O peso de Voar

O peso de Voar

A trajetória da ginasta olímpica Simone Biles e sua valentia

Isabelle Otoni 29 jul 2021, 22:09

Simone Biles é uma ginasta de 24 anos, 1,42cm e a atleta mais condecorada dos Estados Unidos. A cinco pódios de se tornar a pessoa com mais medalhas da história, Simone Biles também é humana e tem direito a atingir seu limite.

Ao sentar pela primeira vez no divã de um especialista em saúde mental, ele provavelmente irá te perguntar o que te levou até ali. Na vida de Biles é de conhecimento público uma quantidade enorme de fatos que podem tê-la levado até uma dessas cadeiras.

Logo ao nascer, Simone e seus irmãos foram colocados para adoção. Eles permaneceram em uma casa de acolhimento até Simone completar cinco anos, quando sua avó materna resolveu adotar ela e sua irmã, Adria. E não foi muito após isso que ela começaria a ser treinada para se tornar uma atleta olímpica: ao praticar por diversão com seis anos, foi convidada pelos instrutores a treinar cotidianamente. Aos oito anos Biles já recebia treinamento profissional. Com 14 anos, já era uma atleta de elite e havia optado por receber educação domiciliar, não mais frequentando uma escola e podendo se dedicar cerca de 32 horas semanais para treinos. Com 16 anos Simone Biles era a primeira mulher afro americana a ganhar o título mundial de all-around na ginástica.

Ela tinha só 17 anos quando o corpo começou a cobrar a conta de quase dez anos de treinos intensivos. A lesão que sofreu não a impediu de ganhar o ouro nas competições que participou naquele ano, 2014. No ano seguinte, 2015, teve o melhor ano da sua carreira, terminando a temporada como a terceira melhor ginasta do mundo, com 18 anos. As Olimpíadas do Rio se aproximavam e todos os olhos estavam nela.

Em junho de 2016 a capa de todos os jornais era a mesma: Simone Biles era acusada de dopping para melhora de performance, depois que um hacker invadiu o sistema da Agência Mundial Antidoping e constatou que ela tomava medicação de uso contínuo. Biles teve de vir a público e tornar de conhecimento geral seu diagnóstico de déficit de atenção e hiperatividade, TDAH. “Ter TDAH e tomar remédio para isso não é algo de que preciso me envergonhar ou ter medo que as pessoas saibam.”, disse ela em seu Twitter. Mas a polêmica estava criada e todos diziam como a medicação era a responsável pelo seu excelente desempenho. E não estava sozinha: a tenista Serena Williams também era acusada de se privilegiar por tomar a mesma medicação.

As cobranças apontavam que remédios para TDAH estimulam a produção de dopamina no organismo, podendo aumentar a atividade motora e muscular. E também diziam que TDAH é uma “doença inventada”, embora reconhecida pela Organização Mundial da Saúde. Mas havia um silêncio completo sobre o que é ser uma atleta de alto nível e conviver com uma doença que provoca extrema desatenção, problemas de memória, ansiedade e impulsividade.

Ainda assim, Simone fez história nas Olimpíadas de 2016. Foi a primeira ginasta a ganhar 4 medalhas de ouro em uma mesma Olimpíada. Foi escolhida pela equipe norte-americana para segurar a bandeira dos Estados Unidos no evento de encerramento das Olimpíadas. Foi a primeira vez que colocaram uma mulher para cumprir a tarefa.

Em 2017, decidiu não competir. O hiato na carreira foi extremamente questionado pela mídia, que apontava que ela vivia seu melhor momento e não poderia se dar ao luxo de parar. Quando voltou a treinar, em 2018, resolveu contar sua história.

“Muitos de vocês me conhecem como uma garota feliz e enérgica. Mas ultimamente… eu tenho me sentido quebrada e quanto mais eu tento fazer a voz na minha cabeça se calar, mais alto ela grita.” Esse é o começo da carta que Simone escreveu para contar do abuso sexual que sofreu de Larry Nassar, na época médico da Seleção Olímpica de Ginástica dos Estados Unidos. Biles revelou a mídia pouco depois que outras atletas o denunciaram, trazendo à tona a violência que ele cometeu com mais de uma centena de garotas pelos dezesseis anos em que ocupou o cargo. “É muito difícil reviver essas experiências e parte meu coração ainda mais saber que no meu trabalho no sonho de competir em Tóquio-2020, eu terei de retornar continuamente ao mesmo local de treino onde eu fui abusada”, escreveu ela.

Em 2018 Simone Biles já contava para o mundo que teria que treinar no mesmo lugar onde viveu seu abuso sexual. Os apelos para que não fosse obrigada a voltar aquele espaço foram ignorados. Continuou a treinar. Ganhou 4 ouros no Campeonato Mundial de Ginástica Artística em 2018, mesmo após quebrar os dedões dos dois pés. Simone competiu enquanto sofria com pedra nos rins. Em 2019 ganhou 5 ouros e o all-around. Mas quanto mais uma pessoa consegue aguentar?

Por conta da pandemia de Covid, em março de 2021 Simone se apresentou após dezoito meses sem competições. Apresentou um novo salto em seu set, “Yurchenko”, tão difícil que nenhuma outra mulher havia tentado reproduzir em uma competição. Nem mesmo Natalia Yurchenko, ginasta russa que batiza o salto. Por fazer o impossível, foi penalizada. Recebeu notas extremamente baixas dos juízes, que a acusam de imprudência por praticar um salto tão difícil. Perguntada se seguiria performando o ato, foi assertiva: “Sim. Porque eu posso.” Acusada de arrogância, continuou fazendo seu trabalho e desafiando quem ousava diminuir seu trabalho. Apenas três meses antes das Olimpíadas de Tokyo, Biles resolveu encerrar seu contrato de patrocínio com a Nike, alegando que eles não davam o devido mérito a atletas mulheres.

Mas em algum ponto o peso de ser a “melhor de todos os tempos” se torna um fardo. Em uma das últimas entrevistas antes de viajar para o Japão, Biles foi questionada sobre o melhor momento da sua carreira. A resposta foi objetiva: “meu ano de folga.” A poeta norte-americana Maya Angelou escreveu uma vez que “Não há maior agonia que suportar uma história não contada dentro de você.” Em entrevista ao New York Times Simone teve a coragem de dizer que não estava viajando para o Japão para representar o “U.S.A. Gymnastics”, mas sim as pessoas dos Estados Unidos e as garotas negras do mundo.[1].

Cada esporte tem suas especificidades. Dar saltos com duas vezes sua altura e girar no ar não é, definitivamente, um movimento comum do corpo humano. Se convencionou chamar de “twisties” o que acontece quando um ginasta começa a perder o senso de espaço, direção e controle do próprio corpo enquanto faz seu set. Pode acontecer até mesmo durante movimentos que se reproduz há anos. Há alguns dias, Simone reportou ao seu comitê que estava sofrendo alguns sintomas. Ao não conseguir pousar de forma perfeita de um salto, Biles percebeu que algo não estava certo. Enquanto em alguns esportes um movimento mal finalizado rende perda de pontos, nas ginásticas isso já levou à paralisia e até morte de atletas. O Brasil acompanha até hoje a atleta Lais Souza, que ficou paraplégica após uma queda nas Olimpíadas de Inverno de Sochi. Após saber da decisão de Biles de desistir de competir, a ex-ginasta Jacoby Miles postou em suas redes sociais: “Só foi preciso uma vez de me perder no ar para quebrar o pescoço e ficar paralisada, muito provavelmente para toda a vida”. Jacoby tinha apenas quinze anos quando o acidente aconteceu, há seis anos.

Quando comparada a outros atletas e anunciada como “a próxima Usain Bolt ou Michael Phelps”, ela respondeu: “Não. Eu sou a primeira Simone Biles”. A primeira Simone Biles não desistiu de ser a atleta mais premiada do mundo porque é fraca. Quando diz que precisou desistir para “lutar contra os demônios na cabeça”, a sociedade sabe o nome da maioria deles e escolheu ignorar. Os técnicos do U.S.A. Gymnastics que criticam sua decisão são os mesmos que a colocaram para treinar no mesmo local onde foi abusada sexualmente. Que a colocou para apresentar sua performance final de 2018 com pedra nos rins. Que a levou a construir um espaço dela para treino, para que não fosse obrigada a trabalhar no local dos seus pesadelos. Que focou no lucro que ela produzia, mas nunca em sua saúde.

Simone não precisou só de coragem. Um jornalista norte-americano a acusou de “sociopata egoísta”, “uma vergonha para os Estados Unidos” e “parte de uma geração de pessoas fracas”. O jornalista brasileiro Milton Neves disse que ela deveria “ter cedido a vaga para uma compatriota mais preparada”. Acusada de “querer chamar atenção para si mesma”, outro jornalista americano disse que Simone “usa a pauta da saúde mental para se promover, e agora recebe aplausos como se tivesse ganho uma medalha de ouro”. Biles precisou de mais que coragem, porque parte da sociedade ignora que não existe nenhuma outra como ela. Que ela é a mulher americana que ganhou mais medalhas de ouro em uma mesma Olimpíada. Que ela é a mulher que sobreviveu a fome na infância, a violência sexual quando adolescente e aos abusos de poder do comitê técnico quando adulta. E tem direito ao seu próprio corpo e de dizer que chegou ao seu limite.

Essa é, provavelmente, a última Olimpíada em que Simone participou. Talvez, se tivesse competido, teria ao seu legado o título de atleta Olímpica mais premiada da história. Mas ousou salto maior: Biles se tornou a atleta que impulsiona os outros a voar alto o suficiente para ver a paisagem, mas sem ser derretido pelo Sol. Sua valentia dá a outros a coragem de voar, de vencer, de percorrer todos os méritos. Mas ensina algo superior: como e quando pousar.

Recentemente Simone Biles fez uma tatuagem com um poema de Maya Angelou, Still I Rise. Parte dele diz: “Você pode me escrever na História/ Com as mentiras amargas que contar, /Você pode me arrastar no pó/ Mas ainda assim, como o pó, eu vou me levantar.”. Tatuado na pele de Biles e na memória de todos e todas que torceram para que ela sempre pousasse em segurança dos seus saltos mais altos, as costas dela agora dizem “E ainda assim, eu me ergo”.


[1] https://www.nytimes.com/2021/07/24/sports/olympics/simone-biles-gymnastics.html


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