Entre ondas e interregnos

Em mar aberto, sem rumos nítidos, nos reconhecemos hoje neste angustiante e contraditório lugar do medo e da incerteza quanto ao futuro.

Iolanda Silva Barbosa 3 mar 2021, 17:54

“… Nestes dias de guerra cerrada,

prosseguir é o de menos, o nada.

E o voltar é, em si, tão obtuso

que o parar é, por si, um consolo.

E não consola.

Hemos tido por certo o errado

(Já que o errado é a pausa, a metade

-sem tropeço- do que há de ser feito)

e o silêncio em tornado palavra

ordenou a parada: o que basta.”

“O velho”, Torquato Neto

Com a sucessão dos meses de pandemia, a maioria de nós vive entre o medo do vírus e das consequências de seu contágio em massa, com números surreais de infectados e mortos, e a esperança de que ações de enfrentamento e a própria vacinação, embora negligenciadas por Bolsonaro e sua política genocida, nos devolvam nossas “vidas normais”.

Se no início da pandemia guardávamos a expectativa de que, embora difícil, a situação se resolveria em alguns meses, hoje sabemos que a incidência do vírus tem se dado em ondas, de efeitos mais ou menos devastadores, a depender das medidas de controle- quase inexistentes atualmente no Brasil. Em mar aberto, sem rumos nítidos, nos reconhecemos hoje neste angustiante e contraditório lugar do medo e da incerteza quanto ao futuro.

Vale aqui retomar o conceito de interregno, elaborado por Antonio Gramsci, tão utilizado para análise do tempo em que vivemos, e que, de forma simplificada, diz respeito a um momento de ruptura ideológica e de disputa quanto à estruturação do próprio regime. Nas palavras do próprio filósofo, em Cadernos do cárcere, “A crise consiste justamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno, verifica-se os fenômenos patológicos mais variados”. Seria, quem sabe, na linguagem cinematográfica de Glauber Rocha, uma “terra em transe”, em todas as suas contradições.

Ideia semelhante foi elaborada, de forma mais simplificada e poética, pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano, quando de uma informal conversa com um grupo de jovens durante manifestações de rua na Espanha, em 2011. Segundo ele, “há outro mundo na barriga desse, esperando. Um mundo diferente, de parto difícil, que não vai nascer facilmente, mas que, com certeza, pulsa no mundo em que estamos”.

Ingenuamente otimista ou não, essa percepção de mudança é nítida no momento em que vivemos: a pandemia é um marco histórico, em perspectiva social e econômica, mas também humana, no que diz respeito à estrutura, às relações e dinâmicas interpessoais, necessariamente rearranjadas. O que nos aguarda após esse período é ainda incerto.

Vale lembrar, no entanto, que, nos momentos de maior tensão, podemos encontrar nos registros históricos, especialmente nos processos de resistência, instrumentos para enfrentar os desafios presentes: nossa geração não é a primeira a sofrer intempéries sanitárias, sociais ou políticas, haja vista, por exemplo, a Gripe Espanhola no século XX; nem mesmo somos, definitivamente, os primeiros a sofrer, coletiva e subjetivamente, os efeitos de uma crise: se hoje lamentamos a necessidade do isolamento social, o que pensar daqueles e aquelas que padeceram nos porões e cárceres, isolados da realidade que ansiavam por revolucionar?

Em dado momento de Todas as horas do fim (2018), por exemplo, documentário sobre a vida e obra do poeta e compositor Torquato Neto, “o anjo torto”, é comentada a angústia que era viver os anos 1970 no Brasil- angústia que levaria à morte do próprio poeta. Naqueles anos, aponta o documentário, não havia nem a esperança de derrotar o regime militar em seus anos iniciais, nem a entusiasmo ante o início da abertura democrática dos anos 80.

Poderíamos ainda fazer o exercício de imaginar como foi viver, no século XX, o assombro da primeira Grande Guerra, seguida pelo terror da escalada dos regimes fascistas e pela II Guerra propriamente dita.

Nessa atmosfera, inclusive, Virginia Woolf, cuja trágica morte completa neste mês 80 anos, escreve e ambienta sua derradeira obra, Entre os atos (1941). Nela, de maneira quase despretensiosa, a autora faz um retrato de seu tempo, dos medos e angústias daquele entreguerras.

Apenas alguns meses antes da eclosão da II Guerra, moradores de um vilarejo no interior da Inglaterra se reúnem para assistir a um pageant. A apresentação, realizada ao ar livre, retrata com ironia a história do país e é entrecortada, em dado momento, pelo sobrevoo de aeronaves- a Guerra parece, de fato, espreitar por entre os arbustos, como personagem prestes a entrar em cena.

A certa altura, um dos personagens se irrita com a indiferença e tranquilidade de alguns dos convidados ante uma Europa que naquele momento “se arrepiava como um ouriço”- o que talvez possamos comparar à postura de Bolsonaro diante da tragédia em curso.

A apresentação é compassada por um gramofone, que ao final vaticina: “Dispersos estamos, nós que nos reunimos. Mas… conservemos em nós o que faz nascer essa harmonia”- uma tarefa que hoje resgatamos e atualizamos por imposição da pandemia.

Além da própria tensão do ambiente do entreguerras, a obra evidencia, como indica seu título, a importância do que ocorre no intervalo entre os atos– as relações, comentários e expectativas dos que assistem à apresentação. Hoje, no Brasil, infelizmente assistimos, até certo ponto impotentes, à uma tragédia, em um palco tomado por seus sádicos artífices.

Viver este momento, entre os atos, entre as ondas de contágio de uma doença ainda sem controle, com todos os seus desafios angustiantes, sofrendo perdas diretas e indiretas, faz com que nos sintamos, coletiva e subjetivamente, à deriva. Resta-nos, no entanto, guardar a esperança de que a maré se acalme, de que um novo e melhor tempo se anuncia, na forma da gestação de um novo mundo, de difícil parto, tal como o pensou Galeano, ou como novo ato, como na obra de Virginia.


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