Folheto Junius

Artigo publicado em 1916.

Rosa Luxemburgo 14 maio 2021, 19:10

Parte I

A situação mudou completamente. A marcha de seis semanas sobre Paris se converteu num drama mundial. O assassinato em massa se transformou numa tarefa monótona, mas a solução final não parece estar mais próxima. O capitalismo ficou preso em sua própria armadilha e não pôde exorcizar o espírito que invocou.

Passou o primeiro delírio. Passaram os tempos das manifestações patrióticas nas ruas, da perseguição de automóveis de aspecto suspeito, dos telegramas falsos, dos poços de água envenenados com o vírus da cólera. Já terminou a época das histórias fantásticas de estudantes russos que atiram bombas das pontes de Berlim, ou de franceses que sobrevoam Nurembergue; acabaram-se os dias em que o povo cometia excessos ao sair para caçar espiões, das multidões cantando, dos cafés com coros patrióticos; não mais turbas violentas, prontas a denunciar, a perseguir mulheres, a chegar até o frenesi do delírio diante de cada rumor; se dissipou a atmosfera do assassinato ritual, o ar de Kishinev, que fazia com que o vigilante da esquina fosse o único representante que restava da dignidade humana[1].

O espetáculo terminou. A tela desceu sobre os trens entupidos de reservistas, que partem em meio à alegre gritaria de moças entusiastas. Já não vemos seus rostos risonhos, sorrindo alegremente das janelas do trem para uma população faminta de guerra. Andam silenciosamente pelas ruas, com as trouxas no ombro. E o público, com rosto preocupado, volta a seus afazeres diários.

Na atmosfera de desilusão da pálida luz do dia ressoa outro coro: o severo grasnar dos gaviões e o riso das hienas nos campos de batalha. Dez mil tendas, garantidas segundo as instruções, cem mil quilos de toucinho, cacau em pó, substituto do café, pagos contra a entrega. Metralhadora, instrução militar, bolsas de munições, agências matrimoniais para as viúvas de guerra, cinturões de couro, ordens de guerra: somente se levarão em conta as propostas sérias. E a carne de canhão que subiu nos trens em agosto e setembro apodrece nos campos de batalha da Bélgica e dos Vosgos enquanto os lucros crescem como joio entre os mortos.

Os negócios florescem sobre as ruínas. As cidades se transformam em escombros, países inteiros em desertos, aldeias em cemitérios, nações inteiras em mendigos, igrejas em estábulos. Os direitos do povo, as alianças, os tratados, as palavras santas, as maiores autoridades estão feito pedaços; cada soberano pela graça de Deus recebe a pecha de estúpido, de desgraçado e mal-agradecido de parte do seu primo do outro lado da fronteira; cada chanceler qualifica seus colegas dos países inimigos de criminosos desesperados; cada governo olha os demais como se fossem o anjo mau de seu povo, digno apenas do desprezo do mundo. A fome campeia em Veneza, em Lisboa, em Moscou, em Singapura; a peste na Rússia, a miséria e o desespero em todos os lugares.

Sem vergonha, sem honra, nadando em sangue e espalhando imundície: assim vemos a sociedade capitalista. Não como a vemos sempre, desempenhando papéis de paz e retidão, ordem, filosofia, ética, mas como besta vociferante, orgia de anarquia, emanação pestilenta, devastadora da cultura e da humanidade: assim nos aparece em toda sua horrorosa crueza.

E no meio desta orgia, ocorreu uma tragédia mundial: a social-democracia alemã capitulou. Tapar os olhos frente a este fato, tratar de ocultá-lo, seria o mais idiota, o mais perigoso que o proletariado internacional pode fazer. “O democrata (ou seja, a classe média revolucionária) – escreve Karl Marx – sai do poço mais vergonhoso tão imaculado como quando entrou inocentemente nele. Com sua confiança na vitória fortaleci da, tem mais que nunca a plena certeza de que ele e seu partido não precisam de princípios novos, que os acontecimentos e as circunstâncias é que devem se ajustar a ele.” Tão gigantescos como seus problemas são seus erros. Nenhum plano firmemente elaborado, nenhum ritual ortodoxo válido para todos os tempos lhe mostra o caminho a seguir. A experiência histórica é seu único mestre, sua Via Dolorosa até a liberdade está marcada não só de sofrimentos inenarráveis, mas também de incontáveis erros. O objetivo da viagem, a libertação definitiva, depende completamente do proletariado, de se este aprende por seus próprios erros. A autocrítica, a crítica cruel e implacável que vai até a raiz do mal, é vida e alento para o proletariado. A catástrofe em que o mundo jogou o proletariado socialista é uma desgraça sem precedentes para a humanidade. Porém, o socialismo está perdido unicamente se o proletariado é incapaz de medir a envergadura da catástrofe e se nega a compreender suas próprias lições.

Estão em jogo os últimos quarenta e cinco anos de história do movimento operário. A situação atual é um acerto de contas, um saldo do débito e crédito de meio século de trabalho. Na tumba da Comuna de Paris jaz enterrada a primeira fase do movimento operário europeu e a Primeira Internacional. No lugar das revoluções, motins e barricadas espontâneas, depois das quais o proletariado voltava a cair na passividade, apareceu a luta diária e sistemática, a utilização do parlamentarismo burguês, a organização de massas, a união férrea da luta econômica com a política, dos ideais socialistas com a defesa tenaz dos interesses mais imediatos. Pela primeira vez o conhecimento científico guiava a causa da emancipação do proletariado. Em lugar das seitas e escolas, de empresas e experiências utópicas em cada país, total e completamente separadas umas das outras, temos uma base teórica uniforme e internacional que une as nações. As obras teóricas de Marx foram uma bússola para a classe operária de todo o mundo fixar sua tática hora após hora, em busca da única meta imutável.

O portador, o defensor, o protetor do novo método foi a social-democracia alemã. A guerra de 1870 e a derrota da Comuna de Paris haviam transferido o centro de gravidade do movimento operário europeu para a Alemanha. Assim como a França foi o país clássico da primeira etapa da luta de classe do proletariado, assim como Paris foi o coração, roto e ensangüentado, da classe operária européia, a classe operária alemã se transformou na vanguarda da segunda etapa. Com incontáveis sacrifícios, pelo trabalho de agitação, construiu a organização mais forte, a organização-modelo do proletariado, criou a maior imprensa, desenvolveu os métodos mais eficazes de educação e propaganda. Reuniu sob sua bandeira as massas trabalhadoras mais numerosas, e elegeu as maiores bancadas nos parlamentos nacionais.

Em geral se reconhece que a social-democracia alemã é a encarnação mais pura do socialismo marxista. Adquiriu um grande prestígio como mestra e dirigente da Segunda Internacional e o utilizou. Em seu famoso prólogo para A luta de classes na França de Marx, Friedrich Engels escreveu: “porém, ocorra o que ocorrer em outros países, a social-democracia alemã tem uma posição especial, e com ela, no momento pelo menos, uma tarefa especial também. Os dois milhões de eleitores que envia às urnas, junto com os jovens e mulheres que estão atrás deles e não têm um voto, formam a massa mais numerosa e mais compacta, a ‘tropa de choque’ decisiva do exército proletário mundial”[2]. Como disse o Wiener Arbeiterzeitung de 5 de agosto de 1914, a social-democracia alemã era a jóia das organizações do proletariado consciente. A social-democracia da França, da Itália e da Bélgica, os movimentos operários da Holanda, Escandinávia, Suíça e Estados Unidos seguiam iludidos seus passos. As nações eslavas, os russos e’ os social-democratas dos Bálcãs contemplavam ao movimento alemão com admiração infinita, quase cega. Na Segunda Internacional, a social-democracia alemã era sem dúvida o fator decisivo. Em cada congresso, em cada plenária do Burô Socialista Internacional, tudo dependia da posição do grupo alemão.

Especialmente na luta contra a guerra e o militarismo, a posição da social-democracia sempre foi decisiva. Bastava um “nós, alemães, não podemos aceitar” para determinar a orientação da Internacional. Com cega confiança todos se submetiam à direção da admirada e poderosa social- democracia alemã. Era o orgulho de todos os socialistas, o terror das classes dominantes de todos os países.

E o que aconteceu na Alemanha quando ocorreu a grande crise histórica? A pior queda, o pior cataclisma. Em nenhum lugar a organização proletária se submeteu tão docilmente ao imperialismo. Em nenhum lugar se suportou o estado de sítio com tanta submissão. Em nenhum lugar se amordaçou assim a imprensa, se abafou tanto a opinião pública; em nenhum lugar se abandonou tão completamente a luta política e sindical da classe operária como na Alemanha.

Porém, a social-democracia alemã não era somente o organismo mais forte da Internacional. Era também seu cérebro pensante. Por isso, o processo de auto-análise e apreciação deve começar em seu próprio movimento, em seu próprio caso. Sua honra a obriga a encabeçar a luta pelo resgate do socialismo internacional, a iniciar a crítica implacável de seus próprios erros.

Nenhum outro partido, nenhuma outra classe na sociedade capitalista pode atrever-se a refletir seus erros, suas próprias debilidades no espelho da razão, para que todo mundo as veja, porque o espelho refletiria a sorte que a história lhe tem reservada. A classe operária sempre pode olhar a verdade cara a cara, ainda que isto signifique a mais tremenda auto-acusação, porque sua debilidade não foi senão um erro, e as leis inexoráveis da história lhe dão forças e lhe asseguram a vitória final.

Esta crítica implacável não só é uma necessidade fundamental, mas também um dos máximos deveres da classe operária. Temos os maiores tesouros da humanidade e a classe operária está destinada a ser seu protetor. Enquanto a sociedade capitalista, sem vergonha e sem honra, corre em meio a uma orgia sangrenta ao encontro do seu destino, o proletariado internacional reunirá os tesouros que foram jogados ao fundo no torvelinho selvagem da guerra mundial em um momento de confusão e debilidade. Uma coisa é certa. É uma ilusão idiota acreditar que basta sobreviver à guerra, como um coelho se oculta sob um arbusto até que passe a tormenta, para seguir alegremente seu caminho no passo de sempre, quando tudo passa. A guerra mundial mudou as circunstâncias da nossa luta, e, sobretudo, mudou a nós próprios.

Não é que tenham mudado ou se minimizado as leis do desenvolvimento capitalista ou o conflito entre o capital e o trabalho. Ainda agora, no meio da guerra, as máscaras caem e as velhas caras que conhecemos nos sorriem com ar velhaco. Porém os acontecimentos receberam o poderoso ímpeto da explosão do vulcão imperialista. A enormidade das tarefas que se apresentam diante do proletariado socialista no futuro imediato faz com que, em comparação, as lutas do passado pareçam um delicioso idílio.

A guerra possui a missão histórica de dar um poderoso ímpeto à causa dos trabalhadores. Marx, cujos olhos proféticos previram tantos acontecimentos históricos enquanto estavam no ventre do futuro, escreve o seguinte parágrafo significativo em A luta de classes na França: “Na França, o pequeno- burguês faz o que normalmente deveria fazer o burguês industrial; o operário faz o que normalmente deveria ser a missão do pequeno-burguês; e a missão do operário, quem a cumpre? Ninguém. As tarefas do operário não são feitas na França; apenas são proclamadas. Sua solução não pode ser alcançada em nenhuma parte dentro das fronteiras nacionais; a guerra de classes dentro da sociedade francesa se transformará numa guerra mundial entre nações. A solução começará a partir do momento em que, através da guerra mundial, o proletariado seja empurrado a dirigir o povo que domina o mercado mundial, a dirigir a Inglaterra. A revolução, que não encontrará aqui seu fim, mas sim seu começo organizativo, não será uma revolução de fôlego curto. A atual geração se parece com os judeus que Moisés conduzia pelo deserto. Não apenas tem que conquistar um mundo novo, mas tem que perecer para deixar lugar aos homens que estejam à altura do novo mundo”[3].

Isto foi escrito em 1850, quando a Inglaterra era o único país com um desenvolvimento capitalista, quando o proletariado inglês era o melhor organizado e parecia destinado, pelo desenvolvimento industrial de seu país, a assumir a direção do movimento operário internacional. Leiamos Alemanha onde está escrito Inglaterra, e as palavras de Marx se transformam numa profecia genial da presente guerra mundial. Esta tem a missão de levar o proletariado alemão “à direção do povo e assim criar o começo do grande conflito internacional entre capital e trabalho pela supremacia política do mundo”.

Alguma vez tivemos uma concepção distinta do papel a desempenhar pela classe operária na grande guerra mundial? Por acaso nos esquecemos como descrevíamos este iminente acontecimento  há apenas alguns anos? “Então virá a catástrofe. Toda a Europa será convocada às armas, e dezesseis a dezoito milhões de homens, a flor das nações, armados com as melhores ferramentas para o assassinato, levarão a guerra uns contra os outros. Mas penso que atrás desta marcha desponta a derrubada final. Não somos nós, mas sim eles que a realizarão. Estão levando as coisas ao extremo, nos dirigem direto para a catástrofe. Colherão o que semearam. Estamos frente ao Gotterdéimmerung[4] do mundo burguês. Podem estar seguros disso. Se o vê vir.” Assim falou Bebel[5], porta-voz da nossa bancada no Reichstag, sobre a questão de Marrocos.

Uma nota oficial publicada pelo partido, Imperialismo e socialismo, distribuída em centenas de milhares de exemplares há poucos anos, termina com as seguintes palavras: “Assim, a luta contra o militarismo é cada vez mais uma luta decisiva entre capital e trabalho. Guerra, preços elevados: capitalismo; paz, felicidade para todos: socialismo! A opção é vossa. A história se apressa a chegar a seu desenlace. O proletariado deve brigar incansavelmente por cumprir sua missão mundial, deve fortalecer o poder de sua organização e a clareza de sua compreensão. Então, aconteça o que acontecer, se consegue mediante o exercício de seu poder salvar a humanidade das horríveis crueldades da guerra mundial, ou se o capitalismo volta atrás na história e morre como nasceu, no sangue e na violência, o momento histórico encontrará a classe operária preparada, e a preparação é tudo”.

A cédula oficial para o eleitor socialista de 1911, ano da última eleição parlamentar, contém na página 42 o seguinte comentário sobre a guerra que se avizinhava: “Ousam nossos governantes e classes dominantes exigir semelhante horror ao povo? Não se espalhará em todo o país um clamor de fúria, de horror, de indignação que levará o povo a pôr fim a esse assassinato? Não perguntarão, talvez: Para quem e para quê? Por acaso somos loucos para que se nos tratem assim, ou para que aceitemos semelhante tratamento? Todo aquele que estude com objetividade as possibilidades de uma grande guerra mundial européia não pode chegar a outra conclusão.

A próxima guerra europeia será um jogo como o mundo nunca viu. Será provavelmente a última guerra”. Com essas palavras os socialistas ganharam seus cento e dez lugares no Reichstag. Quando no verão de 1911 o Panther fez uma breve viagem ao Agadir, e o ruidoso clamor dos imperialistas alemães precipitou a Europa para a guerra mundial[6], uma reunião internacional, celebrada no dia 4 de agosto em Londres, aprovou a seguinte resolução:

“Pela presente, os delegados das organizações operárias da Alemanha, Espanha, Inglaterra, Holanda e França, se manifestam dispostos a se opor a toda declaração de guerra com todos os meios a sua disposição. Cada uma das nacionalidades aqui representadas se compromete, de acordo com as resoluções aprovadas em seus respectivos congressos nacionais e internacionais, a opor-se às manobras criminosas das classes dominantes”.

Porém, quando o Congresso Internacional pela Paz se reuniu em novembro de 1912 em Basiléia[7], quando a imensa coluna de delegados operários penetrou na catedral, o pressentimento de que se avizinhava a hora fatal os fez tremer, e a heróica resolução se fez carne em todos.

Victor Adler[8], frio e cético, exclamou: “Camaradas, é sumamente importante que aqui, na fonte comum do nosso poder, todos e cada um dos presentes retire daqui a força para fazer em seu país tudo o que possa, por todos os meios e formas que disponha, para opor-se ao crime da guerra, e se conseguirmos, se realmente impedimos o início da guerra, que seja esta a pedra fundamental da nossavitória próxima. Esse é o espírito que anima a nossa Internacional”.

“E se o assassinato e a destruição arrasam toda a Europa civilizada, esta idéia provoca nosso horror e indignação, e os gritos de protesto brotam em nosso coração. E perguntamos: Por acaso os proletários de hoje são ovelhas que se deixam levar mansa e silenciosamente ao matador?”

Troelstra[9] falou em nome das pequenas nações e também dos belgas: “Com seu sangue e com tudo o que possua, o proletariado dos pequenos países jura sua adesão à Internacional e a todas as medidas que esta adote para impedir a guerra. E reiteramos que esperamos, quando as classes dominantes chamem os filhos do proletariado às armas para saciar seu apetite de poder e a cobiça de seus dirigentes às custas do sangue e das terras dos povos pequenos, esperamos que os filhos do proletariado, sob a influência poderosa de seus pais proletários e da imprensa proletária, pensem três vezes antes de vir nos ferir, seus amigos, a serviço dos inimigos da cultura”.

Lido o manifesto antibélico do Burô Internacional[10], Jaurés[11], em seu discurso de encerramento, disse: “A Internacional representa as forças morais do mundo! Quando soar a hora trágica, quando for necessário nos sacrificarmos, isto nos ancorará e fortalecerá. Declaramos, não com ligeireza, mas desde o fundo dos nossos corações, que estamos dispostos a enfrentar todos os sacrifícios!”

Foi como o juramento de Ruetli. O mundo dirigiu seu olhar para a Catedral da Basiléia, onde os sinos, lenta e solenemente, dobravam pela grande luta entre os exércitos do capital e do trabalho.

No dia 3 de setembro de 1912, o deputado social-democrata David falou no Reichstag: “Foi o momento mais bonito da minha vida. Afirmo-o aqui. Quando os sinos da Catedral dobraram para a grande coluna de social-democratas internacionalistas, quando as bandeiras vermelhas flamejaram na nave em torno do altar, quando o grande órgão fez ressoar sua mensagem de paz para saudar os emissários do povo, senti uma impressão que jamais esquecerei (…).

“Todos vocês devem compreender o que se passou aqui. As massas deixaram de ser um rebanho sem vontade nem consciência. É um fato novo na história universal. Até agora as massas seguiram cegamente aqueles a quem interessa a guerra, aos que conduzem os povos à matança em massa. Isto acabará. As massas deixaram de ser os instrumentos, os soldados dos que fazem seus lucros com a guerra”.

Em 26 de julho de 1914, uma semana antes de irromper a guerra, a imprensa do partido alemão disse: “Não somos testas-de-ferro; lutamos com todas as nossas forças contra um sistema que transforma os homens em instrumentos impotentes do destino cego, contra o capitalismo que se apressa em transformar a Europa, sedenta de paz, em um sangrento campo de batalha. Se a destruição prossegue, se a firme vontade de paz do proletariado alemão e internacional, que se expressará no curso dos próximos dias em grandes manifestações, for incapaz de impedir a guerra mundial, esta será, pelo menos, a última guerra, o Gotterdiimmerung do capitalismo”.

Em 13 de julho de 1914 o órgão central da social-democracia alemã proclamou: “O proletariado socialista rechaça toda responsabilidade pelos acontecimentos precipitados por uma classe dominante cega e à beira da loucura. Sabemos que para nós surgirá uma nova vida das ruínas. Mas a responsabilidade recai sobre os governantes atuais.

“Para eles, trata-se de sua própria existência! “É o julgamento final da história mundial!”. E então chegou o espantoso, o incrível 4 de agosto de 1914.

Era necessário que ocorresse? Um acontecimento de tamanha importância não pode ser um mero acidente. Deve obedecer a profundas causas objetivas. Ou talvez essas causas se encontrem nos erros da direção proletária, na própria social-democracia, no fato de que nossa disposição para a luta tenha fraquejado, de que nossas convicções nos tenham abandonado. O socialismo científico nos ensinou a reconhecer as leis objetivas do desenvolvimento histórico. O homem não faz a história por sua vontade própria, mas a faz mesmo assim. O proletariado depende em sua ação do grau alcançado pela evolução social. Porém a evolução social não é algo separado do proletariado; é ao mesmo tempo sua força motriz e sua causa, tanto como seu produto e seu efeito. E ainda. que não possamos saltar uma etapa em nosso processo histórico, assim como um homem não pode saltar por cima de sua própria sombra, está em nosso poder acelerá-la ou retardá-lo.

O socialismo é o primeiro movimento popular do mundo que se impôs uma meta e colocou na vida social do homem um pensamento consciente, um plano elaborado, a livre vontade da humanidade. Por isso Engels chama a vitória final do proletariado socialista de salto da humanidade do reino animal ao reino da liberdade. Este passo também está ligado por leis históricas inalteráveis aos milhares de degraus da escada do passado, com seu avanço lento e tortuoso. Porém, jamais será possível se a chama da vontade consciente das massas não surge das circunstâncias materiais que são fruto do desenvolvimento anterior. O socialismo não cairá como um maná do céu. Só será conquistado numa grande cadeia de poderosas lutas nas quais o proletariado, dirigido pela social-democracia, aprenderá a manejar o timão da sociedade para converter-se de vítima impotente da história em seu guia consciente.

Friedrich Engels disse uma vez: “A sociedade capitalista se acha num dilema: avanço ao socialismo ou regressão à barbárie”. O que significa “regressão à barbárie” na etapa atual da civilização européia? Lemos e citamos estas palavras rapidamente, sem poder conceber seu terrível significado. Neste momento basta olhar ao nosso redor para compreender o que significa a regressão à barbárie na sociedade capitalista. Esta guerra mundial é uma regressão à barbárie. O triunfo do imperialismo conduz à destruição da cultura, momentaneamente se se trata de uma guerra moderna, para sempre se o período de guerras mundiais que acaba de se iniciar prosseguir seu maldito curso até as últimas conseqüências. Assim nos encontramos hoje, tal como profetizou Engels há uma geração, frente a terrível opção: ou triunfa o imperialismo e provoca a destruição de toda cultura e, como na Roma antiga, o despovoamento, a desolação, a degeneração, um imenso cemitério; ou triunfa o socialismo, ou seja, a luta consciente do proletariado internacional contra o imperialismo, seus métodos, suas guerras. Tal é o dilema da história universal, sua alternativa de ferro, sua balança oscilando no ponto de equilíbrio, aguardando a decisão do proletariado. Dela depende o futuro da cultura e da humanidade. Nesta guerra o imperialismo triunfou. Sua espada brutal e assassina precipitou a balança, com surpreendente brutalidade, para as profundezas do abismo da vergonha e da miséria. Se o proletariado aprende, a partir desta guerra e nesta a esforçar-se, a sacudir o jugo das classes dominantes, a transformar-se em dono de seu destino, a vergonha e a miséria não terão sido em vão.

A classe operária moderna deve pagar um alto preço por cada avanço em sua missão histórica. O caminho ao Gólgota de sua libertação de classes está infestado de sacrifícios espantosos. Os combatentes de Junho, as vítimas da Comuna, os mártires da Revolução Russa[12]: uma lista interminável de fantasmas sangrentos. Caíram no campo de honra, como disse Marx referindo-se aos heróis da Comuna, para ocupar para sempre seu lugar no grande coração da classe operária. Agora, milhões de proletários estão caindo no campo da desonra, do fratricídio, da autodestruição, com a canção do escravo em seus lábios. Nem isso nos foi perdoado. Somos como os judeus que Moisés levou pelo deserto. Mas não estamos perdidos e a vitória será nossa se não nos esquecemos como se aprende. E se os dirigentes modernos do proletariado não sabem como se aprende, cairão para “deixar lugar para os que sejam mais capazes de enfrentar os problemas do mundo novo”.

Parte II

“Encontramo-nos ante o fato irrevogável da guerra. Ameaçam-nos os horrores da invasão. Hoje não se trata de decidir a favor ou contra a guerra; para nós, o problema é um só: como conduzir esta guerra? Muito, sim, todo nosso povo e nosso futuro estão em perigo se o despotismo russo, manchado com o sangue do seu próprio povo, resulta vencedor. Há que evitar este perigo, salvaguardar a civilização e a independência do nosso povo. De modo que cumpriremos o que sempre prometemos: na hora do perigo não abandonaremos nossa pátria. Nisto acreditamos estar de acordo com a Internacional, que sempre reconheceu o direito dos povos a sua independência nacional, assim como estamos de acordo com a Internacional na denúncia enérgica de toda guerra de conquista. Levados por estes motivos, votamos a favor do imposto de guerra que exige o governo.”

Estas palavras da bancada parlamentar foram a contra-senha que fixou e controlou a posição da classe operária alemã durante a guerra. A pátria em perigo, a defesa nacional, a guerra popular pela sobrevivência, a Kultur[13], a liberdade: tais eram as ordens proclamadas pelos representantes parlamentares da social-democracia. O que veio depois foi a conseqüência lógica. A posição da imprensa sindical e partidária, o frenesi patriótico das massas, a paz civil, a desintegração da Internacional, todos estes fatos foram conseqüência desta orientação da bancada parlamentar.

Se é certo que nesta guerra se joga a existência nacional, a liberdade, se é certo que apenas a ferramenta de aço do assassinato pode salvaguardar estes tesouros sem preço, se é certo que esta guerra é a causa santa do povo, então devemos aceitar todas as conseqüências da guerra como parte do trato. Aquele que deseja o fim deve aceitar os meios. A guerra é assassinato gigantesco, metódico, organizado. Porém, nos seres humanos normais, este assassinato sistemático é possível apenas se previamente foi alcançado um certo grau de embriaguez. Este sempre foi o método praticado e garantido dos que lideram as guerras. A ação bestial deve contar com a mesma bestialidade de pensamento e sentido: esta acompanha e prepara aquela. Assim, o Wahre Jacob de 28 de agosto de 1914 com seu retrato brutal do caminho alemão, os jornais partidários de Chemnitz, Hamburgo, Kiel, Frankfurt, Coburgo e outros, com suas alegações patrióticas em prosa e verso, foram o estupefaciente necessário para um proletariado que podia resgatar sua liberdade e sua existência somente ao custo de afundar o aço mortífero no corpo de seus irmãos franceses e ingleses. Estes jornais chovinistas são, depois de tudo, muito mais coerentes do que os que trataram de unir o vale à montanha, o assassinato com o amor fraterno, o voto pelo orçamento de guerra com o internacionalismo socialista.

Se a posição assumida pela bancada socialista do Reichstag alemão em 4 de agosto foi correta, foi pronunciada a sentença de morte para a Internacional proletária, nesta guerra e para sempre. Pela primeira vez desde o aparecimento do proletariado moderno, há um abismo entre os mandamentos de solidariedade internacional dos proletários do mundo e os interesses de liberdade e existência nacional dos povos; pela primeira vez descobrimos que a independência e a liberdade das nações exigem que os operários se matem e se destruam mutuamente. Até agora acreditávamos que os interesses dos povos de todas as nações, que os interesses de classe do proletariado, formavam uma unidade harmoniosa, que eram idênticos, que não podiam entrar em conflito. Esta era a base de nossa teoria e prática, o espírito de nossa agitação. Por acaso erramos o eixo central de toda nossa filosofia universal? O socialismo internacional está no banco dos réus.

Esta guerra mundial não constitui a primeira crise porque atravessam nossos princípios nacionais. A primeira prova para nosso partido foi há quarenta e cinco anos. Em 21 de julho de 1870, Wilhelm Liebknecht[14] e August Bebel fizeram a seguinte declaração histórica no Reichstag: “Esta guerra é uma guerra dinástica, que serve aos interesses da dinastia Bonaparte, assim como a guerra de 1866 serviu aos interesses da dinastia Hohenzollern.Não podemos votar a favor dos fundos que o governo exige para a guerra porque isto equivaleria a um voto de confiança no governo prussiano. E sabemos que o governo prussiano, com sua ação de 1866, preparou esta guerra. Ao mesmo tempo não podemos votar contra o imposto, porque poderia ser interpretado como se apoiássemos a política irresponsável e criminosa de Bonaparte”[15].

“Como opositores principistas de toda guerra de dinastias, como republicanos socialistas e membros da Associação Internacional de Trabalhadores[16], que, sem distinção de nacionalidade, lutou contra todos os opressores, tratou de unificar todos os oprimidos em uma grande irmandade, não podemos prestar um apoio direto nem indireto a esta guerra. Portanto, nos negamos a votar, ao mesmo tempo que expressamos nossa sincera esperança de que os povos da Europa, instruídos por estes acontecimentos indignos, lutarão para conseguir o controle de seus próprios destinos, para liquidar o domínio de poder e de classe, causa de todos os males sociais e nacionais.”

Com esta declaração os deputados do proletariado alemão colocaram sua causa, claramente e sem reservas, sob o estandarte da Internacional, repudiaram a guerra contra a França como guerra nacional de independência. Todos sabem que muitos anos depois, em suas memórias, Bebel disse que teria votado contra o fundo de guerra se soubesse o que ocorreria nos anos seguintes.

Assim, numa guerra que toda a burguesia e uma grande maioria do povo influenciado pela estratégia bismarckiana consideravam que servia aos interesses nacionais da Alemanha, os dirigentes da social- democracia alemã se aferraram à convicção de que o interesse nacional e o interesse de classe do proletariado é um só e ambos se opõem à guerra. Esta guerra mundial e esta bancada social-democrata descobriram pela primeira vez a terrível alternativa: liberdade nacional ou… socialismo internacional.

É um fato quase seguro que a declaração da bancada parlamentar foi uma inspiração repentina. Foi um simples eco do discurso da coroa e do discurso do chanceler de 4 de agosto. “Não nos impulsiona o desejo de conquista – lemos no discurso da coroa –, nos inspira a decisão inalterável de conservar a terra que Deus nos deu para nós e para as gerações futuras. No documento que lhes apresentamos, tereis visto que meu governo e sobretudo meu chanceler brigaram, até o último momento, para evitar a guerra. Pegamos a espada em defesa própria, com a consciência clara e as mãos limpas.” E Bethmann-Hollweg[17] declarou: “Cavalheiros, atuamos em defesa própria, e a necessidade não conhece restrições. Aquele que se vê ameaçado como nós estamos, aquele que luta pelos objetivos mais elevados só pode guiar-se por uma consideração: como evitar a luta. Lutamos pelos frutos do nosso trabalho pacífico, pelo legado do nosso grande passado, pelo futuro da nossa nação”.

Em que difere isto da declaração social-democrata? 1) Fizemos o possível para preservar a paz, o inimigo nos obriga à guerra. 2) Agora que a guerra chegou, devemos nos defender. 3) Nesta guerra, o povo alemão corre o risco de perder tudo. Esta declaração da nossa bancada parlamentar é obviamente uma repetição da declaração do governo com outras palavras. Assim como este baseia suas intenções nas negociações diplomáticas e telegramas imperiais, a bancada socialista recorda as manifestações pacifistas da socialdemocracia antes da guerra. Ali onde o discurso da coroa nega qualquer afã de conquista, a bancada do Reichstag repudia toda guerra de conquista invocando o socialismo. E quando o imperador e o chanceler proclamam: “Lutamos pelos mais elevados princípios. Não conhecemos partidos, mas alemães”, a declaração social-democrata repete, como um eco: “Nosso povo arrisca tudo. Nesta hora de perigo não abandonaremos nossa pátria”.

Há apenas um ponto em que a declaração social-democrata difere de seu modelo, o governamental: coloca o despotismo russo no centro da sua orientação, como perigo para a liberdade alemã. O discurso da coroa diz a respeito da Rússia: “Com grande pesar me vi obrigado a me mobilizar contra um vizinho em cujo lado combati em tantos campos de batalha. Com pesar sincero vi como uma amizade respeitada fielmente pela Alemanha cai feito pedaços”. A bancada social-democrata transforma esta penosa ruptura de uma amizade sincera com o tzar russo em um libelo pela liberdade contra o despotismo, utilizando o prestígio revolucionário do socialismo para munir a guerra de um manto democrático, de uma auréola popular. É neste único ponto que a declaração social-democrata demonstra independência de pensamento de parte de nossos social-democratas.

Como dissemos, esta foi uma inspiração repentina revelada à social-democracia no 4 de agosto. Tudo o que foi dito anteriormente até este dia, toda declaração até o dia da véspera, se opõe diametralmente à declaração da bancada no Reichstag. Em 25 de julho, quando o ultimato da Áustria à Sérvia se tornou público, o V orwiirts escreveu: “Os elementos inescrupulosos que influenciam e manejam Wiener Hofburg querem a guerra. Querem a guerra: a imprensa negra e amarela vem pedindo isso aos gritos. Querem a guerra: o ultimato da Áustria à Sérvia o proclama claramente diante de todo o mundo.”

“Acaso porque o sangue de Francisco Fernando e sua mulher[18] foi derramado por um fanático demente, haverá que se derramar o sangue de milhares de operários e camponeses? Haverá que se expiar um crime demente mediante outro, mais demente ainda? O ultimato austríaco bem pode ser a tocha que porá fogo na Europa pelos quatro costados.

“Porque este ultimato é tão sem-vergonha em sua forma e conteúdo que qualquer governo sérvio que retroceda humildemente frente a ele teria que considerar a possibilidade de ser derrubado pelas massas em menos tempo do que o que gasta um galo para cantar…”

“Pois um crime da imprensa chovinista alemã incitar nosso querido aliado à guerra com todos os meios a seu dispor. E não há dúvida de que Herr von Bethmann-Hollweg prometeu a Herr Berchtold[19] nosso apoio. Porém o jogo de Berlim é tão perigoso como o de Viena”.

O Leipziger Volkszeitung disse em 24 de julho: “O partido militar austríaco deu uma só cartada, porque em nenhum país do mundo o chovinismo nacional tem alguma coisa a perder. Na Áustria, os círculos chovinistas se encontram na bancarrota total; com rugidos nacionalistas tentam desesperadamente encobrir a ruína econômica da Áustria, com a pilhagem e o assassinato da guerra encher os seus baús (…)”.

O Dresden Volkszeitung do mesmo dia disse: “Até agora os loucos da guerra de Wiener Ballplatz[20] não apresentaram uma só prova que justificasse as exigências da Áustria à Sérvia. Enquanto o governo austríaco não estiver em condições de fazê-lo, se coloca, com seus insultos e provocações à Sérvia, em uma posição falsa frente a toda a Europa. E ainda que se demonstre a culpa da Sérvia, ainda que o assassinato de Sarajevo houvesse sido preparado sob as vistas do governo sérvio, as exigências que contém a nota transcendem todos os limites normais. Somente a mais inescrupulosa sede de guerra pode justificar semelhantes exigências a outro estado (…)”.

O Münchener Post de 25 de julho disse: “Esta nota austríaca é um documento sem comparação na história dos últimos séculos. No transcorrer de uma investigação cujo resultado não foi revelado até agora ao público europeu, sem impetrar ação legal contra o assassino do presumido herdeiro e sua esposa, são formuladas à Sérvia exigências que, sendo aceitas, significariam o suicídio político deste país (…)”.

O Schleswig-Holstein Volkszeitung de 24 de julho declarou: “A Áustria está provocando a Sérvia. Áustria-Hungria querem a guerra e estão cometendo um crime que bem pode afogar a Europa em sangue… A Áustria está jogando todas as cartadas. Ousa provocar o Estado sérvio de tal forma que este, a menos que se ache totalmente impotente, não tolerará (…).

“Toda pessoa civilizada deve protestar energicamente contra a conduta criminosa dos governantes da Áustria. É dever de todos os trabalhadores e de todos os seres humanos que honram a paz e a civilização esforçarem-se até o limite de suas forças para evitar as conseqüências da sangrenta loucura que tomou conta de Viena”.

O Magdeburger Volksstimme de 25 de julho disse: “Qualquer governo sérvio que sequer pretendesse considerar seriamente essas exigências seria derrubado neste mesmo momento pelo parlamento e pelo povo.” A ação da Áustria é mais repudiável ainda quando Berchtold aparece frente ao governo sérvio e à Europa de mãos vazias.

“Precipitar uma guerra como esta na atualidade equivale a convidar a uma guerra mundial. Atuar dessa maneira demonstra um desejo de perturbar a paz em todo o hemisfério. Assim não se pode obter conquistas morais nem convencer aos observadores da retidão de nossas próprias intenções. Pode-se acreditar com segurança que a imprensa da Europa, e com ela os governos europeus, chamarão os vaidosos e insensatos estadistas vienenses à ordem, de forma clara e inequívoca”.

Em 24 de julho o Frankfurter Volksstimme escreveu: “Com o respaldo da imprensa clerical, que chora em Francisco Fernando seu melhor amigo e exige que por sua morte caia a vingança sobre o povo sérvio, respaldado pelos patriotas belicistas alemães, cuja linguagem se torna cada dia mais inapreciável e ameaçadora, o governo austríaco se deixou levar e enviou à Sérvia um ultimato, escrito numa linguagem que não deixa nada a desejar à insolência, com exigências que o governo sérvio obviamente não pode cumprir”.

No mesmo dia o Elberfelder Freie Presse disse: “Um cabograma do semi-oficial Burô Wolff informa os termos do ultimato da Áustria à Sérvia. Do mesmo pode se inferir que os governantes de Viena buscam a guerra com todas as suas forças. Porque as condições da nota apresentada ontem à noite em Belgrado significam nada menos que transformar a Sérvia em pretorado austríaco. É extremamente necessário que os diplomatas berlinenses façam compreender a todos os agitadores belicistas vienenses que a Alemanha não moverá um dedo em apoio a tão monstruosas exigências e que convirá retirar as ameaças”.

O Bergische Arbeiterstimme de Solingen disse: “A Áustria exige um conflito com a Sérvia e utiliza o assassinato de Sarajevo como pretexto para demonstrar a culpa moral da Sérvia. Mas todo o caso foi conduzido de maneira demasiado torpe para influenciar a opinião pública européia…

Porém, se os agitadores belicistas de Wiener Ballplatz crêem que seus aliados da Tríplice Aliança, Alemanha e Itália, acudirão em sua ajuda num conflito com a Rússia, que também se verá envolvida, se encontram sob a influência de uma ilusão perigosa. A Itália veria de bom grado o debilitamento de Áustria-Hungria, sua rival no Adriático e nos Bálcãs, e certamente não estaria disposta a ajudar a Áustria. Na Alemanha, por outro lado, os poderes dominantes – ainda que tenham a insensatez de desejá-lo – não ousariam arriscar a vida de um só soldado para satisfazer a avidez criminosa de poder dos Habsburgos sem provocar a fúria de todo o povo”.

Assim toda a imprensa operária, sem exceção, julgou a causa da guerra uma semana antes do seu início. Era óbvio que não se tratava da existência nem da liberdade da Alemanha, e sim de uma aventura vergonhosa do partido belicista austríaco; não se tratava de um problema de autodefesa, proteção nacional ou uma guerra santa a que nos víamos obrigados em nome da liberdade, mas sim de uma provocação audaciosa e uma ameaça odiosa contra a liberdade e a independência de um país estrangeiro, a Sérvia.

O que aconteceu em 4 de agosto que mudou esta posição tão definida e unanimemente aceita pela social-democracia? Havia apenas um fator novo: o Livro Branco que o governo alemão pôs em consideração no Reichstag nesse dia. E este dizia em sua página 4:

“Nestas circunstâncias, a Áustria deve convencer. se de que é incompatível com a dignidade e a segurança da monarquia permanecer inativa frente ao que ocorre além da fronteira. O governo imperial da Áustria nos notificou acerca de sua atitude e nos solicita nossa opinião. De todo coração, não pudemos menos que assegurar a nosso aliado nossa conformidade com essa interpretação da situação e assegurar-lhe que qualquer ação que lhe pareça necessária para pôr fim aos atentados sérvios contra a existência da monarquia austríaca contaria com nossa aprovação. Compreendemos plenamente que eventuais medidas de guerra por parte da Áustria não deixariam de arrastar a Rússia aos acontecimentos e que nós, no cumprimento de nosso dever de aliados, poderíamos nos ver arrastados à guerra. Porém, compreendendo que estavam em jogo os interesses mais vitais de Áustria-Hungria, não podíamos aconselhar a nosso aliado que adotasse uma política conformista que de nenhuma maneira estaria de acordo com sua dignidade, nem nos negar a prestar-lhe ajuda.

E o que mais nos impedia de adotar semelhante atitude era o fato de que a persistente agitação subversiva da Sérvia nos afeta seriamente. Se se houvesse permitido aos sérvios, com a ajuda. da Rússia e da França, continuar ameaçando a existência da monarquia vizinha, sobreviria a queda gradual da Áustria e a submissão de todas as raças eslavas. ao cetro russo, o que faria insustentável a situação das raças germânicas na Europa Central. Uma Áustria moralmente debilitada, que caísse frente ao avanço do pan-eslavismo russo, já não seria um aliado com o qual contar, do qual depender, como nos vemos obrigados a fazer em vista das crescentes ameaças provenientes de nossos vizinhos do oriente e do ocidente. Portanto, deixamos a Áustria com as mãos absolutamente livres para adotar suas medidas contra a Sérvia. Não participamos nos preparativos”.

Tais são as palavras colocadas para a consideração da bancada parlamentar social-democrata no dia 4 de agosto, as únicas frases importantes e decisivas de todo o Livro Branco, uma concisa declaração do governo alemão ao lado da qual todos os livros amarelos, pardos, azuis e alaranjados sobre os jogos diplomáticos que precederam a guerra e suas causas mais imediatas perdiam absolutamente toda significação e relevância. É aqui que a bancada parlamentar tinha em suas mãos a chave para julgar corretamente a situação. Uma semana antes, toda a imprensa social-democrata tinha afirmado que o ultimato austríaco era uma provocação criminosa de guerra mundial e exigia ação preventiva e pacifista de parte do governo alemão. Toda a imprensa socialista supunha que o ultimato havia caído sobre o governo alemão, assim como sobre o público, como uma bomba.

Mas agora o Livro Branco declarava clara e sinteticamente: 1) Que o governo austríaco havia solicitado a aprovação alemã de adotar a última medida contra a Sérvia. 2) Que o governo alemão compreendia claramente que a ação empreendida pela Áustria conduziria à guerra com a Sérvia e, em última instância, com toda a Europa. 3) Que o governo alemão não aconselhou que a Áustria cedesse e, sim, pelo contrário, que uma Áustria conformista e debilitada não seria considerada uma aliada digna da Alemanha. 4) Que o governo alemão assegurou à Áustria, antes que esta marchasse contra a Sérvia, sua ajuda em todas as circunstâncias em caso de guerra, e, por último, 5) que o governo alemão, por decorrência, não havia reservado para si o controle do ultimato da Áustria à Sérvia, do qual dependia a guerra mundial, mas sim que havia deixado a Áustria com as mãos absolutamente livres para adotar suas medidas”.

Nossa bancada parlamentar soube de tudo isso no dia 4 de agosto. E soube pelo governo de outro fato: que as forças alemãs já haviam invadido a Bélgica. E disto toda a bancada social-democrata inferiu que se tratava de uma guerra de defesa contra a invasão estrangeira, pela existência da pátria, pela Kultur, uma guerra pela liberdade, contra o despotismo russo.

Foi o marco óbvio da guerra, e sua colocação em cena que pouco serviu para ocultá-la, foi toda a atuação diplomática que se efetuou no começo da guerra, com seu clamor acerca de um mundo de inimigos, todos ameaçando a vida da Alemanha, todos motivados pelo desejo de debilitar, humilhar, submeter o povo e a nação alemã; foi tudo isso uma surpresa completa? Por acaso estes fatores exigiam maior julgamento, mais capacidade crítica do que possuíam? Isto é menos certo para nosso partido do que para qualquer outro. Já havia passado por duas grandes guerras alemãs, havendo recolhido importantes ensinamentos em ambas.

Qualquer estudante de história mal informado sabe que Bismarck[21] preparou sistematicamente a guerra de 1866 contra a Áustria muito antes de que irrompesse, e que sua política conduzia à ruptura de relações e à guerra com a Áustria. O príncipe herdeiro, logo imperador Frederick, fala disso em suas memórias, na parte correspondente a 14 de novembro deste ano: “Quando ele (Bismarck) assumiu suas funções, tinha a firme resolução de provocar a guerra entre a Prússia e a Áustria, mas teve muito cuidado de não revelar este propósito, neste momento ou em qualquer outro, a Sua Majestade, até que chegou o momento que lhe pareceu oportuno”.

“Comparemos esta confissão – escreveu Auer[22] em seu folheto Die Sedanfeier und die Sozialdemokratie (A comemoração de Sedan e a social-democracia) – com a proclamação que o Rei Guilherme dirigiu ‘ao meu povo’. A pátria está em perigo! A Áustria e grande parte da Alemanha se levantaram em armas contra nós. Há poucos anos que eu, por vontade própria, sem pensar em mal-entendidos anteriores, estendi uma mão fraternal à Áustria para salvar a Alemanha da dominação estrangeira. Mas minhas esperanças foram frustradas. A Áustria não pode esquecer que uma vez seus senhores foram donos da Alemanha; nega-se a ver na jovem e viril Prússia um aliado, insiste em considerá-la um perigoso rival. A Prússia – acredita a Áustria – deve ser contrariada em todos os seus objetivos, porque o que favorece a Prússia prejudica a Áustria. Os velhos ciúmes malditos voltaram a surgir. A Prússia deve ser debilitada, destiuída, desonrada. Todos os tratados com a Prússia ficam anulados, aos senhores germânicos não apenas se os chama, mas se os convence, de que devem romper sua aliança com a Prússia. Para onde quer que dirijamos os olhos na Alemanha, vemos inimigos cujo grito de guerra é: Morra a Prússia!” Rogando a proteção dos céus, o Rei Guilherme decretou o dia 18 de julho dedicado à oração e à penitência, dizendo: “Deus não quis coroar de êxito meus esforços para assegurar a bendição da paz para meu povo”.

Por acaso o acompanhamento oficial do estourar da guerra de 4 de agosto não deveria ter despertado na memória de nossa bancada antigas palavras e melodias? Será que esqueceram a história de seu próprio partido?

Mas isso não é suficiente! Em 1870 começou a guerra com a França e a história uniu este início a um fato inesquecível: o despacho de Ems, documento que se converteu num símbolo clássico da arte governamental capitalista de guerra, e que marca um episódio memorável na nossa história partidária. Não foi o velho Liebknecht, não foi a social-democracia alemã quem se sentiu no dever de denunciar estes fatos e mostrar às massas “como se fazem as guerras”?

Digamos de passagem que o fazer a guerra limpa e corretamente para a proteção da pátria não foi invenção de Bismarck. Ele somente aplicou, com sua característica falta de escrúpulos, uma velha e provada receita internacional dos estadistas capitalistas. Quando e onde houve uma guerra, desde que a chamada opinião pública teve peso nos cálculos do governo, em que todos e cada um dos bandos beligerantes não tenha tirado com profundo pesar o sabre da bainha, com o único propósito de defender sua pátria e sua santa causa contra os vergonhosos ataques do inimigo? Esta lenda faz parte do jogo da guerra, assim como a pólvora e o chumbo. O jogo é velho. O novo é que o Partido Social-Democrata o jogue.

Parte III

Nosso partido deveria estar preparado para reconhecer os verdadeiros objetivos desta guerra, recebê-la sem surpresa e julgar seus motivos profundos à luz de sua grande experiência política. Os acontecimentos e as forças que provocaram o 4 de agosto não eram secretos. O mundo havia se preparado durante décadas, em plena luz do dia, e com a mais ampla divulgação, passo a passo, hora após hora, para a guerra mundial. E se hoje alguns socialistas ameaçam destruir a “diplomacia secreta” que preparou suas maldades por baixo do pano, estão atribuindo aos pobres infelizes um poder mágico que não. possuem, assim como os botocudos realizam seus feitiços para que façam chover. Os auto- intitulados capitães do barco do Estado são, nesta guerra como em qualquer outra,simples peões do xadrez, movidos por forças e acontecimentos todo-poderosos da história, sobre o tabuleiro da sociedade capitalista. Se houve alguma vez pessoas capazes de entender estes acontecimentos e fatos, essas pessoas eram os militantes da social-democracia alemã.

Há dois processos na história recente que conduzem diretamente à guerra atual. Um se origina no período em que se constituíram pela primeira vez os chamados estados nacionais, ou seja, os estados modernos, a partir da guerra bismarckiana contra a França. A guerra de 1870 que, com a anexação da Alsácia e da Lorena, atirou a República Francesa nos braços da Rússia, dividiu a Europa em dois lados contrários e iniciou um período armamentista competitivo frenético, acendeu a faísca da atual conflagração mundial.

As tropas de Bismarck ainda se achavam na França quando Marx escreveu para o Braunschweiger Ausschuss: “Quem não se ensurdecer com o clamor momentâneo, e não deseje ensurdecer o povo alemão, deve compreender, que a guerra de 1870 leva necessariamente consigo os gérmens da guerra da Alemanha contra a Rússia, assim corno a guerra de 1866 engendrou a de 1870. Digo necessariamente, a menos que ocorra o improvável, ou seja, que estoure antes uma revolução na Rússia. Se isso não ocorrer, já se pode considerar que a guerra entre a Alemanha e a Rússia é un fait accompli. Saber se esta guerra foi inútil ou perigosa depende inteiramente da atitude do vencedor alemão. Se a Alsácia-Lorena é tomada, França e Rússia pegarão em armas contra a Alemanha. Seria supérfluo assinalar as desastrosas conseqüências disso”.

Neste momento esta profecia provocou risos. Os vínculos que uniam a Rússia com a Prússia pareciam tão sólidos que se considerava uma loucura acreditar numa aliança entre a Rússia autocrática e a França republicana. Aqueles que apoiavam semelhante profecia eram considerados loucos. E, contudo, tudo o que profetizou Marx se cumpriu plenamente, até a última palavra. “Porque nisto  disse Auer em seu Sedanfeier… consiste a política social-democrata, em ver as coisas claramente como são, diferentemente da política cotidiana de outros, que se inclinam cegamente diante de cada vitória conjuntura!.”

Não se deve interpretar mal estas palavras, no sentido de que é o desejo francês de vingar-se do roubo perpetrado por Bismarck que levou esse país à guerra contra a Alemanha, de que o miolo da guerra atual é a tão batida “vingança pela Alsácia-Lorena”. Esta é a lenda nacionalista que convém ao agitador belicista alemão, que cria fábulas de uma França obcecada, que “não pode esquecer” sua derrota, assim como os jornalistas chapas brancas de Bismarck atiravam insultos contra a destronada princesa da Áustria que não podia se esquecer de sua velha superioridade sobre a encantadora Prússia Cinzenta. De fato, a vingança pela Alsácia-Lorena passou a ser parte do patrimônio cênico de uns quantos palhaços patrioteiros, e o “Leão de Belfort” não é mais que um antigo remanescente.

Faz muito tempo que a anexação da Alsácia-Lorena deixou de desempenhar um papel importante na política francesa, cedendo diante de preocupações novas e mais prementes; nem o governo nem nenhum partido francês sério pensou na guerra contra a Alemanha por estes territórios. Se de qualquer forma a herança de Bismarck é a faísca que acendeu o fogo da guerra mundial, é no sentido de haver lançado a Alemanha por um lado, e a França com o resto da Europa pelo outro, na ladeira da competição militar, de haver provocado a aliança franco-russa, de haver unificado a Áustria com a Alemanha, corolário inevitável do anterior. Isto deu aO tzarismo russo um prestígio enorme na política européia. Alemanha e França solicitaram sistematicamente seus favores. E foi então que se forjaram os vínculos da Alemanha com a Áustria-Hungria, cuja força nesta guerra reside, no dizer do Livro Branco, em sua “irmandade em armas”.

Assim a guerra de 1870 trouxe como conseqüência o agrupamento político formal da Europa em torno dos eixos do antagonismo franco-germano, e impulsionou o reinado do militarismo sobre as vidas dos povos europeus. Este processo histórico outorgou a este agrupamento e a este reinado um conteúdo inteiramente novo. O segundo processo que conduz à atual guerra mundial, que confirma novamente e de forma brilhante a profecia de Marx, se origina em acontecimentos internacionais ocorridos logo após a morte de Marx: o desenvolvimento imperialista dos últimos vinte e cinco anos.

A expansão acelerada do capitalismo, por uma Europa reconstituída depois das guerras dos anos sessenta e setenta, sobretudo depois da grande depressão que seguiu a inflação e o pânico de 1873, chegou a seu ápice nos anos noventa e abriu uma nova fase de tormenta e perigo entre as nações européias. Estas competiam em sua expansão para os países e áreas não capitalistas do mundo. Já nos anos 80 havia se revelado uma forte tendência para a expansão. A Inglaterra assegurou o controle do Egito e criou um poderoso império colonial no sul da África. A França tomou posse de Túnis, no norte da África, e Tonkin, no oeste da Ásia; a Itália se estabeleceu na Abissínia; a Rússia obteve conquistas na Ásia Central e penetrou na Manchúria; a Alemanha conseguiu suas primeiras colônias na África e no Mar do Sul, e os Estados Unidos ingressou no círculo com a conquista das Filipinas e a aquisição de “interesses” no leste da Ásia. Este período de conquistas febris provocou, a partir da guerra sino- japonesa de 1895, uma cadeia quase ininterrupta de guerras cruentas, que alcançaram seu clímax na Grande Invasão Chinesa e culminaram com a guerra russo-japonesa de 1904.

Todos estes acontecimentos, um após o outro, criaram em todos os lados novos antagonismos extra- europeus: entre a França e a Itália no norte da África, entre a França e a Inglaterra no Egito, entre a Inglaterra e a Rússia na Ásia Central, entre a Rússia e o Japão na Ásia Oriental, entre o Japão e a Inglaterra na China, entre os Estados Unidos e o Japão no Pacífico, um oceano muito turbulento, cheio de conflitos bruscos e alianças temporárias, de tensão e relaxamento, ameaçando a cada momento provocar a guerra entre as nações européias. Não havia dúvidas, então, de que: 1) os jogos bélicos secretos de cada nação capitalista contra as demais, sobre as costas dos povos africanos e asiáticos, deveria levar cedo ou tarde a um acerto geral de contas; que os ventos semeados na África e na Ásia voltariam à Europa na forma de uma tempestade terrível, tanto mais que cada aventura asiática ou africana trazia atrelada a conseqüente escalada armamentista nos estados europeus; 2) que a guerra mundial européia irromperia apenas se os conflitos parciais e transitórios dos estados imperialistas encontrassem um eixo centralizado, um conflito de magnitude suficiente para agrupá-los, no momento, em dois grandes lados opostos. Esta situação foi criada com o aparecimento do imperialismo alemão.

Na Alemanha é possível estudar o desenvolvimento do imperialismo, comprimido no lapso de tempo mais breve possível, de forma concreta. A rapidez inigualada da expansão industrial e comercial alemã desde a fundação do império produziu nos anos oitenta duas formas peculiares de acumulação capitalista: a monopolização mais pronunciada da Europa e o sistema bancário mais desenvolvido e centralizado do mundo. Os monopólios organizaram a indústria metalúrgica e siderúrgica, ou seja, o ramo de produção que mais lucro tem com as compras do governo, no equipamento militar, e das empresas imperialistas (construção de ferrovias, exploração de minas etc.), para convertê-lo no fator mais influente da vida nacional. Cimentavam os interesses monetários em uma totalidade rigidamente organizada, de imensa e viril energia, criando um poder que domina autocraticamente a indústria, o comércio e o crédito da nação, que predomina tanto no setor público quanto no privado, com poderes de expansão ilimitados, sempre ávido de lucros e atividade, impessoal e, portanto, de mentalidade liberal, impetuosa e inescrupulosa, internacional por sua própria natureza, destinado por suas funções a ter o mundo por cenário de suas ações.

A Alemanha se acha sob um regime personalista, de forte iniciativa e atividade espasmódica, com um parlamentarismo do tipo mais débil, incapaz de montar uma oposição, que une a todos os setores capitalistas em aberta oposição à classe operária. É óbvio que este imperialismo vivo, irrestrito, que chegou ao mundo num momento em que este está praticamente dividido, com um apetite voraz, não tardou em transformar-se num fator irresponsável de mal-estar geral.

Isto já era previsto na convulsão radical suscitada na política militar do império no final do século. Neste momento foram apresentados dois orçamentos navais que duplicaram o poder naval da Alemanha e criaram um programa para mais de duas décadas. Isto significou uma mudança drástica na política financeira e comercial da nação. Em primeiro lugar implicou uma mudança atraente na política exterior do império. A política de Bismarck se baseava no princípio de que o império é e deve continuar sendo uma potência terrestre, que a frota alemã não é, no melhor dos casos, senão um requisito até dispensável para a defesa da costa. O secretário de estado Hollmann declarou em março de 1897 na Comissão Orçamentária do Reichstag: “Não necessitamos de uma marinha para a defesa das costas. Nossas costas se protegem sozinhas”.

Com os dois decretos navais se criou um programa inteiramente novo: na terra e no mar, Alemanha em primeiro lugar! Isto marca a guinada da política continental bismarckiana para a Welt Politik (política mundial), da defensiva para a ofensiva como fim e objetivo do programa militar alemão. A linguagem destes fatos era tão inequívoca que o Reichstag a comentou. Lieber, então dirigente do Centro[23], falou no dia 11 de março de 1896, depois de um famoso discurso do imperador por ocasião do vigésimo-quinto aniversário da fundação do império alemão, em que havia formulado o novo programa como precursor dos projetos-de-lei navais, mencionando uns “planos navais sem costa” contra os quais a Alemanha deveria preparar-se para lutar. Outro dirigente do Centro, Schadler, argumentou na seção de 23 de março de 1898, em meio à discussão do primeiro projeto naval: “A nação acredita que não podemos ser os primeiros na terra e os primeiros no mar. Vocês, cavalheiros, contestam que não é isso o que queremos! Entretanto, cavalheiros, vocês se encontram nos começos de semelhante concepção; num começo muito forte!”

Quando veio o segundo projeto, o mesmo Schadler, falando no Reichstag no dia 5 de fevereiro de 1900, referindo-se a uma promessa anterior de que não haveria mais projetos navais, disse: “E agora vem este projeto que significa nada mais nada menos que a inauguração de uma frota mundial, como base de apoio a uma política mundial, duplicando a marinha e comprometendo as próximas duas décadas”. Na verdade, o governo defendeu abertamente o novo curso de seu programa político. No dia 11 de dezembro de 1899, von Bülow, Secretário de Relações Exteriores, disse em defesa do segundo projeto: “Quando os ingleses falam de uma ‘Grande Inglaterra’, quando os franceses falam de uma ‘Nova França’, quando os russos abrem a Ásia Central para a sua penetração, nós também temos direito a aspirar a uma Alemanha maior. Se não criamos uma marinha apta para defender nosso comércio, nossos nativos em terras estrangeiras, nossas missões e a segurança de nossas costas, ameaçamos os interesses vitais de nossa nação. No próximo século o povo alemão será o martelo ou a bigorna”. Despojemos isso da frase ornamental sobre a defesa das nossas costas, e sobra um programa colossal: a grande Alemanha que cai como um martelo sobre as demais nações.

Não é difícil determinar em que direção apontavam estas provocações. A Alemanha se converteria em rival da grande potência naval mundial: a Inglaterra. E a Inglaterra não demorou em compreender isso. Os projetos de reforma naval, com seus discursos concomitantes, não deixaram de produzir grande inquietude na Inglaterra, inquietude que subsiste até o dia de hoje. Em março de 1910, no curso de um debate sobre assuntos navais na Câmara dos Comuns, Lord Robert Cecil disse: “Desafio qualquer um a que me dê uma razão lógica para a formidável marinha que a Alemanha está construindo que não seja a de lutar contra a Inglaterra”. A luta pelo domínio do mar, que de um e de outro lado durou uma década e meia, e culminou na construção febril de encouraçados e superencouraçados, foi, de fato, a guerra entre a Alemanha e a Inglaterra. O decreto naval de 11 de dezembro de 1899 foi uma declaração de guerra por parte da Alemanha. A Inglaterra aceitou o desafio no dia 4 de agosto de 1914. Deve-se notar que esta luta pela supremacia naval não tinha nada a ver com a rivalidade econômica no mercado mundial. O “monopólio do mercado mundial” da Inglaterra que obstaculizava ostensivamente a expansão industrial alemã, tão discutida na atualidade, pertence à esfera das lendas de guerra, entre as quais a fábula sempre renovada da “vingança” francesa é a mais útil. Este “monopólio” havia se transformado num conto de fadas, com grande pesar para os capitalistas ingleses. O desenvolvimento industrial da França, Bélgica, Itália, Rússia, índia e Japão, e, sobretudo, Alemanha e Estados Unidos, havia liquidado este monopólio na primeira metade do século XIX. Junto com a Inglaterra, uma nação após a outra entrou no mercado mundial, o capitalismo se expandiu automaticamente e, a passos largos, gerou uma economia.

A supremacia naval britânica, que a tantos social-democratas lhes tirou o sono, e que, segundo estes cavalheiros, deve ser destruída para o bem do socialismo internacional, havia molestado tão pouco o capitalismo alemão até este momento, que este pôde converter-se, sob o “jugo”, em um jovem vigoroso, de faces sorridentes. Sim, a própria Inglaterra, junto com suas colônias, foi a pedra fundamental do crescimento industrial alemão. Ao mesmo tempo a Alemanha se transformou, para a Inglaterra, em seu cliente mais importante e necessário. Longe de atrapalhar-se mutuamente, os desenvolvimentos capitalistas britânico e alemão foram altamente interdependentes, unificados por um amplo sistema de divisão de trabalho, fortemente escorado pela política livre-cambista da Inglaterra. Por isso, o comércio alemão e seus interesses no mercado mundial nada tiveram a ver com a mudança de objetivos na política e com a construção da marinha.

Tampouco as posses coloniais alemãs entraram em conflito com a supremacia naval britânica. As colônias alemãs não necessitavam da proteção de uma potência naval de primeira. Ninguém, e menos ainda a Inglaterra, invejava as colônias alemãs. Que a Inglaterra e o Japão se apossaram delas durante a guerra, que a presa trocou de mãos, não é mais que uma medida de guerra aceita por todos, da mesma maneira que o apetite imperialista da Alemanha clama pela anexação da Bélgica, desejo que ninguém que estivesse fora de um manicômio se atreveria a expressar em época de paz. África do sudeste ou do sudoeste, Wilhelmsland ou Tsingtau jamais haveriam provocado uma guerra, terrestre ou marítima, entre a Alemanha e a Inglaterra. Na verdade, justamente antes do início da guerra, estas duas nações haviam acordado um tratado de reparo tição pacífica das colônias africanas de Portugal.

Quando a Alemanha desfraldou seu estandarte de poderio naval e política mundial, anunciou seu desejo de maiores e mais amplas conquistas para o imperialismo alemão. Com uma marinha agressiva de primeira categoria, e com forças militares terrestres crescendo na mesma proporção, se criou o aparelho para a futura política, abrindo as portas de par em par a possibilidades sem precedentes. A construção naval e os armamentos militares passaram a ser a gloriosa ocupação da indústria alemã, abrindo perspectivas ilimitadas para novas operações do capital monopolista e financeiro em todo o largo mundo. Assim se obteve o acordo de todos os partidos capitalistas e seu agrupamento em torno da bandeira do imperialismo. O Centro seguiu o exemplo dos liberais nacionalistas, os mais firmes defensores da indústria do aço e do ferro, e, ao aprovar o projeto-de-lei naval que havia denunciado vigorosamente em 1900, se converteu no partido oficial. Os progressistas correram atrás do Centro quando apareceu o sucessor do projeto naval (o festim dos altos impostos); enquanto isso os junkers[24], os mais firmes opositores da “horrível marinha” e do canal, enfiavam a viola no saco como os porcos e parasitas mais entusiastas desta mesma política de militarismo naval e pilhagem colonial a que se haviam oposto com tanta veemência. As eleições parlamentares de 1907, chamadas Eleições Hottentote, encontraram toda Alemanha num paroxismo de entusiasmo imperialista, firmemente unida sob uma só bandeira, a da Alemanha de von Büllow[25], a da Alemanha que se sentia destinada a desempenhar o papel de martelo no mundo. Estas eleições, com. sua atmosfera de pogrom espiritual, foram um prelúdio da Alemanha de 4 de agosto, um desafio não só à classe operária alemã, mas também às outras nações capitalistas, um desafio dirigido a ninguém em particular, mas que se agitava frente ao mundo inteiro…

Rosa concluiu a redação do “Folheto Junius” em abril de 1915. No entanto, o texto só foi publicado em abril de 1916. Merecedor do elogio de Lênin, o qual afirmou que se tratava de “um esplêndido trabalho marxista”. Publicado originalmente em https://www.marxists.org/portugues/luxemburgo/1915/04/folheto_junios.pdf.


[1] Refere-se aos rumores oficiais e semi-oficiais que circulavam em princípios de agosto para justificar a declaração de guerra: que as tropas russas haviam penetrado na Alemanha, que os exércitos franceses haviam bombardeado Nuremberg, que um médico francês havia envenenado os poços em Montsigny, que dois franceses haviam sido mortos ao tentar explodir um túnel ferroviário. “Ar de Kishinev” simbolizava uma atmosfera de pogrom [Nota da edição americana].

[2] Citado de Friedrich Engels, prólogo de A luta de classes na França, Buenos Aires, Polérnica, p. 33.

[3] Karl Marx, op. cit., p. 142.

[4] Literalmente, crepúsculo dos deuses. Título da quarta e última ópera O Anel dos Nibelungos, de Wagner; simboliza um estado de decadência e dissolução acompanhado de tremenda violência e caos.

[5] August Bebel (1840-1913): um dos fundadores e dirigentes do Partido Social-Democrata Alemão e da Segunda Internacional. Foi sentenciado à prisão junto com W. Liebknecht por traição. Autor de A mulher e o socialismo. Adversário das tendências revisionistas.

[6] Em julho de 1911 o cruzador de guerra alemão Panther saiu rumo a Agadir, no Marrocos, para “proteger os interesses alemães”, ou seja, para conseguir minas de ferro para as fábricas de aço Mannesmann. A guerra esteve a ponto de irromper entre a França e a Alemanha, mas, frente à ameaça de intervenção britânica, a Alemanha se retirou. No Tratado de Berlim, em novembro de 1911, a Alemanha recebeu uma parte de Camerun, e abandonou suas pretensões no Marrocos [Nota da edição americana].

[7] O Congresso de Paz da Basiléia, Suíça, reuniu-se na catedral dessa cidade em 24 e 25 de novembro de 1912. A causa imediata era o temor de uma guerra europeia, posto que Montenegro havia declarado guerra à Turquia em outubro, provocando um problema nos Bálcãs. Esta foi a última reunião geral da Segunda Internacional antes da guerra, e sua importância reside em que, pela primeira vez, uma conferência de paz socialista reconheceu que havia passado a época das guerras nacionais na Europa e que daí em diante todas as guerras seriam imperialistas [Nota da edição americana].

[8] Victor Adler (1852-1918): fundador e dirigente da social-democracia austríaca, membro da direção da Segunda Internacional. Defensista durante a guerra.

[9] Pieter Jelles Troelstra (1860-1932): dirigente da social-democracia holandesa; membro da direção da Segunda Internacional; defensista durante a guerra.

[10] O Burô Socialista Internacional, criado em 1900, era o centro da Segunda Internacional. Sua sede estava em Bruxelas.

[11] Jean Jaurés (1859-1914): dirigente máximo do socialismo francês. Fundou o jornal L’Humanité em 1890. Depois do caso Dreyfus, Jaurés formou um bloco de socialistas e radicais para apoiar Millerand no governo burguês. Grande adversário do militarismo e da guerra. Assassinado em 31 de julho de 1914. O assassino foi absolvido por patriotismo.

[12] A Revolução Russa de 1905 surgiu pelo descontentamento criado pela guerra russo-japonesa e pelo despotismo tzarista. Começou em janeiro com o massacre de uma manifestação pacífica, o “Domingo Sangrento”, e desencadeou uma onda de greves que culminaram com a formação de um começo de duplo poder com os sovietes (o mais importante foi o de Petersburgo). Foi esmagada em dezembro do mesmo ano.

[13] Refere-se à cultura nacional alemã.

[14] Wilhelm Liebknecht (1826-1900): participou na Revolução Alemã de 1848. Foi exilado na Inglaterra, onde se fez discípulo de Marx e Engels. Voltou à Alemanha logo após a anistia de 1860 e construiu um partido marxista que se uniu ao de Lassalle para constituir o PSD. Preso em 1872. Defendeu a ortodoxia marxista contra o revisionismo.

[15] Refere-se a Napoleão III (Luís Bonaparte), 1808-1873, sobrinho de Napoleão I e imperador de 1852 a 1870.

[16] Associação Internacional de Trabalhadores (Primeira Internacional): fundada por Marx e Engels em 1864. Depois da derrota da Comuna de Paris (1871), seu centro se transferiu para os EUA. O último congresso foi celebrado em 1876.

[17] Theobold von Bethmann-Hollweg (1865-1921): Chanceler do Império Alemão entre 1909 e 1917.

[18] Francisco Fernando (1863-1914): Arquiduque da Áustria, herdeiro do trono dos Habsburgos. Foi assassinado com sua esposa Sofia em Sarajevo, Áustria, por um nacionalista sérvio. O assassinato serviu de pretexto para o ultimato da Áustria à Sérvia e para a declaração de guerra em 27 de julho de 1914.

[19] Conde Leopold Berchtold (1863-1942): latifundiário, empresário, o homem mais rico da Áustria. Diplomata, embaixador na Rússia em 1906-1911. Ministro das Relações Exteriores em 1912-1915.

[20] Ballplatz: chancelaria alemã, dominada por aristocratas militaristas.

[21] Otto von Bismarck (1815-1898): estadista prussiano e alemão reacionário. Chefe do Estado prussiano em 1862-1871, chanceler do Império Alemão em 1871-1890. Organizou a unificação da Alemanha na Guerra Franco-Prussiana. Promulgou as leis anti-socialistas.

[22] Ignaz Auer (1846-1907): social-democrata bávaro. Secretário da social-democracia desde 1875. Reformista.

[23] Centro: partido católico alemão. Ocupava os bancos centrais na Câmara do Reichstag. Manobrava entre o oficialismo e a esquerda.

[24] Junkers: aristocracia latifundiária prussiana. Suas posições eram extremamente militaristas e antidemocráticas.

[25] Príncipe Bernhard von Bülow (1849-1929): Secretário de Relações Exteriores da Alemanha em 1897, chanceler em 1900-1909, embaixador na Itália em 1914.


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