As contribuições de Reforma ou Revolução?, obra de Rosa Luxemburgo

Obra centenária continua atual.

Camila Souza 12 maio 2021, 16:26

Quando Rosa Luxemburgo escreveu esse clássico da teoria revolucionária, ela tinha 28 anos. Se já não fosse surpreendente pelo seu conteúdo, a obra reforça que mesmo tão jovem Rosa já dominava com maestria o marxismo de Marx, transitando da economia política até a teoria das revoluções, da luta de classes, e que tal convicção lhe dava força e coragem para enfrentar de igual para igual os grandes nomes (homens) da II Internacional e de seu partido o SPD – Partido Social Democrata Alemão.
            “Reforma ou Revolução?” é uma obra que vai rejeitar o oportunismo a partir da desconstrução de cada um de seus argumentos e postulados. A autora afirma que primeiro o oportunismo tentou ignorar a teoria marxista e seus ensinamentos para as políticas do partido, mas logo depois passou a tentar desacreditá-la. Dessa forma, a teoria de Bernstein veio como uma busca pela legitimação científica do oportunismo que já estava presente nos debates e práticas internas. E é quando esses desvios se traduzem na prática que precisam ser ultrapassados pela experiência e combate decidido do próprio movimento. E é para contribuir nesse sentido que Rosa escreve estes textos que conformam o livro.

À época o desenvolvimento do capitalismo na Alemanha era terreno fertil para o revisionismo. Superando as crises que marcaram a segunda metade do séc. XIX, vivia-se um período de ganhos materiais expressivos para a classe operária. Zinoviev vai trazer a expressão “aristocracia operária”, cujo objetivo era a busca pela ordem e paz, pela defesa do status quo social. Tal contexto explica que o oportunismo não foi uma invenção individual, mas produto de condições sociais objetivas, por onde se forjavam as relações e o crescimento do SPD.

Rosa vai nos conduzir a compreender que todos os componentes da teoria de Bernstein já estavam presentes em sistemas anteriores ao socialismo científico, e que por este já haviam sido superados. Portanto, poderíamos concluir que o que estava em jogo não era uma disputa entre por quais caminhos as reformas poderiam nos conduzir a uma revolução, mas um completo abandono da revolução como estratégia e do socialismo como uma necessidade histórica objetiva. A consequência na orientação prática é que não se deve visar mais a conquista do poder político pela classe trabalhadora, pois o socialismo viria por uma “extensão gradual do controle social da economia e pelo estabelecimento de um sistema de cooperativas”. Ou seja, o socialismo não seria uma ruptura revolucionária, mas um processo de desenvolvimento paulatino dentro da própria estrutura capitalista.

Assim, a autora discorre evidenciando que o revisionismo tinha dois fundamentos, um político expresso na concepção de Estado e por consequência, de democracia, e outro econômico expresso no absoluto abandono dos princípios do socialismo científico, que se traduziam na política para os sindicatos e as cooperativas.
            Recorrendo a trechos e citações presentes na obra, vamos desenvolver um diálogo com ela para apresentar os principais argumentos que sustentam a luta de Rosa contra o oportunismo.

O Socialismo como necessidade histórica

Encantado pela elasticidade que o sistema capitalista possui e que lhe confere certa capacidade de superação de suas próprias crises, Bernstein vai defender que a realização do socialismo pode encontrar apoio nos fundamentos econômicos que são base do capitalismo. Para ele os chamados “fatores de adaptação”, que são, por exemplo, as fusões que formam as organizações patronais, o crédito, o aperfeiçoamento dos meios de comunicação, são caminhos que permitem a superação e até mesmo a anulação das contradições e assim salvam o sistema, e ainda permitem uma contínua elevação do nível de vida da classe operária.
            Percebe-se como a teoria revisionista não nega que existam graves contradições no interior do desenvolvimento capitalista, mas dialoga com a existência delas buscando provar que é possível atenuá-las, corrigi-las ou mesmo dominá-las a favor dos interesses da classe operária. Bernstein chega a defender que através da socialização da produção proporcionadas pelas fusões, e com os sindicatos tendo um papel de controle social da produção, seria possível avançar em uma regulamentação que colocasse fim à anarquia e desse condições de prevenção aos possíveis erros e desordens que levam às crises.

Na ideia dessa ação socializante progressiva da economia, os direitos do proprietário poderiam ser reduzidos cada vez mais a uma mera condição de administrador. E é aqui que o oportunismo vai revelando seu abandono da lei do valor-trabalho e por consequência das relações entre capital e trabalho. Bernstein enxerga o capitalista como um indivíduo, e não como uma categoria social. Os antagonismos de classe são reduzidos a antagonismos entre ricos e pobres. Transfere-se a compreensão das relações de exploração presentes na base da produção para o campo das relações entre fortunas.
            Assim, a orientação política do partido, segundo os oportunistas, passa a se resumir a uma busca pela redução do lucro do capitalista que permitiria por consequência o enriquecimento dos operários. O horizonte de luta pelo fim da propriedade privada dos meios de produção e a conquista do poder político pela classe trabalhadora passam a ser uma utopia, uma abstração. Há, portanto, uma alteração na estratégia da luta, que passa a não ser mais contra o modo de produção capitalista em si, mas apenas contra o modo de repartição da riqueza capitalista.

Todas essas ideias encontram vazão através da materialidade de que havia uma elevação do nível de vida da classe operária em curso no país à época, e por consequência uma busca em defender essa estabilidade. E assim, a construção do socialismo vai deixando de lado suas bases científicas, para se adaptar a noções morais de justiça.

Entretanto, a realidade é implacável e o desenvolvimento do capitalismo evidenciou que todos os aspectos que Bernstein chamou de “fatores de adaptação” apesar de darem uma elasticidade ao sistema, também atuaram como elementos corrosivos que agudizaram contradições e levaram a novas e maiores crises. Evidenciando que “as crises não são desordens frutos de erros, são manifestações orgânicas inseparáveis do conjunto da economia capitalista”.

Hoje estamos diante de um cenário de crise total, econômica, política, social, ambiental e agora sanitária. Como Rosa afirma, “a essência da tática revolucionária consiste em reconhecer a tendência do desenvolvimento e daí transpor as suas consequências últimas para a luta política”. Bernstein não elaborou de modo a superar as contradições, mas utilizou uma tática de adaptação à economia capitalista.

Aqui parece útil relembrar como reagiu Lula ao ser questionado sobre como a crise econômica de 2008 poderia chegar ao Brasil, o ex-presidente da República disse que seria uma marolinha. Diante disso, a orientação petista não esteve armada na linha da mobilização permanente em defesa dos interesses dos trabalhadores, e sim pela conciliação, por governar com a burguesia, ou seja, por ser governado pelos interesses dela. Foi assim, que vivenciamos a experiência de que sem mudanças estruturais, em momentos de crise como essa que vivemos, cada conquista ganha em tempos anteriores pelos trabalhadores, por menores que sejam, passam a ser questionadas e eliminadas.

Nossos desafios atuais devem beber dessas lições. Quase 20 anos depois da primeira Carta ao Povo Brasileiro que concretizou o pacto do PT com a cartilha de interesses da burguesia, Lula volta à disputa eleitoral prometendo fazer o “Brasil feliz de novo”, obedecendo a mesma estratégia de humanização do capitalismo, seguindo o mesmo caminho e cartilha de outrora que nos trouxe até aqui. Afinal, não se explica a existência de Bolsonaro, sem explicar a frustração e os erros do projeto petista.

Mas depois de tantos anos de crise econômica profunda e índices de desigualdade gritantes, a esquerda brasileira independente se vê diante do desafio de atualizar seu programa de transição, que conforme nos ensinou Trotsky, é aquele capaz de unificar as demandas imediatas com a demanda histórica de construção de uma nova sociedade radicalmente diferente desta. 

A relação dialética entre reforma e revolução

Uma leitura desatenta e sectária poderia nos conduzir a afirmar que Rosa não vê importância nas lutas por reformas, e que visa somente a revolução. Mas o que se perde com essa compreensão é justamente a relação dialética entre ambas. A começar que o título do livro não é uma afirmação, mas uma pergunta: “Reforma ou Revolução?”. E todo seu desenrolar é uma resposta de combate à aqueles que desvinculam a relação que ambas possuem, e acabam por fazer da reforma social um objetivo autônomo em si, separado da estratégia revolucionária.

Rosa vai didaticamente explicar que as reformas não podem ser entendidas como uma revolução que é diluída a conta gotas no tempo. “A revolução social é diferente da reforma legal não pelo tempo de duração mas pelo seu conteúdo”. Uma  se estabelece dentro dos marcos dos limites do sistema, podendo até o questionar, mas não altera a sua estrutura de funcionamento. Já a revolução é justamente a ruptura com a ordem política burguesa e a construção de sociedade onde a base de produção não seja pautada pela propriedade privada dos meios de produção.

Mas diante de um sistema de exploração tão intenso e degradante, teriam as reformas um papel relevante? É claro que sim. Do ponto de vista social elas são importantes por atuarem nas necessidades mais imediatas de melhoria das condições de vida da classe operária, mas do ponto de vista político também são importantes, especialmente porque organizam o proletariado como classe. Dando consciência, experiência, organização e maturidade.

Afinal, a revolução socialista implica uma luta de longo prazo, que exige a criação de condições políticas para a vitória definitiva da classe operária. Nesse processo cada mobilização social contribui para que os trabalhadores ganhem grau de maturidade, aprendam com os erros e ganhem consciência de sua força coletiva e de suas necessidades enquanto classe. Rosa nos lembra que há uma pedagogia na luta, que se forja a partir da organização, da conscientização e ação de combate. 

Por isso, a luta por reformas só faz sentido em um contexto onde se visa a revolução. Do contrário, ficaríamos reféns dos interesses de classe da burguesia e de suas nada neutras noções de justiça e paz.

As reformas são produto dos impulsos revolucionários, pois é buscando alterar radicalmente essa sociedade que vamos acumulando forças e ganhos à classe trabalhadora. É localizando cada contradição que o sistema produz, analisando-a sob a perspectiva de classe, e buscando superá-la que podemos avançar em prol dos interesses dos operários. Quanto mais firmes na estratégia revolucionária, mais contundentes são os ganhos imediatos a favor da maioria social.

Aqueles que abandonam a estratégia revolucionária, por acharem suficiente conduzir a mudança social pela via da soma de cada reforma, tendo as melhorias imediatas como um fim em si mesmo, não estão escolhendo um caminho mais fácil, e sim um caminho de ilusões. Afinal, o capitalismo é pão para hoje, e fome para amanhã. Suas crises inerentes e recorrentes acabam sempre desnudando o caráter de classe do Estado e dos interesses de desenvolvimento social. 

Abandonar a luta de classes por noções universais e organizar os trabalhadores sob o ideal de que podemos reformar o capitalismo para torná-lo mais humano e justo, é organizar os trabalhadores para a derrota, e enfraquecê-los enquanto classe.

Sabemos hoje, analisando a história, que o PT como partido nunca teve com clareza a construção do socialismo como sua estratégia, e sua chegada à Presidência da República confirmou e acelerou seu projeto reformista. E diga-se de passagem, de reformas bastante tímidas, inclusive se comparados com os demais governos progressistas da América Latina. Afinal, além de obedecer a cartilha neoliberal com reformas como a da previdência, não houve uma real distribuição de renda, a concentração seguiu em níveis altos, mesmo que tenham apresentado programas importantes como o Bolsa Família.

Mas ainda analisando a experiência petista, talvez aqui possamos jogar luz sobre um dos mais necessários balanços que devemos tirar como esquerda. Um projeto que foi forjado em lutas sociais agudas contra a ditadura e o neoliberalismo e que provou sua força pelo método da auto organização e da mobilização permanente, passou a hierarquizar sua ação militante pelas cúpulas, pelos gabinetes da institucionalidade burguesa.

Ao aceitar jogar o jogo se vendendo para as regras da burguesia, além de cooptar as lideranças sindicais e de movimentos para os postos do Estado e de rebaixar e trair o programa de reivindicações, também se deseducou, desarmou e enfraqueceu a organização da classe e por consequência sua capacidade de resistência. Quando no golpe parlamentar a burguesia optou por devolver o posto aos seus filhos legítimos, pagamos o preço desses erros. E a ausência de uma alternativa de esquerda com influência de massas, se somou e abriu espaço ao terreno fértil para a agitação das ideias fáceis da extrema direita bolsonarista.

O mito da ligação intrínseca entre capitalismo e democracia

A ideia de que se possa ter um capitalismo sem capitalismo, ou seja, um capitalismo humano, sem a exploração degradante que lhe é própria, se sustenta também na concepção de Estado e de democracia que o revisionismo desenvolve.

Sabemos, como Rosa afirma, que “o desenvolvimento do capitalismo modificou profundamente o caráter do Estado, alargando sua esfera de atuação e impondo novas funções”. Mas mesmo que tenha assumido funções que representem os interesses gerais do desenvolvimento social, este não deixou de ser uma organização da classe capitalista dominante. Ou seja, sua forma democrática não anula seu conteúdo de classe, por isso ele assume os interesses gerais desde que estes não estejam em desacordo e contradição com os interesses da classe burguesa.

Rosa nos alerta que “Berstein via na extensão da democracia um último processo para realizar progressivamente o socialismo”, mas tal extensão da democracia burguesa longe de se opor, acabava por confirmar o capitalismo. Afinal, percebemos que há uma contradição entre a forma e a essência: mesmo que na agitação das leis prevê-se uma igualdade e liberdade formais garantidas no papel, na prática a aplicação do conteúdo burguês atua de modo a limitar e negar essa igualdade e liberdade. Temos, portanto, um Estado que tem uma universalidade negada e limitada pelo seu caráter de classe burguês. 

O revisionismo agitou a existência de uma relação intrínseca entre o capitalismo e a democracia. Mas trata-se de um mito. A própria história nos mostra que durante o seu desenvolvimento o capitalismo teve diferentes formas políticas que não só a democracia, há gradações que vão da monarquia à república democrática. Não há dúvidas, que o Estado burguês para impor sua lógica de acumulação e/ou defender seus interesses contra a ofensiva do movimento operário, pode utilizar de atividades coercitivas, militaristas e imperialistas. “Por isso, a democracia burguesa produz em sua política colonial, formas de dominação autocráticas e ditatoriais.”

Aqui no Brasil, estamos assistindo como parte da burguesia para garantir a implementação de seu programa econômico, admite tranquilamente Bolsonaro e seu projeto genocida. E por mais que busquem um Bolsonaro sem o bolsonarismo, especialmente o seu negacionismo anticiência, acabam topando engolir esse remédio amargo, desde que tenham suas necessidades atendidas. O último episódio do jantar de Bolsonaro em São Paulo com uma série de empresários, que no pior momento da pandemia toparam se reunir com o presidente e o aplaudiram, é um exemplo disso. Enquanto o presidente genocida não garantiu a compra de vacinas para toda a população, os empresários ovacionaram a sua política de privatização da vacina, que fura a fila do Plano Nacional de Imunização, e abre espaço para termos um camarote VIP dos amigos do presidente nessa corrida pela imunização contra o vírus da Covid-19.

Afinal, conforme colocamos acima, na abordagem dialética do Estado burguês, percebemos que sua universalidade é limite e negada, pois as relações capitalistas não são um produto das leis burguesas, mas estas últimas que são uma expressão e tradução das relações capitalistas. A burguesia, portanto, não é representante do interesse universal humano. Não há neutralidade nessa disputa. E por isso, “a ação legislativa no parlamento não pode substituir jamais a organização do proletariado para a conquista do poder político por meios revolucionários”.

Por isso que Rosa vai reconhecer que é óbvio que todas as conquistas democráticas são fundamentais, como o sufrágio universal, as liberdades de organização, imprensa e de expressão. Elas dão melhores condições de luta para a classe trabalhadora, mas igualmente vai afirmar que elas não são um presente oriundo do desenvolvimento da democracia no capitalismo, mas uma conquista que foi arrancada mediante luta, e que só um proletariado forte e organizado é capaz defender cada uma delas contra as investidas reacionárias da qual a burguesia pode se utilizar para defender seus interesses.

É nesse sentido que para defender as conquistas democráticas contra o fascismo de Bolsonaro topamos unidade de ação ampla com setores que vão além do espectro da esquerda, mas igualmente não podemos depositar nessa unidade a confiança de que serão consequentes em derrotá-lo e em concretizar nossos interesses. Por isso, é necessário no Brasil fortalecer uma esquerda independente que expresse as necessidades, e o programa da classe trabalhadora. Sem falar que a derrota definitiva de Bolsonaro e seu programa fascista, só virá pelas mãos do povo trabalhador organizado.

“Reforma ou Revolução?” já é uma obra centenária. Tanta experiência acumulamos de lá para cá. Mas suas lições ainda continuam atuais e vivas. Que saibamos utilizá-las como farol que orienta o debate e a ação revolucionária.


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