A vitória do MAS nas eleições da Bolívia

Enviado especial pelo Observatório Internacional do PSOL à Bolívia analisa a vitória de Luis Arce.

Bruno Magalhães 4 nov 2020, 13:48

“Somos mayoría, ¡carajo!”

O grito preso na garganta se espalhou pelo comitê eleitoral do Movimento ao Socialismo em La Paz pouco depois da meia noite, assim que a imprensa boliviana divulgou resultados prévios que davam a vitória à Lucho Arce e seu vice David Choquehuanca já no primeiro turno e com mais de 50% dos votos. De repente, o cansaço e a preocupação se transformaram em alívio e alegria. 

A sala reservada para os então candidatos foi invadida pela militância presente, aliviada após horas na espera dos números. Os resultados foram prometidos para o início da noite e o grande atraso na divulgação levou a todo tipo de especulação sobre qual seria a postura do governo golpista de Jeanine Áñez perante a vitória masista que se desenhava. A presença policial nas esquinas da Avenida Ecuador e a barricada montada na entrada principal do comitê aprofundavam o clima de tensão. No Hotel Europa, onde estava grande parte da delegação de observadores internacionais, chegavam rumores infundados de uma ação da polícia ou da classe média do bairro de Sopocachi contra o comitê de Lucho e David.

Os dirigentes do MAS não esperavam uma vitória tão grande. Conversando nos dias anteriores com camaradas como Marissol Fuentes, da FSTMB (federação mineira), ou Edmundo Nogales, da coordenação da campanha em La Paz, ficava claro o cenário de uma vitória no primeiro turno, mas não de forma tão contundente. Diferentemente do Brasil, na Bolívia pode haver uma vitória no primeiro turno com menos de 50% dos votos desde que o primeiro candidato tenha uma diferença de 10% de votos do segundo colocado, e a maioria dos militantes que ouvimos apostava neste tipo de vitória.

Com a apuração chegando ao fim, vemos um resultado que surpreendeu positivamente a todos e todas. O MAS passou dos 54% dos votos enquanto o ex-presidente neoliberal Carlos Mesa obteve pouco mais de 29% e o fascista Luis Camacho não chegou nem aos 15%. Enquanto La Paz e El Alto entraram em festa, a extrema-direita se mobilizou à frente da sede do tribunal eleitoral de cidades como Santa Cruz de la Sierra exigindo de forma ridícula a anulação das eleições que o próprio governo de extrema-direita havia organizado.

Por que os golpistas aceitaram o resultado?

“Porque nossa vitória foi arrebatadora”. Esta foi a resposta taxativa do jovem senador eleito Andronico Rodríguez quando questionado com esta pergunta em uma coletiva de imprensa logo depois da vitória. Andronico é vice-presidente da Federação de Cocaleiros de Cochabamba e um dos principais representantes da nova geração de lideranças do MAS, junto com camaradas como Orlando Gutiérrez (presidente da FSMTB), Eva Copa (presidente do Senado que optou por não concorrer às eleições para organizar as bases em El Alto), entre outros.

A vitória do MAS sinalizou não só a força da classe trabalhadora boliviana contra o regime golpista como também um deslocamento de eleitores de Carlos Mesa indignados com a violência e o racismo do governo de Áñez. Este governo foi responsável pela perseguição e prisão de diversos ativistas ao longo do últimos meses, sendo marcado já nos primeiros dias do golpe pelos pelos massacres de Senkata (em El Alto) e Sacaba (em Cochabamba), que deixaram 36 mortos.

Seu extremismo direitista se demonstrou também no papel de figuras como Luis Camacho e o ministro da justiça Artur Murillo. Camacho era o presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz à época do golpe e teve papel protagonista durante o vácuo de poder que se seguiu após o colapso do governo de Morales e sua renúncia, a qual foi seguida pela renúncia do vice-presidente García Linera e da presidente do Senado Adriana Salvatierra. Sua entrada no Palácio Quemado com declarações de que “Pachamama nunca mais voltará ao Palácio de Governo”, assim como sua oração de agradecimento com uma Bíblia sobre a bandeira boliviana, chocaram o mundo.

É importante lembrar que o Comitê Cívico de Santa Cruz é uma organização de extrema-direita que já esteve à frente de um processo de luta pela separação das províncias da chamada Meia    

Lua (Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija) em 2008 e possui um braço paramilitar, a União da Juventude Cruceñista. A Meia Luna, situada no leste do país e próxima da fronteira do Brasil, é uma região controlada pelo agronegócio onde o racismo contra a população indígena é ainda mais acentuado.

A enorme vitória do MAS foi um grande golpe tanto na extrema-direita da Meia Lua como na burguesia neoliberal representada por Mesa. Mesmo que o primeiro lugar de Arce no primeiro turno já fosse evidente, a tática da direita foi apostar que a diferença entre ele e Mesa não seria tão grande e, em um possível segundo turno, toda a direita se unificaria e derrotaria o candidato do MAS. Esta aposta continha um risco iminente e provavelmente levaria a um cenário de aprofundamento da crise pelos dois lados da disputa.

Por um lado, porque a aliança entre Mesa e Camacho levaria o ex-presidente ainda mais à direita para buscar os votos do fascista, dobrando a aposta golpista e aprofundando a grande polarização social no país. Por outro lado, o MAS não aceitaria um segundo turno e denunciaria o resultado como fraude praticada pelo governo ilegítimo de Áñez, o que levaria à descida das massas populares de El Alto para enfrentar o governo e seu exército na cidade de La Paz.

O temor de um levante popular contestando uma ida ao segundo turno foi decisivo para que os golpistas não tentassem qualquer manobra. A força e a organização da classe trabalhadora boliviana mais uma vez foram decisivas para garantir que a extrema-direita não avançasse ainda mais no processo de fechamento do regime que se desenvolveu ao longo do último ano. Tanto as organizações sociais de El Alto como as federações de trabalhadores de todo o país se provaram mais uma vez não só como ferramentas de reivindicação econômica, mas como instrumentos essenciais de luta política da classe.

O que levou ao golpe?

A crise política que levou ao golpe de 2019 foi muito mais complexa do que é normalmente relatado. Tanto à esquerda como à direita, os relatos sobre esta crise são lineares e parciais, deixando de lado fatos e informações que são imprescindíveis para a compreensão não só dos eventos do ano passado como também do cenário político atual.

A crise de 2019 começou a ser gestada anos antes, quando um referendo constitucional realizado em 2016 rechaçou a possibilidade de mais uma reeleição para o quarto mandato de Evo Morales e García Linera por um resultado apertado de 51% a 48%. Esta derrota aparentemente obrigaria o MAS a uma renovação que levasse outro quadro político para a disputa das eleições de 2019.

Entretanto, em 2017 o Tribunal Constitucional Plurinacional decidiu que qualquer cidadão teria direito à reeleições consecutivas, o que invalidou a decisão popular realizada em 2016 e permitiu ao presidente Morales disputar novamente as eleições. Esta decisão do tribunal gerou protestos dentro do país e desconforto entre setores dentro do próprio MAS que defendiam a legitimidade do referendo constitucional, levando a um impasse que durou até as eleições de 2019 e culminou nas controvérsias ocorridas durante a apuração destas eleições.

As eleições aconteceram em 20 de outubro e a crise que levou ao golpe explodiu durante a apuração, quando a divulgação dos resultados parciais (sem valor legal) foi interrompida pelo Tribunal Supremo Eleitoral com 83% dos votos apurados. No momento da interrupção, Morales liderava a votação, mas não tinha a diferença necessária do segundo colocado Carlos Mesa para impedir o segundo turno, levando ao início de protestos e acusações de fraude no pleito. Estes protestos foram protagonizados pelos jovens pititas, em geral oriundos da classe média e que empunhavam somente a bandeira boliviana tradicional ao invés da bandeira Whipala plurinacional.

Em 25 de outubro de 2019, o tribunal eleitoral declarou a vitória do MAS, o que aprofundou a crise que se seguiu pelos próximos dias. A Organização dos Estados Americanos (OEA) imediatamente deslegitimou o resultado, mesmo sem qualquer análise técnica do processo, e o governo de Evo entrou em colapso enquanto os protestos avançavam em uma escalada que levou a centenas de feridos e mais de 30 mortos.

Os sindicatos e organizações que antes serviram de suporte ao governo do MAS foram retirando seu apoio ao governo, o que culminou com o pedido da renúncia do presidente feito pela Central Operária Boliviana (COB) em 10 de novembro. A declaração da COB – histórica apoiadora do MAS – tornou a posição de Evo insustentável, sendo obrigado a renunciar após uma tentativa fracassada de convocar novas eleições. Com a renúncia dos outros dirigentes do MAS na linha sucessória, que alegaram ameaças e grandes riscos, a segunda vice presidente do Senado Jeanine Áñez assume o novo governo.

É importante notar que a fraude nas eleições bolivianas de 2019 nunca foi provada. Posteriormente, pesquisadores de entidades como a Universidade de Michigan, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts e diversas outras organizações internacionais independentes validaram os resultados eleitorais, cujas conclusões foram aceitas inclusive pelo jornal norte-americano Washington Post. 

A chegada da extrema direita ao governo após o vazio de poder deixado pela crise daquele momento deixa algumas reflexões. A primeira é sobre a inabilidade de Evo Morales em construir uma transição que permitisse sua substituição por outros quadros do MAS no processo eleitoral, o que tornaria desnecessária a manobra jurídica de 2017 e provavelmente esvaziaria grande parte dos argumentos sobre sua legitimidade no poder. A abrupta interrupção da divulgação dos resultados eleitorais em 2019, apesar de não ser ilegal e não ter alterado os resultados finais, também sinaliza uma posição encastelada que não preocupou com as consequências do ato. O posicionamento da COB, chocante para muitos quem observavam o processo de fora da Bolívia, foi a prova final dos sucessivos erros políticos da direção do MAS.

A segunda reflexão é sobre as organizações sociais. Os grandes avanços dos anos do governo do MAS, notadamente a criação do Estado Plurinacional, tiveram limites. Os mecanismos de poder popular seriam essenciais para barrar a extrema-direita no momento mais crítico, ainda mais no caso da extremamente organizada classe trabalhadora boliviana, mas a aposta exclusiva na via institucional e no “capitalismo andino”, como formulado por García Linera, demonstraram suas limitações quando os trabalhadores e trabalhadoras assistiram o governo do MAS cair sem reagir com a força que tinham.

Não se pode deixar de lado também a análise das características bonapartistas desenvolvidas por Morales durante seu longo governo. A sensação de onipotência que levou ao desrespeito do plebiscito de 2016 se refletiu também na perseguição às dissidências políticas de esquerda e em questões morais na vida particular de Evo, menos relevantes no debate político geral, mas que são indicadores de elementos que levaram à sua renúncia.

Perspectivas de futuro    

O governo Arce/David se desenvolverá sobre um cenário difícil, de crise econômica e polarização política. A derrota da direita, e especialmente da extrema-direita, abre espaço para ações profundas em prol dos interesses da classe trabalhadora boliviana. Avançar na conquista de direitos, e reverter algumas políticas em prol do capital realizadas nos últimos anos, é o que almeja grande parte daqueles e daquelas que votaram no MAS.

Por outro lado, os direitistas não vão desistir de seu projeto e continuarão tensionando a situação política no sentido contrário. Os interesses dos latifundiários do campo e dos neoliberais urbanos ainda estão em jogo, e estes setores recorrerão a qualquer coisa para fazer prevalecer seus privilégios, e se utilizaram da violência da mesma forma que já fizeram outras vezes. A ilusão de que a extrema-direita está derrota politicamente é perigosa neste momento de derrota eleitoral de Camacho.

Arce e David estão numa encruzilhada na qual um caminho leva ao aprofundamento da organização e de medidas econômicas populares enquanto outro leva à conciliação com a burguesia boliviana e maior aposta na institucionalidade. O processo mundial de polarização política também       se desenvolve no país e as tentativas de combinar as duas saídas provavelmente levarão a um governo fraco e inconstante. Não há futuro viável para o novo governo do MAS sem o aprofundamento dos organismos de trabalhadores e sem a radicalização da democracia popular.

O papel de Evo em tudo isso ainda é uma incógnita. Seus erros levaram a uma perda de protagonismo que coloca hoje novos quadros do MAS como representantes dos anseios populares, e sua volta do exílio na Argentina é incerta não somente por fatores políticos como por denúncias apresentadas contra ele na justiça comum. A posição oficial dos dirigentes masistas é de que ele está livre para voltar e que, como um cidadão comum, deve responder a estas acusações perante uma justiça imparcial. Ao mesmo tempo, a todo momento reforçam que a responsabilidade do novo governo é de Lucho Arce e David Choquehuanca. Não se sabe se Evo voltará para fortalecer ou para desestabilizar o novo governo, mas com certeza ele não estará alheio ao curso dos futuros acontecimentos.

As eleições bolivianas de 2020 demonstraram a força da classe trabalhadora e seu potencial enquanto sujeito histórico para as transformações do país. Surge cada vez mais forte uma nova geração de lideranças do MAS, oriundas de sindicatos e movimentos sociais, e estes companheiros e companheiras carregam a esperança do povo no futuro. Os próximos meses e anos não serão nada fáceis para os socialistas bolivianos, mas esta vitória recente pode representar uma inflexão continental na escalada direitista e dá enorme ânimo aqueles e aquelas que lutam por toda a América Latina.    


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Pedro Micussi