Racismo estrutural, descolonização e a educação escolar no Brasil: reflexões a partir de Silvio Almeida, Anibal Quijano e Florestan Fernandes

Artigo de Maycon Bezerra analisa o racismo estrutural, a descolonização e a educação escolar no Brasil.

Maycon Bezerra 13 maio 2021, 14:37

1- O conceito de racismo estrutural em Sílvio Almeida e o lugar da escola

No Brasil do início do século XXI, a força operante do preconceito, da discriminação e das desigualdades raciais, assim como a intensificação do protesto racial, sobretudo da juventude negra, mas também dos povos indígenas, parece colocar em uma radical crise de legitimidade o mito da “democracia racial”. Esse mito, construído e reproduzido historicamente ao longo do século XX , esteve – e segue estando – intimamente relacionado a um projeto de nação alicerçado sobre um sistema de poder inflexivelmente monopolizado pelas burguesias interna e externa associadas e, ao mesmo tempo, sob a hegemonia de um ideal de modernização eurocêntrico e dependente, impermeável ao procedimento de “escovar a contrapelo” (LÖWY, 2005) a história e a dinâmica concreta das relações raciais em nossa sociedade.

O grito antirracista das novas gerações desafia o silêncio imobilizador do mito em questão, trazendo à tona do debate público, com uma potência inegável, a problemática do racismo e a exigência de sua superação. No que se refere à educação brasileira, a crítica prática do ativismo negro e do movimento social antirracista de modo geral, impõe um duro balanço político e histórico, que evidencia sua funcionalidade à reprodução do racismo em nossa sociedade. Ao campo educacional democrático e popular do país, se impõe, de modo renovado, a centralidade da agenda de denúncias e reivindicações antirracistas como condição mesma de viabilidade histórica do campo como interlocutor crítico no debate educacional.

Dessa maneira, pretendemos contribuir nesse trabalho com a reflexão teórica e política sobre o racismo no Brasil e sobre possíveis caminhos estratégicos para a afirmação de um projeto “ético-político” (GRAMSCI, 1978) de combate e superação do racismo na sociedade brasileira, como momento de uma luta mais ampla pela superação do “sistema civilizatório” centrado no imperialismo ocidental capitalista, que vive uma profunda crise histórica (DUSSEL, 2000).

Partimos aqui das reflexões contidas no potente estudo O que é racismo estrutural? (ALMEIDA, 2018) do professor e intelectual negro socialista Sílvio Almeida. Obra e autor ocupam um lugar de significativo destaque no debate público atual sobre o racismo no país. Aparecem como referências das mais relevantes para o ativismo e a intelectualidade negra e antirracista na conjuntura politicamente conflagrada que vivemos, o que acrescente ainda mais densidade histórica à sua contribuição teórica e política.

Silvio Almeida, nessa obra sintética, sistematiza o conceito de racismo estrutural, a partir das reflexões de uma ampla gama de intelectuais críticos, em sua grande maioria negros e revolucionários antirracistas e anticoloniais. O centro de sua argumentação é defender que o racismo, como fenômeno histórico complexo que é, precisa ser abordado como um componente constitutivo da estrutura mesma das sociedades do mundo moderno, não como uma aspecto lateral, secundário ou como uma capa anacrônica desconectada do eixo dinâmico principal da organização da vida coletiva moderna. O racismo é estrutural, nessa perspectiva,  porque a vida como um todo, nas sociedades modernas, sobretudo naquelas que são multirraciais, se equilibra também sobre o racismo e este lhes imprime fundo sua presença constante

É pelo fato de ser estrutural na sociedade que o racismo aparece no comportamento de indivíduos e na dinâmica prática de instituições sociais, mas uma abordagem que busque compreender o racismo a partir da circunstancialidade dos comportamentos individuais, ou mesmo, circunscrevendo-o à lógica interna das instituições, sem reportar-se ao lugar do racismo na estruturação da vida social como uma totalidade, não pode apreender criticamente sua profundidade como fenômeno social (ALMEIDA, 2018, p. 36). Isso significa, de um ponto de vista prático, que o combate ao racismo e a luta por sua superação precisa mobilizar e envolver indivíduos e instituições em um compromisso de transformação profunda da sociedade, nos campos do exercício do poder político, da produção e reprodução ideológica, das normas e estruturas do direito e da organização da vida econômica (Idem, p. 44)

O caráter estrutural do racismo faz com que seja necessário desenvolver políticas e estratégias antirracistas no contexto da elaboração de respostas coletivas aos grandes desafios e dilemas da vida nacional em nosso país, de modo a que possam ter vocação para promover transformações estruturais efetivas na realidade. Sem que haja tal enfrentamento nenhuma das mazelas históricas da sociedade brasileira podem encontrar solução favorável às maiorias populares. Isso se aplica do problema da democracia política à questão do desemprego; da soberania nacional à questão da educação (Idem. pp. 152-153).

Nesse contexto, da vida social fundada sobre uma estrutura racista, Silvio Almeida destaca que às instituições cabem duas possibilidades: engajar-se na luta pela superação do racismo ou reproduzi-lo ao silenciar sobre o tema e evitar o choque contra os fundamentos racistas da ordem social. Trata-se de uma questão posta com urgência, por exemplo, para a escola, sobretudo para a escola pública, âmbito da reflexão que interessa mais diretamente ao presente trabalho.

Na ausência de uma decidida orientação teórica e prática antirracista na formulação de política educacional, e na articulação dessa política com a transformação democrática da sociedade como um todo, a escola pública no Brasil seguirá reproduzindo o racismo da estrutura social, pela precariedade material a ela imposta, pelos critérios burocráticos de sua organização e funcionamento e pelos fundamentos eurocêntricos do conteúdo científico e normativo do ensino.  Dessa maneira, o engajamento consistente e consequente da escola pública brasileira na luta contra o preconceito, a discriminação e as desigualdades raciais exige uma transformação radical na relação da sociedade com a escola, na escola enquanto tal, e na posição da escola diante da sociedade.

Como instituição situada nos marcos de uma sociedade estruturalmente racista, a escola pública brasileira, para converter-se em ponto de apoio efetivo à luta antirracista, precisa ser política e materialmente fortalecida; precisa reformar-se profundamente no sentido de uma radical democratização de sua organização e funcionamento; bem como precisa assumir compromisso com uma revisão crítica dos aspectos valorativos e epistêmicos racistas que se encontram subsumidos ao processo de ensino-aprendizagem e ao elemento normativo intrínseco à educação escolar. 

2 – Racismo estrutural e a “colonialidade do poder” em Anibal Quijano

Anibal Quijano, o  sociólogo e pensador crítico descolonial peruano, contribui decisivamente com a reflexão sobre o racismo estrutural a partir de sua teorização da “colonialidade do poder” (QUIJANO, 2005), como imanente e intrínseca à modernidade capitalista como fenômeno histórico. Sob sua perspectiva, a modernidade, a expansão colonial européia, o capitalismo, a raça e o racismo são construções históricas entrelaçadas no interior de um mesmo processo e de um mesmo projeto de poder, cujas origens remontam ao século XVI. 

A partir da situação social e histórica da América Latina no final do século XX, engendra uma reflexão teórica e política crítica que afirma o lugar da raça e do racismo como construções históricas centrais ao sistema de poder e à ordem social estabelecida globalmente. Em sua obra, essa questão emerge com uma nitidez que o eurocentrismo consagrado nas teorias e ciências sociais hegemônicas obscureceu, no passado, e segue obscurecendo no presente. 

Toda democratização possível da sociedade na América Latina deve ocorrer na maioria destes países, ao mesmo tempo e no mesmo movimento histórico como uma descolonização e como uma redistribuição do poder. Em outras palavras, como uma redistribuição radical do poder. Isto se deve, primeiro, a que as “classes sociais”, na América Latina, têm “cor”, qualquer “cor” que se possa encontrar em qualquer país, em qualquer momento. Isso quer dizer, definitivamente, que a classificação das pessoas não se realiza somente num âmbito do poder, a economia, por exemplo, mas em todos e em cada um dos âmbitos. A dominação é o requisito da exploração, e a raça é o mais eficaz instrumento de dominação que, associado à exploração, serve como o classificador universal no atual padrão mundial de poder capitalista. Nos termos da questão nacional, só através desse processo de democratização da sociedade pode ser possível e finalmente exitosa a construção de um Estado-nação moderno, com todas as suas implicações, incluindo a cidadania e a representação política. (QUIJANO, 2005, p.137) 

A raça e o racismo aparecem, então, para Quijano, como o aspecto central da “colonialidade do poder” vigente na estrutura de poder mundial e, especialmente, na estrutura social das sociedades latino americanas, nas quais a articulação/sobreposição das condições de classe e raça é muito peculiar. Mesmo após mais de 200 anos do fim do pacto colonial entre a América Latina e as metrópoles européias, as estruturas de poder e dominação em nossas sociedades seguem sob o imperativo da “colonialidade”, ou seja, do arbítrio racialmente fundamentado imposto – e normalizado – pelas classes/oligarquias burguesas, brancas e racistas sobre as massas populares negras, indígenas e/ou mestiças, em sua grande maioria.

Dessa forma, no Brasil como na maior parte de nosso continente, o racismo como sistema de produção e reprodução de uma “dessemelhança essencializada” (Mbembe) entre os que dominam e os que são dominados, deve ser compreendido como um fenômeno social estrutural: estruturante da vida coletiva, e por ela estruturado. Mais ainda, como núcleo essencial da “colonialidade do poder”, sua desarticulação e superação nos marcos de um processo histórico de descolonização social, são, nesse contexto, requisitos indispensáveis a qualquer afirmação democrática e nacional digna dessa caracterização.

3 –   Florestan Fernandes, a descolonização como projeto histórico de libertação popular no Brasil.

É imensa a obra de Florestan Fernandes, como sociólogo “crítico e militante”, que fez da sua sociologia uma prática de intervenção voltada à compreensão, explicação e transformação da sociedade brasileira no sentido de uma autêntica revolução nacional e democrática, transicional a uma ordem econômica e social de natureza socialista. 

Ao longo de uma trajetória de mais de 50 anos como sociólogo, professor e intelectual público, atravessando toda a segunda metade do século XX e sua dramaticidade histórica própria, Florestan desenvolveu sua prática sociológica no sentido de uma posição cada vez mais crítica ao imperialismo capitalista das grandes potências centrais do “sistema-mundo” (DUSSEL, 2000), especialmente dos EUA, e ao ponto de vista eurocêntrico inscrito como “super ideologia” (Idem) constitutiva desse modelo/processo de dominação transnacional. 

Partindo inicialmente de uma perspectiva que pode ser compreendida nos marcos de uma “ideologia da modernização”, Florestan, depois de sua aposentadoria compulsória da USP imposta pela ditadura empresarial-militar, em 1969, inicia um processo de aprofundamento crítico e superação de tal perspectiva que, a partir de um marxismo situado na periferia dependente do capitalismo mundial, radicaliza sua crítica sociológica como crítica a um padrão civilizatório fundado no imperialismo capitalista – remontando à expansão colonial ibérica do século XVI –  e a incorporação subalternizante que impõe ao mundo periférico e ao Brasil, particularmente (ALMEIDA, 2016).

Nesse contexto, e fortemente inspirado pela revoluções de libertação nacional na África, Ásia e, especialmente, pela Revolução Cubana, emerge a categoria “descolonização” em sua prática sociológica. Categoria simultaneamente teórica e política, a descolonização aparece na obra de Florestan como potência, processo e projeto histórico que, represada pela classe dominante (senhorial-escravocrata, em um primeiro momento, e burguesa, posteriormente) nos limites de seus interesses de classe, estaria na base das particularidades históricas do tipo de sociedade produzida e reproduzida no Brasil e América Latina. 

Romper o represamento burguês da descolonização, levando-a até o fim e até o fundo como processo histórico, equivaleria a romper as cadeias do capitalismo dependente e de seus padrões próprios de dominação e exploração de classe, entendidos como reprodução e atualização do fundamento colonial de nossas estruturas sociais. 

Esse projeto, a ser trazido à realidade pelo proletariado, pelos trabalhadores em sentido mais amplo e pelas maiorias populares, em uma práxis revolucionária de sentido nacional e democrático e orientação socialista, como luta de classe contra as classes burguesas, é apresentado por Florestan como aspecto decisivo de uma necessária reorganização do horizonte teórico e estratégico das forças políticas da classe trabalhadora no país e na região

Aí a descolonização constitui uma categoria histórica mascarada pela dominação burguesa (tanto a nacional quanto a imperialista: ambas possuem interesses convergentes em criar ilusões ou mitos sociais). Em vez de um ataque abstrato ao colonialismo interno, aos elementos feudais parciais ou globais e ao imperialismo, convinha dar ênfase à descolonização que não se realiza (nem pode realizar-se) sob o capitalismo neocolonial e sob o capitalismo dependente. Esse é o busílis da questão. Levar a descolonização às últimas consequências é uma bandeira de luta análoga à revolução nacional e à revolução democrática – e essa reivindicação teria de ser feita em termos socialistas, ainda que com vistas à “aceleração da revolução burguesa”. Parece patente que a descolonização não pode ser contida nesses limites e que, na ação prática, em vez de acelerar a revolução burguesa ela fomenta a “desestabilização” e a evolução de situações revolucionárias até pontos críticos. (FERNANDES, 1981, pp. 80-81)

Nesse sentido, Florestan está trazendo para o contexto histórico e social da luta de classes no Brasil e na América Latina da segunda metade do século XX, a perspectiva da descolonização como componente constitutivo central de sua elaboração ético-política e estratégica. Aqui, em uma polêmica dura com os setores hegemônicos no campo marxista do país e da região, que percebiam uma tendência ao desenvolvimento do capitalismo por aqui reproduzindo a história do desenvolvimento do capitalismo na Europa ocidental, Florestan está articulando luta de classes, socialismo e descolonização em uma abordagem de interpretação e intervenção que definimos como um classismo descolonial, que seria próprio aos trabalhadores do mundo periférico; da América Latina, em especial; e do Brasil, em particular.

À medida que avança a década de 1980, e com ela o ascenso das lutas operárias e populares no Brasil contra a ditadura militar-empresarial por democracia política e social, Florestan é levado a ocupar uma nova posição em sua trajetória: a de militante partidário (no Partido dos Trabalhadores), parlamentar e constituinte. 

Desde então, com a intensa relação de diálogo e parceria que vai estabelecer com a militância e com os quadros do movimento negro do PT e do MNU (Movimento Negro Unificado), vai incorporar a questão do supremacismo branco e da luta antirracista com destaque e centralidade crescente em sua prática sociológica, revendo elementos de suas elaborações anteriores sobre a questão racial no Brasil (FERNANDES, 1965), e articulando o “protesto negro” e suas reivindicações, pontos de vista e métodos de luta, ao centro mesmo do classismo descolonial que segue desenvolvendo, em um sentido cada vez mais crítico, na luta por uma descolonização socialista da sociedade brasileira (FERNANDES, 2017).

De acordo com o ponto de vista que vai amadurecendo até sua morte, em 1995, a transformação revolucionária capaz de afirmar uma ordem efetivamente democrática e nacional entre nós, e com isso, abrir o caminho histórico ao socialismo, precisa contar com o protagonismo da classe trabalhadora como sujeito coletivo mas, ao mesmo tempo, não pode prescindir do protagonismo político do movimento negro, como sujeito histórico da autoemancipação da população negra, enquanto tal,  em relação às estruturas sociais de poder da supremacia branca, constitutivas do “núcleo duro” da sociedade brasileira. E ainda, a articulação entre esses diferentes sujeitos coletivos nos marcos de uma práxis histórica transformadora da vida social é aqui compreendida como condição sine qua non da própria transformação necessária historicamente.

Na mesma direção que Anibal Quijano desenvolverá teoricamente, alguns anos depois, a perspectiva da libertação popular como movimento histórico de descolonização, em uma afirmação democrática e nacional de novo tipo, encontra aqui, na desarticulação do racismo estrutural, o seu imperativo fundamental. O racismo e as prerrogativas da supremacia branca emergem, nesse momento de sua obra, como o elo decisivo que articula a incorporação imperialista da sociedade brasileira ao “espaço histórico” da civilização ocidental moderna e suas potências centrais; com o padrão de modernização e desenvolvimento capitalista dependente; e com a “autocracia burguesa”, como regime de dominação expresso no sistema de poder vigente; ou seja, que articula a descolonização contida pela classe dominante com o sistemático bloqueio à construção de uma sociedade democrática e nacional no Brasil.

A ruptura com esse ciclo autorreprodutivo de poder passa pela capacidade política de autoemancipação revolucionária e socialista das classes trabalhadoras. No entanto, o classismo dos trabalhadores no Brasil, apenas pode avançar em direção ao socialismo, afirmando os momentos democráticos e nacionais da luta de libertação popular e levando a descolonização ao fundo das relações raciais, incorporando a si o “protesto negro”, articulando classe e raça como o fundamento da análise crítica, da elaboração estratégica e da intervenção política prática. Esse classismo descolonial se baseia na compreensão do “(…) significado político que o negro representa como limite histórico da descolonização (negativamente) e da revolução democrática (positivamente) (Idem, p. 35) . 

Dessa maneira, a perspectiva revolucionária de Florestan chega à seguinte fórmula: “socialismo proletário, entre nós, implica classe e raça indissoluvelmente associadas de modo recíproco e dialético” (Idem. p. 109). A crítica teórica e prática ao racismo estrutural se funde ao paradigma classista do socialismo proletário, dando origem a uma abordagem descolonial, assentada na história da sociedade brasileira e impulsionada pelo auge das lutas operárias, trabalhistas e populares pela democratização do país em meados da década de 1980.

4 – Revolução educacional, descolonização e afirmação nacional e democrática.

Em Florestan, no âmbito dessa luta pela descolonização da sociedade brasileira, a educação escolar aparece como elemento indispensável. Na verdade, a defesa da universalização da escola pública, estruturada em função do desenvolvimento da personalidade e da democratização social, está presente ao longo de toda a sua trajetória, especialmente, no início da década de 1960, quando dos embates políticos em torno da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, e no contexto da reabertura do regime político e da Assembléia Constituinte, do final dos anos de 1980, quando eleito deputado constituinte pelo PT, assume simultaneamente a posição de porta-voz e de pivô organizativo da tradução das exigências e reivindicações trazidas pelos movimentos sociais para o formato da disputa constitucional.

Dentre os setores sociais organizados com os quais Florestan mantém uma interlocução estreita nesse período se encontram, em especial, o movimento negro, por um lado, e os educadores e estudantes, do outro. Assim como esse contexto permite uma sistematização mais desenvolvida da problemática racial e da descolonização em sua prática sociológica, ele também levará; na luta pela educação pública, gratuita, democrática e de qualidade; a uma abordagem da superação do “dilema educacional brasileiro”, em torno das necessidades educacionais dos trabalhadores, que vai se expressar na palavra de ordem da revolução educacional.

Então, é por isso que eu disse que é preciso uma revolução educacional, porque é uma reforma tão profunda como a reforma agrária. Ela vai abalar as estruturas sociais do país. Mas, com isso o País poderá dar um salto enorme na direção da construção de novos destinos e se tornar uma nação autônoma e, inclusive, ser capaz de colocar a questão de capitalismo e socialismo como uma opção de classes, como uma opção, uma escolha daqueles que estão em confronto e não como uma imposição da ordem. (FERNANDES, 1989, p.241)

Nesse trecho de um depoimento concedido em 1989, após o final do processo constituinte, Florestan revela não apenas a continuidade da revolução educacional em seu horizonte político; ou seja, mesmo após o que considera a derrota sofrida pelas forças populares e democráticas nesse embate, sobretudo no tocante à escola pública; mas essa revolução educacional é compreendida como elemento decisivo da transformação das estruturas sociais do país, criando as condições para a afirmação soberana e autônoma da sociedade brasileira como sociedade nacional e abrindo democraticamente as possibilidades históricas de uma transição do capitalismo dependente ao socialismo. 

A revolução educacional teria como requisito inicial a universalização da educação escolar na sociedade, implicando a garantia das condições materiais necessárias à escolarização massiva das crianças, jovens e adultos de todas as classes e camadas sociais. A escola pública é o eixo dessa revolução, tanto no que se refere à centralidade da unidade escolar, como comunidade educativa viva e democrática, na construção e implementação da política educacional, quanto no que se refere à supremacia do caráter público da educação escolar que, ainda admitindo a escola privada, a submete a uma regulação rígida voltada a salvaguardar o interesse público em todo o processo educativo (Idem. p. 216)

Mesmo que essa universalização da escola pública entre crianças, jovens e adultos do país possa ser considerada, em si mesma, uma revolução educacional, a superação de nosso histórico “dilema educacional”, a integração das maiorias populares à escola pública, para Florestan, precisa se combinar com uma revolução no método de organização e funcionamento e no conteúdo normativo e cognitivo do processo de ensino-aprendizagem da escola. 

Ela [a revolução educacional] precisa possuir um sentido descolonizador e emancipador da pessoa do educando, do corpo de estudantes e professores. Ela deve também favorecer o combate à opressão dos de baixo e dos estudantes dentro da escola, consagrando aquilo que Paulo Freire designa como uma pedagogia de liberação dos oprimidos, cuja decorrência mais ampla e profunda vem a ser a autonomia cultural e pedagógica dos estudantes, do professor, da escola e do país. (Idem. p. 31)

Articulando descolonização e emancipação humana no horizonte pedagógico intrínseco à revolução educacional que defende, Florestan atribui à essa nova escola pública universalizada a condição de locus privilegiado de afirmação de uma “cultura cívica” que, nesse caso, aparece como momento necessário daquilo que Gramsci conceitua, em outro contexto, como “reforma intelectual e moral”, expressão da afirmação de uma nova “hegemonia”, “nacional-popular” (GRAMSCI, 1978). Por isso, a ser realizada pelo protagonismo organizado e mobilizado de educadores, estudantes, seus pais e familiares, em articulação com a luta dos trabalhadores e das maiorias populares.

Nos marcos dessa revolução educacional, a participação da escola pública brasileira na promoção da descolonização, da revolução nacional e democrática, e na criação das condições históricas à transição socialista, faz com que a perspectiva educacional e pedagógica emancipatória incorpore os pontos de vista, e as exigências críticas raciais (da população negra, em especial, mas também indígena) e de classe (dos trabalhadores), em um complexo teórico e prático transversal e unitário. O engajamento da escola pública na luta contra o racismo estrutural, tal como reivindicada por Sílvio Almeida, aparece como componente inseparável da revolução educacional classista e descolonial proposta por Florestan.

A partir dessa mediação entre as abordagens críticas de Silvio Almeida, Anibal Quijano e Florestan Fernandes, sobre relações raciais e a questão educacional na sociedade brasileira, entendemos que é possível apontar elementos que contribuem para a realização de um balanço crítico das condições da educação e da escola pública no Brasil de hoje, e também para indicar caminhos para uma formulação descolonial, popular e democrática para a educação brasileira. Mais do que nunca, entendemos que essa tarefa está posta com urgência no Brasil, sobretudo, aos profissionais da educação, estudantes e demais setores da sociedade comprometidos com a causa educacional.

Bibliografia:

ALMEIDA, Maycon Bezerra de. Florestan Fernandes e o ensino escolar da sociologia. 2016. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016.

ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte. Letramento. 2018.

DUSSEL, Enrique. Ética da libertação. Na idade da globalização e da exclusão.  Petrópolis. Editora Vozes. 2000.

FERNANDES, Florestan. A integração do Negro na sociedade de classes. São Paulo,  Dominus Editora. 2 vols, 1965.

____________________. Poder e contrapoder na América Latina. Rio de Janeiro. Zahar. 1981

____________________. O desafio educacional. São Paulo. Cortez Editora. 1989.

____________________. O significado do protesto negro. São Paulo. Expressão Popular. 2017.

GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 1978.

QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina, set. 2005, p. 107-130. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/>. Acesso em: 20/03/2019.

LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses ‘Sobre o conceito de história’. São Paulo. Boitempo. 2005.


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