O que é ser trotskista no século XXI
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O que é ser trotskista no século XXI

Em memória ao 81º aniversário da morte de Trotsky, republicamos artigo a respeito do legado do pensamento do revolucionário soviético.

Pedro Fuentes 14 ago 2021, 12:51

Estamos no 75º aniversário da sua morte produzida pelo ataque de Mercader, um agente da KGB, sob ordens diretas de Stálin. Muito tempo e muitas coisas ocorreram no mundo desde então. Entre as mais importantes está que seu acirrado inimigo contra quem teve que lutar, Stálin, e o aparato burocrático que ele criou e que se prolongou muitos anos depois de sua morte, também caíram; morreu com as revoluções democráticas que derrubaram o Muro de Berlim e todos os regimes burocráticos herdeiros.

O papel de León Trotsky, a fundação da IV Internacional e do movimento trotskista merecem muito mais que uma nota. Mas não podemos deixar passar esta data porque ela também coincide com um fato notável. Fala-se e conhece-se muito mais de Trotsky nesta última década do que em muitas anteriores. Comenta-se e simpatiza-se com sua figura. Há alguns dias a TV Brasil fez um excelente documentário sobre sua vida, e um livro do cubano Leonardo Padura que toca a tragédia de sua vida em paralelo à de seu assassino, “O homem que amava os cachorros” se converteu em um dos mais comentados nos últimos tempos. Agora que o mundo é movimentado por muitas lutas democráticas, compreende-se melhor sua luta incansável e em condições totalmente desiguais que levou adiante contra Stálin e seu aparelho. Os jovens querem conhecer Trotsky e nós, mais velhos, temos que tentar ajudar para que se entenda o que é ser trotskista hoje.

É indiscutível que Trotsky foi um herói da revolução russa, junto com Lenin, seu outro grande protagonista. Preso muito jovem e logo deportado para a Sibéria, fugiu de lá de trenó, deixando sua primeira companheira e duas filhas. Em 1905 foi presidente e o principal orador do Soviete de Petrogrado. Em 1917 presidiu o Comitê Militar Revolucionário que dirigiu a operação da tomada do poder. Logo, durante a guerra civil, tornou-se o chefe do Exército Vermelho que teve que enfrentar 21 exércitos que invadiram a Rússia e o Exército Branco. Teve a audácia de convocar generais do exército czarista para fazer parte do exército revolucionário. O trem blindado de onde comandava as tropas se converteu em uma lenda viva. Contam os historiadores que Trotsky antes de decidir as operações militares em determinada frente reunia-se com as células do Partido Bolchevique dessas cidades.

Em 1923, com Lenin já gravemente doente e terminada a guerra civil, Trotsky pediu para ir à Alemanha para colaborar com o Partido Comunista na direção da revolução. Era sabido que este partido novo não havia passado pela forja de Lenin, nem tinha uma direção e quadros experientes, ainda mais inexperientes com a morte de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Nos anos de plena efervescência da revolução – de 1919 a 1923 – o partido alemão perdeu três grandes oportunidades de tomar o poder, o que teria mudado a história mundial. Mas o triunvirato que dirigia, Stálin com Kamenev e Zinoviev, não aceitou; o perigo de perder o aparato que ia construindo, no caso de Stalin, e os ciúmes de prestígio de Kamenev e Zinoviev, seguramente motivavam a decisão do triunvirato. Pensar que Trotsky – que tinha se somado ao Partido Bolchevique ainda em 17 de abril – poderia voltar à Rússia como o novo herói da revolução alemã, era o que estava por trás da negativa de todos eles.

Não podemos, em poucas linhas, deter-nos em sua história de militante apaixonado, brilhante orador e escritor. Existem historiadores como Isaac Deutscher que o fizeram muito bem. É importante ler seus livros para conhecer Trotsky, bem como as obras mais importantes do revolucionário russo. Fez aportes imprescindíveis para incorporar à política revolucionária e manter vivo o programa revolucionário logo depois da morte de Lenin e da degeneração da III Internacional.

“A Revolução Traída” (1937), no qual Trotsky explica a degeneração do estado operário soviético e faz o prognóstico alternativo que foi corroborado pela realidade posterior: ou uma nova revolução, desta vez política para derrotar o aparato burocrático do estado, ou a dinâmica até a restauração capitalista, muito provavelmente conduzida por esta própria burocracia. O conceito de revolução política que nasceu de Trotsky é uma ferramenta imprescindível para entender muitas das revoluções que aconteceram no século XX e XXI, e vão continuar acontecendo, ou seja, revoluções que mudam o regime político e não o estado e o sistema, ou seja, o modo de produção.

“Revolução e contrarrevolução na Alemanha” (1931) , obra mestra para compreender o caráter instável ou oscilante da pequena burguesia, seu desespero como base do fascismo; traz a definição do fascismo, assim como a política da frente única para derrotá-lo. A Alemanha foi, junto com a Rússia, o palco fundamental da polêmica com Stálin e, uma vez mais, como havia acontecido na Rússia, faltou a Trotsky contar com uma grande corrente, um partido ou organização de militantes revolucionários para poder impulsionar esta linha e derrotar o nefasto ultra esquerdismo do terceiro período de Stálin. Depois da Alemanha, Trotsky compreendeu que a III estava totalmente degenerada e começou os passos para a fundação de uma nova Internacional.

“ O Programa de Transição” (1938) que foi a base para construir a IV Internacional (e seu antecessor, o Programa de urgência para a Europa), peça fundamental – sempre que não for retirado do contexto e do momento histórico em que foi escrito – antes da segunda guerra mundial. / Não se trata de repetir suas caracterizações, seus prognósticos e consignas como fazem muitos grupos trotskistas, mas, como dizia Moreno, pegar sua essência: sua estrutura e seu método transitório de ligação entre as orientações de transição e as máximas, ou seja, a ruptura com o regime e o sistema.

A teoria da revolução permanente (1929) à qual o programa de transição está vinculado como método para levar adiante a mobilização permanente das massas. Tem duas formulações, a de 1905 e a de 1927, esta última de forma mais acabada descreve a utopia da doutrina stalinista do “socialismo em um só país”. É uma contribuição decisiva para compreender a combinação de tarefas democráticas com as socialistas nos países de desenvolvimento burguês atrasado. Esta teoria foi transformada em um programa por Trotsky e o trotskismo. Neste sentido, tem pontos fracos, demonstrou ser muito normativo e por isso suas formulações, se forem usadas esquematicamente, não permitem compreender a realidade das revoluções do pós-guerra e a dinâmica de muitos fenômenos novos que ocorrem agora. Como dizia Moreno em seu texto citado, a primeira condição de um trotskista é ser crítico inclusive ao próprio Trotsky, já que a realidades sempre é mais rica que a teoria. Sem dúvida, em sua essência mais profunda, o caráter internacional da revolução (ponto em que não diferia de Lenin, nem da Rosa Luxemburgo), foi Trotsky que teve que formular em sua luta contra a nefasta teoria stalinista do “socialismo de um só país”, na realidade, tragicamente pela negativa, corroborado pelo colapso do chamado “socialismo real”. No texto já citado, Moreno diz que “o trotskismo é o único consequente com a realidade mundial quando um grupo de multinacionais dominam o mundo, a este fenômeno sócio econômico é necessário responder com uma política internacional”. E por isso a necessidade de retomar, contra as ideias nacionalistas, a concepção internacionalista, já que o socialismo será mundial ou não será.

A lei do desenvolvimento desigual e combinado que deveríamos também incorporar como uma contribuição fundamental da dialética marxista. Trotsky elaborou esta lei a partir da análise da Rússia, e ela foi a base da teoria da revolução permanente. A interpretação dominante até então era que os países atrasados deveriam seguir o caminho dos mais adiantados, e então passar por uma revolução burguesa para cumprir uma etapa de desenvolvimento burguês, para então se buscar uma revolução socialista. Trotsky deduziu que na etapa do imperialismo não era assim, já que o capitalismo converteu o mundo inteiro em um só organismo, pelo que os países atrasados se veem obrigados a pular etapas, e que portanto havia uma combinação. No caso da Rússia a formação econômica social feudal do campo se combina com o desenvolvimento da grande indústria capitalista.

“O privilégio dos países historicamente defasados – que realmente o são – está em poder assimilar as coisas, ou melhor dizendo, em obrigar-se a assimilar antes do prazo previsto, saltando por cima de toda uma série de etapas intermediárias”.

Os trotskistas George Novack e Nahuel Moreno têm o mérito de ter desenvolvido esta lei de Trotsky em seus escritos sobre Lógica Marxista. Para ambos, a lei de Trotsky é a lei mais geral que explica não apenas o desenvolvimento histórico mas também a origem do novo. Moreno em seu ensaio “Lógica Marxista e Ciências Modernas” esboça que é a lei mais importante para compreender todos os fenômenos novos e a relação entre a gênese (ou seja o movimento) e estrutura.

É impossível compreender nenhum dos processos do desenvolvimento do capitalismo nesta nova fase se não for a partir da lei do desenvolvimento desigual e combinado, como tão pouco nenhum fenômeno político que ocorra no sistema-mundo e sua fase imperialista da mundialização neoliberal, onde dominam as desigualdades e suas diferentes combinações.

Perguntas difíceis, mas que devemos responder

Chegado a este ponto, surgem algumas perguntas, sobretudo na juventude e na esquerda que se separa do reformismo. Se o trotskismo é a corrente revolucionária em continuação ao leninismo, por que teve pouca incidência nas revoluções ocorridas depois da russa? E se tem uma teoria e programa essencialmente corretos, por que existem tantas divisões no movimento trotskista? A verdade é que ambas são difíceis de responder.

É muito necessária esta resposta para aprender com nossos erros. Se tem algo que precisamos destacar no mundo é que, diferente de outras épocas das quais a falaremos a seguir, nós trotskistas estamos atuando muito. Estamos presentes na Grécia em Syriza, na Espanha em Podemos e outras formações. Nos EUA, o trotskismo tem uma vereadora em uma grande cidade como Seattle e setores fazem parte da campanha de Bernie Sanders. Há trotskistas atuando na África do Sul, na Turquia, na Bielorrússia e muitos outros países do leste europeu e da Rússia. Aqui no Brasil, somos muitos no PSOL, na Argentina é praticamente toda a esquerda. O mesmo ocorre no Peru e na Venezuela, só para falar de alguns lugares.

Leninismo e trotskismo

Uma primeira passo para tentar opinar sobre tais perguntas é inserir num contexto geral, dar um parâmetro à afirmação de que o trotskismo é a continuidade do leninismo. Isto é algo indispensável que muitos trotskistas ou simpatizantes da causa levem em conta. É verdade que Trotsky é um continuador de Lenin, e pode ser também que em alguma das tantas polêmicas que teve com Lenin tivesse razão em algumas. Mas como bem explica Roberto Robaina em seu folheto “Notas à teoria de Lenin sobre a revolução de 1905”, no capítulo “Trotskismo e leninismo”, há um conceito importante que é parte da elaboração que nossa corrente MES vem fazendo desde os finais dos anos 90. Trotsky é um continuador em um contexto mundial diferente, marcado pelo triunfo da contrarrevolução na Rússia. (Ver também “O Internacionalismo e a construção de uma organização internacional”) / . Neste sentido o trotskismo foi um movimento mais defensivo e, portanto, mais parcial, menos universal que o leninismo.

Lukács em seu livro escrito quando jovem, diz que “Lenin é o formulador da teoria geral da revolução” e o via na dimensão teórica, programática e concreta da mesma. Ou seja, graças a esta compreensão foi capaz de levar a teoria ao concreto e à ação e, também por isso, construir o partido bolchevique. Trotsky também terminou vendo-o assim, e daí sua leal entrada ao partido bolchevique como mostra também Roberto no texto citado. Moreno considerava também que Lenin e todas as elaborações da III Internacional eram mais universais, e creio que o mesmo se poderia dizer de Daniel Bensaïd lendo seus trabalhos sobre Lenin.

Nahuel Moreno sempre comentava em seus cursos que o pensamento de Lenin era de uma totalização mais aberta e portanto também mais concreta. Quando se discutia em seus cursos a revolução permanente, Moreno dizia que a formula algébrica de Lenin “ditadura democrática de trabalhadores do campo” resultou historicamente mais real que a de Trotsky que subordinava (para todo momento e lugar) o campesinato à direção trabalhadora. E que Trotsky tinha uma tendência à generalizações teóricas e formulações de leis que terminavam sendo mais esquemáticas, como foi demonstrado na revolução chinesa.

No texto citado, Roberto afirma que parte dos militantes trotskistas, ao considerar Trotsky como o continuador de Lenin, “dão por entendido que a formulação revolucionária se faz essencialmente estudando e seguindo o que Trotsky escreveu, esquecendo-se de Lenin e suas obras”.

Trotsky cumpriu um papel histórico como continuador de Lenin. Não haveria hoje revolucionários internacionalistas sem Trotsky, que defendeu e sustentou o legado do programa revolucionário (não houve outro que o fizesse independente de seus aportes; Gramsci não o fez, por exemplo), e tem o grande mérito de construir uma organização, a IV internacional, para defendê-la, uma bandeira sem máculas. Mas o fez em uma situação defensiva.

O auge do stalinismo encurralou o trotskismo numa tarefa essencialmente de defesa do programa

Trotsky apostava que a situação revolucionária que se abriria com a segunda guerra mundial iria permitir que a IV Internacional se transformasse em uma organização de massas como foi a terceira depois da primeira guerra mundial. (Ver ‘O internacionalismo e a construção de uma organização internacional’) Mas a realidade não foi assim. O stalinismo, que foi quem levou adiante a derrota do fascismo, saiu deste período com muito prestigio sobre os trabalhadores em todo mundo, e as revoluções que ocorreram no pós-guerra terminaram sendo controladas na política de coexistência pacífica surgida dos acordos de Yalta e Postdam e da divisão do mundo em zonas de influência entre Stalin, Churchill e Roosevelt.

Os revolucionários que seguiam Trotsky já tinham sido enfraquecidos com a perseguição encarniçada que fez o stalinismo antes da guerra. Stalin assassinou 90% do velho Comité Central Bolchevique e suas mortes alcançaram dezenas de milhares. Dez milhões morreram na Rússia sob a ditadura stalinista. A morte não chegou apenas a Trotsky, mas antes tinha também dizimado a sua família. Na luta contra o fascismo, o trotskismo perdeu também uma grande quantidade de militantes, entre eles o brilhante Abraham León, dirigente em Varsóvia. No Vietnã, onde o trotskismo era forte, seu dirigente Ta Thu Thâu foi assassinado pelo Partido Comunista do Vietnã, sob a influência de Stalin. O mesmo aconteceu na China.

A IV, como lembrava Mandel na nota enviada ao MAS, quando da morte de Moreno, dizia que “ele (Moreno) tinha defendido o programa em momentos difíceis” e isso é extensivo a esta geração dos anos 40, como a outras que seguiram e se formaram neste meio.

Daí que ante o auge stalinista, tanto a IV como as organizações e partidos trotskistas que continuaram reivindicando-a e sendo parte dela, foram essencialmente de propaganda e defensivas. Isto significou também que nos últimos anos de sua vida Trotsky contou apenas com punhados de seguidores nos diferentes países, salvo possivelmente nos EUA com o SWP.

Muitos de seus escritos deste período, onde coloca suas opiniões para fortalecer seus grupos, estão influenciados por esta realidade. Em relação à revolução espanhola por exemplo, Trotsky escreveu textos brilhantes sobre a importância das reivindicações democráticas, mas se equivocou ao desqualificar aquele que era seu principal seguidor e principal dirigente, Andrés Nin, e fazer críticas fora de contexto quando este fundou o POUM com Maurin. Existem também outros debates exageradamente fracionários em todo este período sobretudo que teve que remar contra a corrente e intervir ante as disputas internas como as do trotskismo francês.

Existem dois temas que merecem um estudo especial e que neste texto só poderemos enunciar e que se referem ao defeito, já citado por Roberto Robaina, sobre a questão de levar em conta apenas as obras de Trotsky e, inclusive, tirá-las de seu contexto. Um deles são seus escritos sobre a França , onde Trotsky mais desenvolve a análise da política posterior ao terceiro período de Stálin das Frentes Populares. Nestes escritos Trotsky é brilhante em sua análise do bonapartismo e o protofascismo, das milícias armadas da direita e da polícia da autodefesa trabalhadora para combatê-las. Trotsky, corretamente oposto à Frente Popular, ou seja, ao governo dos partidos de esquerda com setores da burguesia, inclusive chegou a sugerir, em algum momento, fazer os comitês de ação popular pela base. Sem dúvida, em suas análises de todo este período, repetia a mesma política dos sovietes que se desenvolveu na Rússia.

Em relação à Catalunha também é discutível a crítica a Nin, quando o POUM entrou no governo (e logo saiu) já que não levava em conta, no caso da Espanha, a guerra civil que dividia o país. Cremos, modestamente, que perdeu de vista a análise concreta da situação concreta.

Muitos trotskistas latino-americanos também confundiram os governos anti-imperialistas radicais com a Frente Popular que existiu nos países adiantados. Assim, caracterizaram incorretamente o governo de Allende no Chile, esquecendo então que este governo era muito mais uma frente única anti-imperialista com traços kerenkistas, e o mesmo aconteceu com os governos bolivarianos.

Propaganda e política

Os seguidores de Trotsky que continuaram a histórica tarefa de construir a IV Internacional viveram uma situação similar. Nos anos difíceis aos que se refere Mandel, tiveram que enfrentar uma série de pressões que terminaram dividindo a IV Internacional.

Ante à enorme pressão do reformismo e do stalinismo das décadas posteriores a Trotsky, o trotskismo se fez essencialmente na defesa do programa, foi inexperiente e cedeu a pressões na hora de fazer política. É sabido que a política não se faz com o programa. O programa parte das necessidades sugeridas pelas massas em determinada etapa ou período e as organiza em relação às necessidades históricas, ou seja, à luta pelo socialismo neste período. Enquanto a política tem que responder às necessidades presentes, partindo da correlação concreta de forças que há entre as classes sociais neste momento, ou seja, se faz baseada em uma análise dos elementos presentes, que leva a uma caracterização concreta e dinâmica para, a partir desta, fazer a política que mobilize as massas por suas reivindicações, tentando que neste processo mudem as condições e haja um avanço em sua consciência, para que façam a experiência com o governo e seu regime político.

Fazer política com o programa é o que leva ao propagandismo, uma tendência que herdamos dos trotskistas. Daí também que quando muitos grupos trotskistas fazem política, se baseiam na busca da diferenciação programática com o centrismo ou o reformismo, e não na disputa da melhor política para mobilizar os trabalhadores.

Partido, fração ou seita: A concepção de partido de Lenin

Uma das bases para que tantas divisões ocorressem estão bem explicadas em um artigo de John Ross, um trotskista inglês, em seu trabalho: Partido ou Fração/Seita, no qual reivindica o critério de partido de Lenin frente aos “partidos facções”.

Contra a ideia bastante generalizada no trotskismo de que Lenin desde 1903 dividiu a socialdemocracia russa em dois partidos (bolcheviques e mencheviques), Ross demonstra que Lenin era uma fração da social democracia com a qual se reunificou organicamente em 1906, e se conservou como parte do partido socialdemocrata que existiu com suas diferentes alas, Trotsky inclusive era uma delas, até 1914, quando começa o novo auge revolucionário. Ou seja, que o leninismo existiu como parte da socialdemocracia e posteriormente a partir de 1914 como partido bolchevique. Para o leninismo, o partido se sustentava sobre a base do programa geral e em suas normas organizativas, estes eram e devem ser os critérios de partido e não a política. Logicamente este programa mudou no período revolucionário e sobre a base dessa nova situação se produziu a ruptura.

Este critério de partido é que permite que haja diferenças políticas em seu interior, e que estas se discutam democraticamente, inclusive de forma pública. Assim ocorreu no partido bolchevique.

Contra a ideia do hegemonismo ou totalitarismo que as correntes luxemburguistas ou espontaneistas atribuem ao leninismo, o partido bolchevique foi um partido de disputa permanente de posições políticas, de tendências e correntes de opinião. Lembremos as diferenças públicas entre Stalin e a maioria do CC do partido com Lenin em março de 1917 sobre apoiar ou não o governo menchevique, e posteriormente com Zinoviev e Kamenev sobre a tomada do poder. O bolchevismo foi um exemplo de democracia com tendências e correntes de opinião públicas. Foi o comunismo de guerra que obrigou a um regime mais estrito e a suprimir as tendências e facções.

Estes critérios do partido – programa geral e normas de organização – somado à inserção dos trabalhadores, foram transformados em seu contrário por Stálin, dito de maneira direta em um aparelho burocrático que terminou sendo contrarrevolucionário. Mas também foram deformados por correntes revolucionárias e pelo movimento trotskista. A etapa defensiva, de propaganda, de certo isolamento das massas, fez que primassem pelo caráter e os hábitos de fração aos de partido.

Uma fração ou tendência se organiza ao redor de uma luta política determinada e, portanto, requer e tem uma alta homogeneidade política. Mas essa homogeneidade política é difícil de conservar porque a política é dinâmica, muda e sempre existem diferenças, matizes, choques de opiniões. Daí que esse critério de partido fração com o qual se construíram numerosos grupos trotskistas leve às divisões por qualquer diferença política que rompem a unidade estabelecida. Definitivamente ocorre porque se perderam os verdadeiros critérios de partido: suas normas de organização e seu programa.

Ao mesmo tempo, para que essa unidade política se sustente, é necessário que o mesmo regime interno seja de uma disciplina estrita, necessário para acatar essa política. Por isso o partido fração deixa de ser um organismo vivo no qual a política se nutre da discussão sadia dos militantes em organismos, em um contato direto sadio entre a base e a direção. Falamos de organismos de base intimamente vinculados e inseridos em uma base social que seja receptiva às necessidades dela, e de organismos de direção em estreito contato com seus militantes e seus organismos para fazer uma interação que permita procurar a melhor política e a unidade de ação para aplicá-la. Ao contrário, os partidos facções terminam tendo direções com traços aparatistas. Da fração à seita há um passo; essa política se transforma em um dogma que se repete e repete. E os laços políticos sadios da militância partidária são substituídos por laços criados ao redor da fé na política transformada em dogma.

Este tem sido um problema que arrasta o trotskismo e explica também, muitas vezes, as divisões. Cremos que na corrente morenista que nós reivindicamos não temos sido alheios a isto, daí a importância de reconhecê-lo para não repeti-lo.

O que é ser trotskista hoje? (tema inconcluso)

Responder esta pregunta nos leva, em primeiro lugar, a afirmar a mesma resposta que Moreno deu em 1986, a qual é compartilhada por outros revolucionários de sua geração como Ernest Mandel.

“ (…) em primeiro lugar, ser trotskista significa ser crítico inclusive ao próprio trotskismo”.

“Ser trotskista hoje não significa estar de acordo com tudo o que foi escrito ou disse Trotsky, senão fazer-lhe as críticas para superá-lo” (…) “O marxismo pretende ser científico e a ciência ensina que não existem verdades absolutas.”

Compreender que estamos ante um novo período histórico que nos tem colocado novas tarefas e novos desafios que só podemos compreender tendo uma visão internacionalista

A caracterização deste novo período é um tema aberto, cheio de incertezas. O século XXI nos trouxe um novo período histórico muito complexo, talvez seja o período mais difícil para ser explicado pelos leninistas trotskistas, embora tenhamos boas ferramentas para fazê-lo: a radiografia essencial do capitalismo que nos deixou Marx, a teoria revolucionária de Lenin, Trotsky e os novos marxistas que tem surgido, em particular as elaborações trazidas por muitos trotskistas formados na década de 60.

Mais que em nenhum outro período, a nova realidade responde à lei do desenvolvimento desigual e combinado. Vivemos em um período de decadência do sistema e da maior crise do capitalismo; dizemos a maior porque é na qual se reúnem mais elementos sistêmicos, onde se apresentam diferentes crises (económica, ambiental, política, social) em meio a uma nova fase do imperialismo que podemos chamar da “mundialização neoliberal”, na qual se tem produzido a maior concentração de capital em mãos de grandes corporações, onde também se tem produzido o mais alto grau de financeirização do mesmo e a maior e mais aguda desigualdade.

Neste período ocorreu o fim do chamado “socialismo real”, que significou também o fim do stalinismo como aparato mundial, do qual já falamos sobre o papel de freio que cumpria. Foram revoluções democráticas quer terminaram com as ditaduras burocráticas mas que não abriram o caminho até um socialismo com democracia, senão à restauração do capitalismo.

A crise do capitalismo, de seu domínio e de seus regimes tem degenerado as conquistas de liberdades democráticas das próprias revoluções burguesas. A democracia burguesa e suas instituições tem convertido os partidos políticos do regime em agentes do grande capital dominante, das grandes corporações e dos bancos. Nos partidos políticos do regime surgiu uma casta política que atua como classe burguesa sui-generis, unida organicamente a essa neo-oligarquia mundial participando de seus benefícios, o que tem dado lugar a um período onde a corrupção permanente se transformou em uma forma de “gerenciar” o estado.

Ser internacionalista hoje é defender a bandeira sem máculas da IV Internacional e, ao mesmo tempo, lutar por uma nova internacional onde, como dizia seu criador, os trotskistas sejamos minoria. Isto significa uma nova organização internacional na qual se possa organizar todos os internacionalistas que necessitam unir-se para enfrentar o imperialismo e as grandes corporações donas do grande capital.

A grande contradição deste momento histórico é que vivemos uma grande desigualdade (mais que desigualdade, é uma contradição) entre a crise global do capitalismo e a ausência de um modelo alternativo de sociedade, uma ausência ideológica de um novo paradigma provocado pelo fracasso do “socialismo real”.

Ao mesmo tempo, esta nova fase da mundialização neoliberal terminou com a desigualdade norte/sul (não no sentido de países imperialistas e países dependentes que se aprofundou), mas no terreno social; a pobreza deixou de ser propriedade dos países atrasados para expandir-se em todo o mundo, basta ver o nível de pobreza nos EUA. Ser internacionalista hoje é confiar também na classe operária e os setores explorados dos países mais adiantados como destacamentos insubstituíveis para derrotar o capitalismo e terminar com a exploração a nível mundial.

Estar na primeira fila nas mobilizações dos trabalhadores e todos os setores explorados e oprimidos, especialmente da juventude, sem deixar de confiar nos trabalhadores como o sujeito social principal da revolução.

Os trabalhadores e os povos não deixaram de lutar. Neste novo período ocorreram as revoluções árabes que logo evoluíram, e os grandes levantes populares e juvenis dos indignados, grandes mobilizações democráticas populares que seguem se espalhando, reclamando democracia real, enfrentando a corrupção, lutando por mais direitos, enfrentando o capitalismo. Assim sendo, sem um programa anticapitalista acabado, as massas estão longe de ser derrotadas. É só rever o que ocorre nestes dias (Guatemala, Honduras, Índia, Indonésia…). Não somos de opinião de que haja uma ofensiva da direita em escala mundial.

É um período onde ao sujeito social revolucionário da classe trabalhadora se somam numerosos novos setores da classe média despojada dos direitos democráticos e, por sua vez, relativamente empobrecida pela minoria que domina a economia mundial. Onde também se mobilizam por seus direitos e logram conquistas setores oprimidos, em primeiro lugar as mulheres, em sua luta por liberdade e igualdade de direitos, os negros que são os setores mais explorados em numerosos países e a comunidade LGBT.

Temos que reconhecer que a mundialização do capital tem permitido ao capitalismo mundializar a produção das multinacionais, fazendo cadeia de produção em diferentes países, criando um exército mundial de reserva e, desta maneira, fragmentando também a nossa classe que não pode responder com uma organização a nível mundial. A precarização do trabalho também é um problema. Esta situação tem levado marxistas a posições pós-modernistas que negam as classes e os sujeitos sociais. Sem dúvida, a classe trabalhadora cresce em número, e seguirá representando o papel estratégico principal para a derrota do capital.

Ser parte dos novos processos políticos e construí-los lealmente sem ocultar por isso nossas ideias e nosso programa, mas construindo-os essencialmente baseado em uma política de ruptura com o capitalismo.

Da crise que não para e das mobilizações e, em particular, dos indignados, tem se nutrido também novos processos políticos que de forma intermediária, no entanto, assumem posições confrontadas com a globalização neoliberal. Syriza na Grécia, Podemos na Espanha e as plataformas de unidade com movimentos sociais em Madri e Catalunha, o PSOL no Brasil, à que também se tem que somar a revitalização de esquerda no trabalhismo inglês e o fenômeno de Bernie Sanders, candidato independente socialista nas primárias do Partido Democrático.
Adiantando-se a este processo tivemos o surgimento do bolivarianismo em países latino-americanos. Precisamente estes foram uma experiência e uma prova que tivemos que fazer os trotskistas latino-americanos. Contra o propagandismo que fechou a porta a este processo de nacionalismo radical progressivo, o que terminou isolando-os deles mesmos e das massas, fomos os que intervimos nos mesmos com a linha da frente única anti-imperialista.

O processo de esgotamento dos mesmos por seu processo de aburguesamento e burocratização é o que nos permite agora disputar as massas para levantar suas bandeiras progressistas e construir novas alternativas. Algo similar ao que agora ocorre com Syriza e a Plataforma de Esquerda.

Ser trotskista significa ter o leninismo como a base metodológica mais consciente e provada para a formação dos quadros revolucionários.

A crise ideológica que vivem as massas tem sido campo fecundo para o desenvolvimento de ideias pós-modernistas e a teorização equivocada do horizontalismo, o neo-anarquismo em setores de vanguarda e em especial na juventude. O movimento trotskista é o que melhor resistiu e resiste a estas pressões ainda que, como já o dizíamos neste texto, tendo setores que o fazem com respostas propagandistas ou de sectarismo. Lenin sustentava que as formas de organização mudam de acordo ao período da luta de classes, mas nem por isso deixava de sustentar princípios centrais sobre os quais já falamos neste texto. Esses pilares são os que tem que nos dar a confiança para saber, como Lenin, adaptar a organização do partido aos determinados momentos da luta de classes.

Um aspecto importante da luta de Lenin e Trotsky foi o combate ao terrorismo individual, o qual consideravam uma forma negativa e distorcida da luta de classes que favorecia definitivamente à repressão e, por outro lado, substituía o papel dos trabalhadores e seus aliados. Ambos não o faziam de uma posição pacifista, já que ambos defendiam a necessidade da luta armada como método de luta para enfrentar ao estado burguês. É importante retomar esta tradição e suas consequências já que são novamente um elemento da realidade. No Brasil apareceu de maneira incipiente através das ações de black blocks, mas no mundo árabe e islâmico são uma realidade que não apenas atua nesses países em organizações reacionárias e retrógradas como o Estado Islâmico e Al Queda, mas que estendem seus braços até a Europa, onde uma juventude de origem islâmica se soma a estas organizações. A formação no leninismo-trotskismo é o que nos permite combater politicamente estes setores e afastar os setores de vanguarda desta concepção extremamente equivocada.

Formular um programa de transição que incorpore as novas tarefas e em particular as tarefas democráticas, levando em conta a nova relação que existe entre a democracia e o anticapitalismo neste período.

Esta nova fase da mundialização neoliberal, que definitivamente colocou as contradições e a crise do capitalismo a olhos vivos, colocou também uma importante quantidade de novas reivindicações e novas tarefas que sempre tem estado presentes mas que agora são contradições muito mais notáveis.

Uma primeira e talvez mais importante questão seja a que o movimento dos indignados tem denominado como “democracia real”, que contém uma crítica frontal aos atuais regimes políticos da “democracia” burguesa para os 1%. O tema de sustentar uma reforma política radical de participação popular e de novas assembleias constituintes soberanas que reorganizem o país sobre outras bases igualitárias se transformou em uma consigna relevante que surge como uma necessidade na medida que aparecem as fortes crises políticas vinculadas também à corrupção em numerosos países. No sentido de consigna de democracia real ou ‘democracia para todos’ vai tomando um caráter mais transicional, deixa de ser a bandeira com a qual a burguesia dominou o movimento de massas para começar a voltar-se contra ela neste novo período histórico.

Está também como uma tarefa presente a questão ecológica, de caráter anticapitalista já que o capitalismo não pode resolver. Frente ao extrativismo como prática das grandes multinacionais do imperialismo há uma resistência campesina e popular em todo o altiplano e os Andes latino-americanos. O mundo vai tomando consciência dos perigos que representa para a humanidade o ataque à natureza e o aquecimento global.

O título deste capítulo diz que o tema está inconcluso e é assim que está. É uma tarefa que precisa de muitas cabeças, muitas organizações e muitas mãos para ser formulada. É um desafio a mais que colocamos nós, os revolucionários.


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Autores

Pedro Micussi