ou vontade de outra pessoa que o represente e que esta o emita em segredo não muda a vulnerabilização flagrante desse direito. O sufrágio é um instrumento de exercício da democracia direta, o qual se desnaturaliza completamente no regulamento de antes, ao cercear esse direito aos povos e comunidades indígenas e ao relegá-los à condição de “cidadãos de segunda”. Eles, além de preservar sua identidade ancestral, são também cidadãos venezuelanos que gozam de todos seus direitos e deveres e assim devem ser reconhecidos.
  3. O argumento que sustenta o RERIAN se apoia na resolução No 0068 de 5/06/2020 da Sala Constitucional do TSJ no cual solicita ao poder eleitoral que realize o desenvolvimento normativo da “forma e procedimentos da eleição dos deputados e deputadas indígenas” respeitando suas tradições e costume segundo o estabelece o artigo 186 da Constituição. Sendo como é um direito constitucional conquistado depois de centenárias lutas dos povos indígenas do estabelecido pelo preceito constitucional sobre a progressividade dos direitos (artigo 19),  qualquer mudança das “formas e procedimentos” no exercício de um direito fundamental como é do sufrágio, em nenhum caso pode anular ou afetar o exercício do mesmo, portanto, a consideração dos “usos e costumes dos povos indígenas” deve se fazer sempre dentro desse marco, vale dizer, a aplicação desse critério deve contribuir para dar aos povos originários maior autonomia e capacidade decisória sobre seus assuntos específicos e não menos.
  4. Além de restringir a participação política dos indígenas, ao lhe negar o direito ao sufrágio universal, direto, personalizado e secreto, substituindo-o por uma votação em assembleia restringida ao âmbito local, indireta, não personalizada e pública, o RERIAN consagra a espoliação do exercício soberano da “assembleia comunitária”, a qual é uma instituição ancestral básica do exercício da democracia participativa dos indígenas e em geral de todos os cidadãos, ao convertê-la num órgão tutelado pela burocracia do CNE na figura do chamado “Agente de Coordenação Eleitoral” e sequestrá-la no chamado “manual de funcionamento das Assembleias Comunitárias”. Em tal manual que elaborará o CNE se especificará o número de “porta-vozes ae eleger” (artigo 11) em proporção ao número de integrantes de cada comunidade, aos quais lhe delegarão o poder de seu voto para sejam eles e elas os que elejam seus representantes na Assembleia Nacional. Para estabelecer esse número de integrantes se requeriria dispor de um registro dos mais de 50 povos e comunidades indígenas existentes no país, o qual não existe e tampouco está previsto no curto prazo. Sendo assim, surge a pergunta: com base em que critério será determinado o número de porta-vozes se não existe tal registro? Como será possível auditar um processo dessa natureza para garantir a transparência do mesmo?
  5. O método para o desenvolvimento das “assembleias comunitárias” (AC) será determinado pelo “Agente de Coordenação Eleitoral (ACE) designado pelo CNE e segundo as rígidas pautas estabelecidas no RERIAN (artigo 12) nas quais se prevê totalmente a autonomia da comunidade para tomar suas decisões. O cronograma das AC será fixado unilateralmente pelo CNE e este o fará conhecer em seu portal virtual e nos murais dos escritórios regionais, o qual vai dificultar muito que as comunidades recebam a informação e participem nas mesmas graças à dispersão geográfica e as dificuldades de mobilização e comunicação desde seus territórios. Todo o funcionamento da AC será definido segundo o “manual de funcionamento das assembleias comunitárias” (MFAC) e dirigido pel ACE sem cuja presença perde validez porque toda gestão da documentação (ata) e sua remissão à Oficina Regional Eleitoral (ORE) e à Junta Regional Eleitoral (JRE), da qual nem sequer restará cópia nem constância alguma à comunidade. A pergunta é: como se determina o quórum para que a AC seja válida? Isto é importante porque a designação dos “porta-vozes” neste caso é uma decisão coletiva e segundo as regras da democracia, para que esta seja legítima deve ser respaldada pela maioria. Quem e como se determina essa maioria? São interrogações que evidenciam a complexidade de um processo dessa natureza se consideramo além da diversidade, dispersão geográfica e inexistência de um registro de povos e comunidades indígenas que mencionamos anteriormente. As decisões na AC serão tomados seguindo o referido “manual” e de acordo com a discricionaridade do funcionário do CNE que exerça função de ACE.
  6. Este mecanismo “assembleísta” de eleição de segundo grau com o suposto fim de ajustar o processo de eleição dos deputados indígenas à Assembleia Nacional às “costumes e tradições dos povos e comunidades indígenas”, termina sendo uma excusa para limitar a autonomia e capacidade autogestionária dos mesmos, o qual lhe faz perder sua razão de ser. De fato o RERIAN os despoja de sua capacidade de decidir, de acordo com seus usos e costumes, no âmbito individual e coletivo, em relação à designação de seus representantes no parlamento nacional. Pelo contrário, cria as condições para que sua vontade eleitoral seja escamoteada e sujeita a pressões e chantagens de todo tipo, desnaturalizando e desempoderando os povos e comunidades indígenas, ao retirar-lhes o direito ao sufrágio que têm como cidadãos.
  7. Embora, segundo a última versão do RERIAN, o voto dos porta-vozes na “Assembleia-Geral” é segredo, entretanto, se fará de forma manual, o qual retroage ao sistema eleitoral ao modo “ata mata voto”, com todas as suas vulnerabilidades.
  8. Não tem cabimento o argumento de que os eleitores não-indígenas não deveriam participar da eleição dos deputados indígenas para evitar que sejam eles, por ser a maioria, os que terminem decidindo a mesma, porque omite o caráter intercultural da sociedade venezuelana (Mosonyi)[i] consagrado em nossa Constituição e da condição de cidadãos, que além de sua identidade ancestral, têm os povos originários, o qual lhes dá o direito de eleger mediante o sufrágio a todos os poderes públicos igual a qualquer outro cidadão que não possuía essa condição. Reciprocamente estes últimos têm também esse mesmo direito, do contrário se violaria o princípio da não-discriminação, contido no artigo 19 da Constituição. Portanto, não há razões nem socioculturais nem constitucionais para segmentar a votação dos deputados dos povos indígenas.
  9. Uma mudança na normativa eleitoral que afeta direitos fundamentais dos povos e comunidades indígenas requer uma ampla consulta nacional e especialmente aos mesmos, sobretudo se do que se trata é ajustá-la a seus usos e costumes, a qual não se realizou com propriedade.
  10. Com o estabelecimento no RERIAN de uma votação de segundo grau não prevista na Constituição e o retorno da política “ata mata voto” com a reintrodução da votação manual nas “Assembleias Gerais” de porta-vozes que são as que elegem os Deputados indígenas, está se prefigurando uma involução do sistema eleitoral venezuelano para etapas superadas, que poria em risco as conquistas históricas do povo venezuelano em matéria de transparência e confiabilidade do sistema eleitoral, base fundamental de legitimidade do sistema democrático.

Estas considerações nos permitem afirmar que o Regulamento Especial para regular a Representação Indígena na Assembleia Nacional (RERIAN) é inconstitucional e em lugar de ampliar o direito à participação política dos povos e comunidades indígenas, pelo contrário o restringe significativamente e, ademais, é um primeiro passo para a eliminação do direito ao sufrágio universal, direto e secreto e, a desmontagem do atual sistema eleitoral automatizado, o qual degradaria a participação política cidadã e o exercício da soberania popular.

Exortamos ao CNE a desaplicar o Regulamento que regula o voto indígena para a AN!

Os indígenas não são cidadãos de segunda. São venezuelanos com todos os seus direitos!!!

Santiago Arconada

Juan García

Edgardo Lander

Roberto López

Gustavo Márquez

Marín Oly Millán

Esteban Mosonyi

Héctor Navarro

Ana Elisa Osorio

Artigo originalmente publicado em Aporrea.org. Reprodução da tradução Realizada por Charles Rosa para o Observatório Internacional da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.


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