Primeiras notas sobre o Afeganistão
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Primeiras notas sobre o Afeganistão

Pedro Fuentes e Isabelle Ottoni analisam a retirada das tropas estadunidenses do Afeganistão, a tomada do poder pelo Talibã e suas consequências.

Isabelle Ottoni e Pedro Fuentes 16 ago 2021, 21:43

1) Síntese

O colapso do governo afegão, sustentado pelas tropas de ocupação norte-americanas durante 20 anos, mostra o fracasso da operação. O seu governo fantoche e o exército afegão, instruído pelo grande poder militar, entraram em colapso miseravelmente. A suposta saída negociada de Trump e Biden com os talibãs não se manteve. A saída precipitada do exército mostra não só o fracasso dessas negociações, mas até mesmo os erros de cálculo dos militares do Pentágono na sua retirada. O secretário de Estado Antony Blinken declarou que não é uma saída como a do Vietnã em 1975, mas a realidade dos aviões militares de carga abarrotados de afegãos o desmentiu. Seu despreparo é tanto que havia dado entrevista em junho deste ano dizendo que, apesar de haver chances de deterioração na segurança, não seria algo que aconteceria de sexta-feira a domingo[1]. Mas foi exatamente o que aconteceu.

O imperialismo americano (a potência militar mais forte) sofre uma nova derrota, como aconteceu no Vietnã e no Iraque. Antony Blinken disse que não era como Saigon. Mas é bastante semelhante. Quem triunfa não são as massas, mas os talibãs, que governaram o país durante cinco anos, impondo um regime bárbaro de repressão às mulheres e de regressão civilizacional geral. O recuo da hegemonia ianque (de que Trump e Biden falaram em recuperar à sua maneira) sofre um novo golpe. O tabuleiro de xadrez geopolítico no Grande Médio Oriente, a área mais conflituosa do mundo, está de novo a implodir. O plano de retirada concebido pelo imperialismo caiu como um castelo de cartas, mas as massas não ganharam. Aquele que impõe a derrota não é um aliado dos povos. Ele representa o islamismo autoritário de direita. Portanto, isto não é um “triunfo das massas”, nem no Afeganistão nem no mundo. A luta continua contra esse regime bárbaro e seguramente totalitário. Abre-se uma nova etapa, na qual os setores democráticos no Afeganistão aprenderam que não podem contar com esses aliados imperiais. No resto do mundo, não podemos celebrar qualquer triunfo. Temos de exigir que o novo governo respeite os direitos das mulheres, que permita que aqueles que querem deixar o país o façam, e que tenham possibilidade de asilo político no país de destino.

2) Afeganistão, um túmulo de invasores

O Império Britânico fez três tentativas, em décadas diferentes (a última em 1870), de tomar o Afeganistão, mas falhou em todas as suas tentativas.

Em 1978, o PDPA, partido de jovens militares e militantes pelos direitos civis da população, tomou o poder no Afeganistão. Promoveu medidas progressivas contra os senhores feudais, como a reforma agrária, além de promover a defesa mais ampla de direitos igualitários a todas as mulheres e a introdução das mulheres na vida política, naquele momento proibida. Anos mais tarde, face à fraqueza do partido, que contava com menos de quinze mil militantes no país, abriu-se à intervenção russa, que acabou por se transformar num exército de ocupação no Afeganistão.

A resposta do imperialismo norte-americano foi o financiamento dos grupos extremistas-religiosos na região, com o apoio do Paquistão, como registrado em diversos documentos hoje públicos[2]. A intenção era desestabilizar o governo soviético, até forçar sua retirada, como aconteceu em 1989. A queda do governo deu a força que os mujahidins, grupo que deu origem ao Talibã, precisavam para começar uma guerra civil no Afeganistão. O governo de transição que assumiu, apoiado pelos Estados Unidos, era fraco e sem legitimidade. A guerra durou até 1996, quando o Talibã conquistou o território de Cabul.

Os cinco anos seguintes estabeleceram o Talibã como governo local. Sua marca era e segue sendo a interpretação extremista da sharia, a lei islâmica, que promove o uso obrigatório da burca completa, a criminalização da população LGBT, a proibição do acesso à educação das mulheres, o apedrejamento como punição a crimes, entre outros. Sua política de oferecer refúgio para extremistas da Al-Qaeda foi o motivo dos Estados Unidos para a nova ocupação, em 2001.

3) A guerra contra o terrorismo e os 20 anos de ocupação pelos EUA

A operação não acontece de forma isolada, mas é apoiada pela Inglaterra, França, Espanha, Canadá, entre outros países que operam sob a bandeira do imperialismo. Teoricamente regulados pela ONU, todas as potências afirmaram que se tratava de uma ocupação de autodefesa. O gasto foi de mais de um trilhão de dólares, com saldo de mais de duzentas mil mortes. Agora, Biden vem a público e diz que a culpa é dos militares afegãos, que abandonam seus postos na batalha. Um exército treinado, financiado e armado pelos Estados Unidos e os líderes corruptos que eles apoiam. Biden diz que nunca seria um bom momento para retirar as tropas americanas, quando na verdade nunca é um bom momento para que elas assumam um país, em primeiro lugar. O caos pela saída despreparada dos Estados Unidos é principalmente pela sua entrada, em primeiro lugar.

4) A queda

Com a retirada das tropas estadunidenses, caiu o governo fantoche de Ashraf Ghani, liderança corrupta que emergiu de eleições pouco claras e tem ligações profundas com o tráfico de ópio, de que o Afeganistão é o maior produtor. Suas relações políticas são extremamente controversas, chegando a oferecer publicamente um acordo ao Talibã de se transformarem num partido político. Ele e seu antecessor, Hamid Karzai, promoveram alguns avanços sociais, como a recuperação de alguns direitos da mulher, como acesso à educação e a não obrigatoriedade de uso da burca. Mas a maioria desses direitos era limitado à capital, Cabul, onde o Talibã oferecia menos resistência ao descumprimento da sharia. Ao mesmo tempo em que é um feito positivo, é impossível negar que é insuficiente para vinte anos de ocupação militar. E todos os generais sabem disso, como mostraram os documentos que se tornaram públicos no “Afghanistan Papers”. O General Douglas Lute, militar ligado à Casa Branca responsável pela ocupação, afirmou: “Era impossível criar boas métricas. (…) as métricas sempre eram manipuladas durante a guerra”[3].

5) A desordem mundial aumenta

Há quem pense que o triunfo dos talibãs fortalece a China e a Rússia e que este seria um campo progressivo. É verdade que a China se beneficia da nova situação: pode ganhar um novo parceiro numa área estratégica para os seus planos de expansão da “Nova Rota da Seda”. Mas também há dois raciocínios errados. O primeiro é acreditar que estes países desempenham um papel progressivo. Não há nada de progressivo nisso. Assim como não há nada de progressivo no apoio da Rússia à ditadura militar em Myanmar ou no apoio da Rússia a Bashar Al Assad na Síria. O objetivo da China é reforçar o seu poder econômico e o seu domínio político para fins expansionistas. Apostam nos talibãs, chamam a chegada ao poder da força extremista de “direito do povo afegão de decidir seu próprio destino e futuro”[4]. Qual o futuro das mulheres que fugiram apressadas do dormitório da Universidade de Cabul, onde não sabem se poderão voltar a frequentar aulas?[5]

Trata-se de neoimperialismos que apoiam regimes totalitários, como o de Lukashenko, por exemplo, e como agora o do Talibã. Governos que são inimigos dos trabalhadores, das mulheres e dos setores populares nos seus países. Mas, ao mesmo tempo, uma nova ordem mundial, com hegemonia da China, está longe de emergir dessa situação. O que está a acontecer é mais caos geopolítico. A era de um país (no caso dos EUA) a exercer um domínio da ordem do mundo acabou.

6) O Talibã no poder

As massas no Afeganistão e no mundo não estão ganhando. O que está acontecendo no Afeganistão é que o inimigo mudou. Agora, provavelmente acompanhamos um revés civilizacional. A interpretação extremista da sharia deve voltar a ser utilizada, mas ainda não se sabe como. Muitos analistas apontam que deve ser um governo Talibã menos duro que o anterior, mas isso será acompanhado a um prazo mais longo. Nas ruas, já é possível assistir a murais com imagens de mulheres sendo apagados por militantes do Talibã, poucas mulheres andando nas ruas e falta de coragem de voltar às aulas. Quando conquistou Kandahar, no final de julho, o Talibã proibiu mulheres de trabalharem. Ainda que menos duro, não significa bom.

7) A ausência de uma alternativa.

Os anticapitalistas no mundo assistem a um período de lutas muito importantes em muitas regiões do mundo. Mas, nelas, ainda não surgiram lideranças alternativas. Não podemos procurá-las na China, na Rússia ou, no caso da América Latina, na Venezuela ou noutro país. Elas emergirão da luta de massas. Talvez, no Afeganistão, essa via possa ser aberta pela resistência democrática ao governo talibã, na luta do seu povo por emancipação de ambas as formas de opressão, seja imperialista ou extremista-religiosa. Mas a crise segue e as lutas também. Temos que acreditar que os trabalhadores, mulheres e pobres ajudem a construí-la.


[1] https://uphill.thedispatch.com/p/lawmakers-urge-evacuation-of-afghan

[2] https://nsarchive2.gwu.edu/NSAEBB/NSAEBB57/us.html

[3] https://www.washingtonpost.com/graphics/2019/investigations/afghanistan-papers/afghanistan-war-confidential-documents/

[4] https://www.ft.com/content/3640279b-26a7-4e06-be35-d2515713f4f8

[5] https://www.theguardian.com/world/2021/aug/15/an-afghan-woman-in-kabul-now-i-have-to-burn-everything-i-achieved?


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Pedro Micussi