Um passo adiante no Chile
Bruno Magalhães analisa o resultado da recente “megaeleição” no Chile.
O impressionante resultado da recente “megaeleição” chilena abre uma nova etapa do processo iniciado com o estallido social de 2019, o histórico levante que ocupou as praças do país, iniciou a formação de cabildos populares, impôs uma nova Constituição e quase derrubou o presidente direitista Sebastián Piñera. O resultado positivo dos partidos de esquerda e das candidaturas independentes nas eleições locais e na eleição constituinte provaram o desejo de mudanças profundas da grande maioria do povo do Chile.
Com a divulgação dos resultados, a Bolsa de Valores de Santiago sofreu a maior queda desde março do ano passado, demonstrando a insatisfação do mercado financeiro. Piñera, o grande derrotado, declarou que “não está sintonizado com as demandas e necessidades da cidadania”. Evelyn Matthei, mesmo reeleita prefeita do município de Providencia, recuou da possível candidatura presidencial pela UDI (União Democrática Independente) por “não ser cega”. Na Democracia Cristã (DC), a senadora Ximena Rincón declarou o resultado “desastroso” enquanto Pamela Giles, primeira colocada em algumas pesquisas para as eleições presidenciais do próximo novembro, declarou que sua candidatura “não existe” após os resultados ruins de seu Partido Humanista (PH).
Por outro lado, as candidaturas independentes contaram com mais de 30% dos eleitos e representam a força mais significativa do processo, assim como os mais de 10% de indígenas eleitos. A lista Aprovo Dignidade, composta por setores da esquerda como o Partido Comunista, a Frente Ampla e o Partido Igualdade, atingiu quase 20% das cadeiras constituintes, completando um cenário de maioria de esquerda na convenção que escreverá a próxima constituição chilena.
Nas municipalidades também houveram significativas vitórias da esquerda, como a reeleição do prefeito de Valparaíso Jorge Sharp (ex-Convergência Social) e as vitórias do Partido Comunista (PC) em Santiago com Irací Hassler e Recoleta com Daniel Jadue, outra figura bem colocada nas pesquisas presidenciais. Ainda que os municípios chilenos tenham bem menos autonomía administrativa do que no Brasil, estas vitórias são bastante significativas politicamente.
O estallido que foi às urnas
É impossível entender o resultados destas eleições sem voltar ao levante de outubro de 2019. Naquele momento, e nos meses posteriores até a pandemia, se abriu um processo profundo de indignação do povo chileno e questionamento das bases neoliberais estabelecidas pela ditadura de Pinochet a partir dos anos 1970. A violenta repressão que se seguiu após o golpe de 1973 contra Salvador Allende pavimentou o caminho de uma profunda transformação social que amordaçou as oposições políticas e mercantilizou cada aspecto da vida chilena.
A privatização de recursos naturais básicos, a concepção de caráter subsidiário do Estado e a mercantilização generalizada se combinaram com décadas de violência política, criando um profundo trauma social que culminou no levante de 2019. Entre os alvos principais da revolta popular estavam as odiadas Administradoras de Fundos de Pensão (AFPs), empresas de previdência privada que controlam o sistema de aposentadorias do país (à exceção das forças armadas e policiais) e cujas políticas são responsáveis pelo empobrecimento generalizado dos chilenos e chilenas que recebem apenas uma fração de seu salário após a aposentadoria.
Outro alvo da indignação foram os Carabineros de Chile, força policial federal que serviu como braço repressivo da ditadura pinochetista e que vive praticamente em um estado paralelo, com salários maiores do que a média dos trabalhadores, um sistema diferenciado de previdência e uma rede de serviços públicos própria. Os pacos, como são chamados os carabineiros, reagiram com violência desde o início do estallido e foram um de seus dos primeiros alvos, tendo viaturas apedrejadas e cabines incendiadas por todo país.
O levante de 2019 foi também uma insurreição antipatriarcal impulsionada pelo potente movimento feminista chileno. As mulheres estiveram desde o início na primeira linha, no enfrentamento contra a repressão e na mobilização dos territórios, imprimindo um caráter feminista no amplo movimento popular. A performance “Un violador em tu camino”, do coletivo Lastesis, tornou-se o símbolo contra a violência machista em um país onde o assédio e o estupro foram e continuam sendo utilizados sistematicamente como forma de repressão política. A Coordenadora Feminista 8 de Março foi uma das organizações centrais durante todo o processo e elegeu cinco lideranças feministas para a próxima constituinte.
O símbolo da luta foi a Wenufoye, a bandeira criada pelo Conselho de Todas as Terras que se transformou em símbolo da resistência mapuche no sul do país. Assim como a sistemática derrubada de estátuas dos colonizadores espanhóis, a adoção da bandeira pelo conjunto dos manifestantes foi mais um sinal concreto de que este movimento popular tinha reivindicações muito mais profundas. O rosto do jovem mapuche Camilo Catrillanca, assassinado pela polícia em 2018, foi outro símbolo da luta comum deste país andino onde a população de origem indígena é bem menor que a de seus vizinhos do norte devido ao genocídio colonial.
O levante de 2019 levou à formação dos cabildos, assembleias de bairro que buscaram organizar o processo de luta em cada território das cidades. As muitas dificuldades da construção dos cabildos refletiram as dificuldades do próprio processo de organização territorial, amplo e diverso, e não conseguiram estabelecer uma organização nacional, mas o sentido daquele processo permaneceu na consciência popular. Assim como permaneceu também a desconfiança contra os partidos da ordem, principalmente após a assinatura do famigerado “Pacto Social” que buscou dar um fim ao levante.
O Pacto da Cozinha
O “Acordo para a Paz Social e a Nova Constituição” foi chamado popularmente de “Pacto da Cozinha” por seu caráter de conluio, assinado pelos principais partidos na madrugada do dia 15 de novembro de 2019 sem nenhum tipo de consulta pública. Este Pacto foi uma tentativa do presidente Piñera de esvaziar o estallido através da promessa de uma nova constituição que substituísse a legislação vigente desde Pinochet. A nova Constituição era uma das principais reivindicações da esquerda e das organizações populares por décadas, e virtualmente impossível de ser conquistada antes de 2019.
Mas em poucas semanas de insurreição a nova Constituição tornou-se não somente possível como transformou-se em uma rota de fuga para a direita. O chamado para um novo processo constituinte foi a maneira encontrada pelo presidente para se manter no poder, já que naquele momento o “Fuera Piñera” era o principal grito entre os manifestantes. Ao contrário do Brasil, o Chile nunca teve um presidente derrubado por um impeachment, mas a pressão social pela renúncia era gigantesca e, ao propor o Pacto, Piñera atingiu seu objetivo de manter-se no poder.
O grande detalhe é que não foram somente os partidos da direita ou da antiga Concertação que atenderam ao chamado de Piñera. A Frente Ampla, frente eleitoral composta por partidos progressistas e da esquerda radical, apoiou majoritariamente o Pacto gerando indignação e rupturas de organizações e militantes. Enquanto partidos como Revolução Democrática (RD) e Comunes apoiaram a proposta de Piñera com o argumento da grande vitória política e do risco de golpe militar, outros como o Igualdade, o Movimento Democrático Popular e a Esquerda Libertária (EL) se retiraram da Frente.
A Convergência Social (CS) se rompeu quando o deputado e hoje presidenciável Gabriel Boric assinou o Pacto sem consultar o partido – ato pelo qual recebeu apenas uma leve sanção – levando à saída de Cristian Cuevas, vice presidente da CS, de remanescentes da EL e outros militantes. O PC se recusou a assinar o Pacto e de certa forma se redimiu dos anos de composição com o governo da Concertação perante uma parcela importante da população radicalizada.
A proposta de nova Constituição era genérica e estava muito aquém das exigências populares. Em primeiro lugar porque convocava um plebiscito ao invés de iniciar um processo constituinte genuíno, abrindo a possibilidade de uma convenção mista composta por metade do velho parlamento que acabaria com o caráter de poder originário da nova constituinte. Em segundo porque não garantia paridade de gênero, nem o espaço dos povos originários, nem a possibilidade de candidaturas independentes. Estas distorções da vontade popular criadas pelo Pacto foram derrotadas uma a uma, especialmente no plesbiscito de 2020 onde 80% da população votou por uma constituinte soberana, tornando a situação bem melhor para a esquerda do que fora planejado pelo regime político.
Além disso, o Pacto dizia que o futuro órgão constituinte não poderia alterar os quóruns de decisão dele próprio, o que consolidou o poder de veto para um terço dos participantes em caso de mudanças constitucionais profundas, como as alterações no sistema de AFPs ou na estrutura das forças policiais. Essa manobra serviria para garantir que a direita manteria o veto às principais mudanças almejadas pelo povo nas ruas, tornando quase impossível a estatização dos fundos de previdência e a reversão de outras privatizações, além da desmilitarização da polícia e outras demandas callejeras. Naquele momento Piñera certamente pensava que sua lista Vamos por Chile (união da direita) faria uma votação maior do que os 25 % das últimas eleições.
O Pacto da Cozinha também contribuiu diretamente para o arrefecimento da mobilização porque retirou do horizonte a possibilidade de derrubada de Piñera. As manifestações se mantiveram gigantescas nas principais cidades, mas perderam o impulso inicial dos cabildos a partir da orientação exclusivamente institucional de parte dos partidos de esquerda. Alguns meses depois, o governo aprovou a Lei Antibarricadas, que tornava mais bem severa a punição de manifestantes. Não por acaso, as bandeiras daqueles que estiveram a favor do Pacto foram cada vez menos vistas nas manifestações e uma onda em prol de candidaturas independentes se desenvolveu.
Entender os motivos e consequências do Pacto é essencial para compreender o movimento histórico do estallido, que mesmo traído manteve enorme um impacto social que se materializou nos resultados eleitorais. A tática de “entregar os anéis para não perder os dedos” utilizada por Piñera com o Pacto serviu momentaneamente para seus objetivos e desmascarou diversos partidos da esquerda, mas não conseguiu apagar o profundo desejo de mudança que se expressará na futura Convenção Constitucional.
Uma nova Constituição
O elemento mais importante na derrota da direita nas recentes eleições é o fato de não haverem atingido o terço de assentos necessário para o veto constitucional. Esta barreira seria a última contenção para mudanças constitucionais profundas e foi rompida principalmente devido às candidaturas independentes cujo sucesso não é tão surpreendente se verificarmos todo o processo desde 2019. O rechaço ao neoliberalismo e a desmoralização de alternativas políticas progressistas depois do Pacto fizeram grande parte dos chilenos e chilenas votarem por projetos independentes de ruptura representados por listas independentes como a Lista do Povo.
A lista da esquerda Aprovo Dignidade, que reuniu tanto a Frente Ampla como o PC e outros setores que recusaram o Pacto, teve um bom resultado com quase 20% de constituintes. Somados às listas de centro-esquerda, aos constituintes eleitos pelos povos originários e à grande parte de independentes progressistas, existe uma maioria a favor de uma nova Constituição que seja bem diferente da atual.
As questões colocada para a maioria da futura Convenção Constitucional não são simples. Como desmontar o modelo do estado subsidiário? Como reconstruir a previdência social e os serviços públicos? E como fazer isso em uma economia quase exclusivamente em mãos privadas? Nos próximos meses, o Chile viverá uma experiência social inédita na tentativa de “desmontar” mecanismos neoliberais introduzidos há décadas.
Este caminho não será fácil, e será impossível sem grande mobilização popular. A direita chilena ainda tem suas armas e não hesitará em usá-las caso uma verdadeira derrota seja iminente com a mudança de Constituição. A primeira delas é a tentativa de desestabilização através das ameaças de colapso econômico e mesmo de ações concretas como lockouts e outros tipos de sabotagem. As AFPs tem um impacto na economia chilena muito mais amplo do que o setor previdenciário, tendo espandido seus negócios para outros ramos da economia que estariam “sob ameaça” com o fim do sistema de pensões atual.
Além disso, o exército e os carabineiros representam a última linha de contenção do Estado arquitetado por Pinochet, e saídas violentas não podem ser descartadas caso os interesses deste grupo favorecido sejam afetados. A mémoria do ataque ao Palácio de la Moneda que assassinou o presidente Allende em 1973 segue viva, assim como o Massacre do Estádio Nacional e tantos outros episódios de violência praticada pelos mesmos grupos políticos que hoje estão no poder, e não é improvável que estes setores tentem de tudo para manter seus privilégios novamente.
Outro desafio virá daqueles que teoricamente defendem mudanças estruturais, mas não deram provas concretas de sua disposição de realizá-las. Os partidos da antiga Concertação, como os Socialistas, os Radicais e os Democratas Cristãos, já foram governo e tem visões muito mais moderadas sobre a necessidade de mudanças no sistema subsidiário. Com uma bancada de quase 15%, parte deste setor pode representar o freio que a direita precisa para exercer seu veto perante propostas que realmente mudem o estado de coisas no país.
A esquerda, principalmente aquela ao redor da atual Frente Ampla, também deve se provar perante as pressões institucionais, algo que não fizeram em 2019. O Pacto da Cozinha não teve as consequências desejadas pela direita porque o sentido da mobilização é muito profundo no povo chileno, mas novas capitulações dessa natureza vão cobrar caro daqueles que a cometerem, principalmente nos temas-chave das AFPs e dos novos direitos sociais que os chilenos e chilenas almejam.
Está aberto no Chile um processo constituinte que pode ser muito maior do que sua face institucional. A nova Constituição deve ser debatida nas bases, nos cabildos, nos sindicatos e nos territórios, em um amplo processo de consulta democrática que utilize o processo de criação das leis como ferramenta para fortalecer a organização popular. A mobilização e a organização popular serão imprescindíveis para garantir que a Convenção Constitucional cumpra seus objetivos e coloque a classe trabalhadora chilena em melhores condições de luta não somente no aspecto institucional, mas principalmente em uma correlação social de forças que permita vitórias concretas contra a burguesia.
Os futuros convencionais constituintes foram eleitos em condições especiais e devem sentir uma pressão popular que faça frente à enorme pressão parlamentar e institucional que reprimiu o estallido desde seu início. As próximas eleições presidenciais no fim do ano serão outro momento importante – inclusive porque existem chances da eleição de um governo de esquerda – mas todas as táticas no Chile devem estar ordenadas a partir da estratégia de construir o poder popular, fortalecendo os cabildos e as organizações populares. Não há outra saída para derrotar definitivamente a burguesia pinochetista do país.