Reprodução social e feminismo

Adriana Herz Domingues, da Coordenação Nacional do Juntas e MES RJ, escreve sobre feminismo marxista e a reprodução social

Adriana Herz 13 ago 2021, 18:20

A partir da nova onda de mobilizações feministas que se iniciou em 2011 com a marcha das vadias e o caso de estupro coletivo na Índia, muitas das mulheres que foram às ruas buscaram entender como essas pautas se articulavam entre si e com esses outros processos políticos em curso. Algumas autoras centrais surgiram então como referências para dar sentido às reivindicações das ruas, muitas dessas têm como referencial teórico o marxismo. Para a compreensão do capitalismo enquanto uma totalidade que abarca em si relações de gênero – com suas contingências, acidentes e conflitos (ARRUZA, 2015: 24) –, o feminismo marxista tem avançado na proposição de que o que diferencia as mulheres dos homens no processo histórico em curso é o papel que cumprem na reprodução social.

“As relações múltiplas de poder de dominação, portanto, aparecem como expressões concretas de uma unidade contraditória e articulada que é a sociedade capitalista. Esse processo não deve ser entendido de forma automática ou mecanicista. Como já foi notado, não devemos esquecer a dimensão da práxis humana: o capitalismo não é uma máquina ou um autômato, mas uma relação social, e como tal, é sujeita a contingências, acidentes, e conflitos. No entanto, contingências e conflitos não excluem a existência de uma lógica – nominalmente, a acumulação capitalista – que impõe limites objetivos não apenas à nossa práxis ou experiência vivida, mas também à nossa habilidade de produzir e articular relações com outros, nosso lugar no mundo, e nossas relações com nossas condições de existência.” (ARRUZZA, 2015: 24)

1.      Sobre reprodução social

Para Marx (2011: 795), o processo social de reprodução é a reprodução da sociedade enquanto uma totalidade, como demonstra Bhattacharya (2017: 75-76). Em uma sociedade moderna, isso significa a reprodução do capitalismo e de suas contradições, ocorrendo de duas maneiras, através da reprodução simples e da reprodução ampliada. A reprodução simples é a reposição dos meios de produção e do trabalho consumidos ao longo do processo produtivo, logo, é a transformação do dinheiro obtido com a venda das mercadorias produzidas em capital constante e capital variável. Essa não é no entanto suficiente em si mesma para a reprodução do capitalismo, pois não permite a acumulação. A reprodução ampliada é a transformação do produto obtido através do trabalho excedente – aquele que é feito além do necessário para a subsistência do trabalhador, em dinheiro para a compra de mais força de trabalho e de mais meios de produção para acumulação de riquezas. Nessas definições, Marx (2011: 788) admite o papel que o consumo individual do trabalhador, com seu salário, tem para a reprodução, pois é como o capitalista repõe a parte mais importante de seu capital – o capital variável. E mais, admite que a própria apropriação do trabalho é parte da reprodução, pois permite a reprodução da relação capitalista já que, se não for despojado dos meios de produção, o trabalhador não tem porque vender sua força de trabalho. No entanto, em O capital Marx ignora diversas formas de trabalho ainda necessárias para a reprodução do capital, tais como o cozinhar, passar e lavar roupas, cuidar de crianças, entre outras, que são feitas majoritariamente pelas mulheres.

Para o feminismo, a reprodução social pode ter contornos bastante diferentes. Conforme descreve Nancy Fraser (2017: 21), por exemplo, sem diferenciar a reprodução social do trabalho de cuidado, estas seriam as “capacidades sociais disponíveis para parir e criar crianças, cuidar de amigos e familiares, manter moradias e comunidades mais amplas e sustentar conexões de maneira mais geral”. Essas capacidades, assim como funções relativas ao poder público e ao meio ambiente, funcionam como condições de possibilidade para o funcionamento do capitalismo. Essas atividades, podem ser entendidas no sentido de que não geram mais-valor, ou seja, são improdutivas, mas necessárias para que o capitalismo continue a existir. Esse trabalho é necessário para que continuem existindo trabalhadores, mas ele em si não permite nenhuma acumulação capitalista. Para essa autora, a maior parte desse trabalho ocorre de maneira não paga e, portanto, fora do mercado.

A filósofa Silvia Federici (2017: 34), faz uma outra proposição, a de que esse trabalho reprodutivo ao qual nos referimos é na realidade um trabalho produtivo no sentido em que ele produz a mercadoria mais importante do capitalismo: o trabalhador.

Calibã e a bruxa mostra que, na sociedade capitalista, o corpo é para as mulheres o que a fábrica é para os homens trabalhadores assalariados: o principal terreno de sua exploração e resistência, na mesma medida em que o corpo feminino foi apropriado pelo Estado e pelos homens, forçado a funcionar como um meio para a reprodução e a acumulação de trabalho” (FEDERICI, 2017: 34).

Para que esse argumento funcione é necessário demonstrar que o trabalho reprodutivo, no sentido da teoria feminista, e não no sentido descrito por Marx, gera mais-valor. Ou seja, é necessário demonstrar que a mulher trabalha um período de horas para sua própria subsistência e um outro período de horas para outrem que se apropriará do produto de seu trabalho e venderá esse mais produto no mercado para comprar mais meios de produção para aplicá-los nesse processo de produção de trabalhadores – de maneira ampliada, lembrando aqui que a relação capitalista depende do processo de acumulação.

Irei abordar em primeiro lugar a questão do trabalho reprodutivo – no sentido descrito por essas teóricas feministas – não remunerado, aquele que é exercido de maneira invisível, em grande medida no espaço individualizado do lar, e que sequer é considerado trabalho em muitos âmbitos. Primeiro, é necessário reafirmar a importância desse trabalho para a reprodução do sistema capitalista e a importância de debatermos como ele leva ao endurecimento da vida das mulheres por pertencer quase que exclusivamente às mesmas, – que no Brasil, por exemplo, cumprem 7,6 horas semanais a mais de trabalho doméstico do que os homens (IBGE, 2018: 1). No entanto, como irei argumentar, o trabalho de cuidado exercido dentro do âmbito familiar não gera mais-valor. Para Federici (2017: 12, 16, 17, 34, 195), tanto o capitalista quanto o próprio marido, ou pai, da mulher se apropriam de seu mais-trabalho. No entanto, é evidente que nada disso ocorre. Nem o capitalista nem os familiares da mulher se apropriam do trabalho exercido por ela dentro de casa para levar o fruto desse trabalho ao mercado e reaplicar o capital obtido no mercado nesse suposto processo de produção. Mesmo assim, esse trabalho representa uma desigualdade, possibilitando que o marido tenha mais tempo livre ou mais tempo para trabalhar para o capitalista. Da mesma forma, é um trabalho essencial para o funcionamento econômico geral, pois possibilita que o capitalista tenha mais trabalhadores vivos para explorar, ou como exército de reserva. Apesar disso, não há nessa etapa processo direto de acumulação, logo o trabalho reprodutivo feito dentro da própria família não é um trabalho produtivo.

É importante notar, que, apesar de não se dar dessa forma hoje em dia, o trabalho reprodutivo realizado pelas mulheres negras e indígenas escravizadas durante a colonização para latifundiários gerava sim mais-valor para o processo de acumulação primitiva que permitiu o avanço do capitalismo. Isso porque aqueles que as escravizavam vendiam o fruto de seu trabalho no mercado internacional, e dessa forma financiavam a compra de mais homens e mulheres escravizados e meios de produção para reproduzir suas indústrias de maneira ampliada. Foi a partir desse processo de acumulação primitiva que o capitalismo surgiu nas Américas.

O trabalho de cuidado remunerado, no entanto, pode gerar mais-valor, e irei separá-lo em três casos:

O primeiro caso é o trabalho de cuidado exercido pelo Estado, muito mais abrangente em países que desfrutaram de um Estado de Bem Estar Social, mas presente na grande maioria, pela auto-organização do povo ou mesmo pelo terceiro setor. Esse é o trabalho

exercido pelo SUS, pelas escolas e em projetos sociais diversos. Esse trabalho de cuidado não gera mais-valor, porque não há apropriação do produto do trabalho exercido com sua venda no mercado com fins de acumulação. Se esses trabalhadores são mal pagos e muitas vezes trabalham em péssimas condições, isso ocorre porque há a priorização de outros investimentos por parte do Estado, como pagar a dívida pública, salvar empresas privadas e bancos que estão falindo ou mesmo no armamento policial, em detrimento da reprodução social da população. Esse processo ocorre, em geral, de maneira concomitante à individualização do trabalho de cuidado na família, pelas mãos das mulheres. É importante notar também que o avanço do Estado de Bem Estar Social nos países europeus só foi possível pela superexploração e precarização da vida em países dependentes.

O segundo caso é o de trabalhadores de serviços de cuidado que não trabalham para empresas, sendo o caso mais emblemático no Brasil o das empregadas domésticas, majoritariamente mulheres negras. Nesse caso também não há mais-valor. Ainda que haja exploração, ela é muito mais parecida com a exploração dos serviçais da aristocracia do que com a exploração capitalista em si, que no caso do Brasil se combina com a herança escravocrata. Esse é um exemplo no qual o capitalismo coexiste e modifica, trazendo o elemento do salário, formas de trabalho anteriores a seu processo hegemônico atual. No caso das empregadas domésticas não há um trabalho excedente, gerador de mais-valor, que será circulado no mercado, ficando todo seu fruto com a família que paga a empregada com renda pessoal. (SAFFIOTI, 1978:191). Apesar de não ser produtiva, a relação do trabalho doméstico remunerado no lar individual de quem as contrata serve também à reprodução capitalista. É através desse trabalho, sustentado em uma estratificação racializada de trabalhadores em diferentes níveis técnicos (GONZALEZ, 1979: 7) que uma parte da população pode se dedicar a certos trabalhos, porque outra parte irá garantir sua reprodução cotidiana e geracional.

O terceiro modo de trabalho de cuidado remunerado é aquele que gera valor, é o trabalho de cuidado oferecido como serviço por empresas privadas que contratam trabalhadores antes independentes. Aqui entram tanto as empresas que vendem comida, como as empresas que vendem trabalho doméstico, quanto as empresas hospitalares, educacionais, etc. Nesse caso há mais-valor, pois a empresa vende um serviço em forma de mercadoria e aquilo que é pago pela mercadoria é utilizado tanto para pagar os salários dos trabalhadores quanto para investir em meios de produção, incluindo mais trabalhadores, no sentido da

reprodução ampliada descrita por Marx (2011:797). É esse trabalho de cuidado, capitalista em si, que vem crescendo cada vez mais.

Podemos então entender a reprodução social como a reprodução do sistema capitalista como todo, incluindo as esferas produtivas e aquelas que, apesar de não gerarem acúmulo direto para o capital, são essenciais para o mesmo. Notamos no entanto que dentro dessas esferas, que podem apenas ser compreendidas de maneira integrada, alguns trabalhos são feitos de maneira desproporcional pelas mulheres. Precisamos atentar então para o processo histórico pelo qual se deu a reprodução social e como ele especificou as mulheres em uma relação de reposição da classe trabalhadora, levando em conta as diferenças de raça, e quais suas implicações.

2.      O processo histórico

O capitalismo foi construído por um longo processo histórico que teve como resultado que as mulheres cumprissem o papel de cuidadoras e reprodutoras – a nível diário e geracional – do trabalho vivo. Apesar das divergências no campo da teoria econômica, Federici (2017), entre outras, teve um trabalho muito importante em demonstrar como o processo de surgimento do capitalismo foi concomitante à degradação social das mulheres. Essa autora demonstra que quando trabalhadores foram separados de seus meios de subsistência, no que Marx chama de acumulação primitiva do capital, as mulheres foram as que mais perderam. O trabalho que antes era exercido por comunidades rurais pré-capitalistas de maneira comunitária, fortalecendo laços sociais, passa a ser exercido ou para o mercado ou para a burguesia e o poder que as mulheres detinham sobre o próprio corpo é desarticulado e criminalizado (FEDERICI, 2017: 181-182).

Ainda que ao longo do tempo tenham havido muitas mudanças na ideologia dominante em relação ao papel das mulheres no campo da reprodução da vida, como demonstra Fraser (2017: 25-26), as mulheres seguiram responsabilizadas por esse trabalho. Isso significa que a cada momento que o capital avança sobre as possibilidades dessa reprodução, as primeiras que sentem seu peso são as mulheres. São as mulheres trabalhadoras, e principalmente as racializadas, aquelas que irão reorganizar a capacidade de consumo da família diante da perda dos salários, aquelas que irão substituir o Estado no que diz respeito ao cuidado de crianças, idosos, doentes, com o avanço da degradação e privatização da educação, da saúde e da assistência social e aquelas que estarão cada vez mais

sobrecarregadas diante do aumento das jornadas de trabalho, as que mais irão chorar diante da morte de mais um jovem negro preso ou assassinado pelos aparelhos repressores e aquelas que desesperadamente tentarão manter suas famílias unidas quando correntes de água invadirem as cidades as deixando sem uma sequer posse material. Esse contexto, por sua vez, deixa-as mais vulneráveis às violências de gênero, seja pela própria falta de recursos ou pela barbárie geral que se instala em uma sociedade mediada pelo medo, impotência e violência.

Diferentes vertentes do feminismo anticapitalista apontam diferentes respostas para a questão do trabalho reprodutivo, ou do trabalho de cuidado. Para Silvia Federici, herdeira do movimento “wages for housework”, coloca-se com força a questão do pagamento do trabalho reprodutivo não remunerado no lar. Para essa autora, se o trabalho reprodutivo é um trabalho produtivo, ele também deveria ser pago em forma de salário pelo Estado (FEDERICI, 2019: 11). Angela Davis (2016: 237) contra-argumenta em Mulher, raça e classe pela industrialização das tarefas domésticas – uma parte do trabalho de cuidado. Se naquela época a autora afirmava que havia um elemento estruturalmente hostil à industrialização do trabalho doméstico, a história mostrou que isso não é verdade e é na realidade uma tendência atual do capitalismo – com o crescimento de empresas que terceirizam esse trabalho. Para Davis (2016: 236), as tarefas domésticas são inerentemente opressoras. Ainda que lavar roupas, ou cuidar da casa, para outros, sem que haja tempo para cuidar de si, possa ser de fato opressor, o problema não é a tarefa em si, mas a relação social que a orienta. Dessa forma, a solução não pode se dar dentro da lógica de produção capitalista. O trabalho reprodutivo – no sentido do feminismo marxista – não precisa ser visto como algo menor ou ruim, se não servir à acumulação de riquezas por poucos. A construção de outra sociedade passa necessariamente pela construção de outra relação com os trabalhos que permitem nossa subsistência e a formação de nossas relações sociais. Para tanto, o trabalho de cuidado não deve ser remunerado, nem industrializado, nem inserido na lógica capitalista, mas socializado e utilizado como propulsor das lutas sociais. Isso significa que as pautas feministas de hoje devem retornar a experiência do feminismo soviético (GOLDMAN, 2017: 1-2) e envolver, além da luta contra ideologias machistas, a luta por creches públicas, restaurantes e lavanderias populares, espaços coletivos de promoção de saúde e, de maneira geral, fortalecer a luta pela reprodução da vida contra a reprodução do capital.

Referências bibliográficas

ARRUZZA, Cinzia. Considerações sobre gênero. Revista Outubro, n. 23, 1º semestre de 2015.

ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: Um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.

BHATTACHARYA, Tithi. How not to skip class: Social reproduction of labor and the global working class. In: BHATTACHARYA, Tithi (org.). Social Reproduction Theory. Londres: Pluto Press, 2017.

DAVIS, Angela. Mulher, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

FEDERICI, Silvia. O Calibã e a bruxa: Mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.

FRASER, Nancy. Crisis of care? On the social reproductive contradictions of contemporary capitalism. In:_BHATTACARHYA, Tithi (org.). Social Reproduction Theory. Londres: Pluto Press, 2017.

GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: Uma abordagem político-econômica. In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (org.). Por um feminismo afro latino americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas de Gênero: Indicadores Sociais      Das                      Mulheres  No                    Brasil.     2018. Disponível em:<https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101551_informativo.pdf> Acesso em 13 mar. 2020.

MARX, Karl. O método da economia política. In: Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.

MARX, Karl. O processo de acumulação do capital. In: O Capital: Livro I. 2a. Ed. São Paulo: Boitempo, 2011.

SAFFIOTI, Heleieth. Emprego doméstico e capitalismo. Rio de Janeiro: Avenir Editora, 1979.


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