A Frente Única peruana e as distorções da tática no Brasil

A Frente Única peruana e as distorções da tática no Brasil

Análise sobre a tática da frente única no Peru e Brasil.

Bruno Magalhães 12 nov 2021, 18:25

“(…)a questão da frente única, tanto por sua origem como por sua essência, não é em absoluto uma questão sobre as relações entre as frações parlamentares comunista e socialista, entre os comitês centrais de um partido e outro.” 

(“Sobre a Frente Única”, Leon Trotsky, 1922) 

Há poucos meses tivemos intensos debate sobre a tática da frente única em meio às atividades preparatórias do VIIº Congresso do PSOL, notadamente com contribuições do Movimento Esquerda Socialista (MES) e da Resistência[1]. 

Quase ao mesmo tempo, o Peru passou pelo processo de eleição do professor Pedro Castillo e pela luta para garantir sua posse contra as pressões da direita sobre a justiça eleitoral do país. Aqui também a aplicação da tática da frente única esteve em debate e levou à formação da Frente Nacional em Defesa da Democracia e Governabilidade (FNDG), um espaço unitário das organizações sociais e políticas construída com o objetivo de defender o governo recém-eleito das tentativas de golpe e, ao mesmo tempo, lutar por uma agenda de mudanças estruturais agrupadas ao redor da consigna de nova Constituição.

A comparação dos dois processos nacionais é extremamente útil para identificar as dificuldades e potencialidades na aplicação desta tática. Apesar das grandes diferenças nas conjunturas dos dois países, a perspectiva internacionalista das situações nacionais é obrigatória aos marxistas e nos permite identificar similaridades e tendências em comum que enriquecem o debate. 

Nossa premissa parte da compreensão de um cenário internacional marcado pela crise capitalista multidimensional e da profunda polarização política que decorre dela. Do outro lado do debate congressual do PSOL identificamos posições mecanicistas que negaram a polarização política e as crises intraburguesas, desenvolvendo caracterizações impressionistas, expressas em termos como “inverno siberiano” ou “onda conservadora”, que contribuíram para a confusão política e para a distorção da tática da frente única no Brasil. 

A frente única peruana

O desenvolvimento da crise política peruana teve a surpreendente vitória de Pedro Castillo como resultado mais recente[2], mas também desencadeou um processo desde baixo que hoje se materializa na FNDG. A Frente se construiu com o objetivo inicial de garantir o resultado das eleições, mas sua formação também esteve diretamente ligada a um conjunto de mudanças almejadas pela maioria da população cujo centro programático está na nova Constituição. Temas urgentes da realidade peruana como a valorização do trabalho, a nacionalização dos recursos naturais, o acesso à serviços públicos de qualidade, a luta contra a corrupção e até mesmo o enfrentamento da pandemia estão diretamente ligados à necessidade de mudança do aparato legal fujimorista que impõe uma série de barreiras contra os avanços sociais.

A defesa da governabilidade de Castillo surge como uma primeira tarefa imediata, como uma pauta defensiva para garantir a vitória democrática representada pelo novo governo. Entretanto, a defesa da governabilidade está totalmente ligada ao conjunto de outros objetivos e só faz sentido na medida que o governo seja ferramenta para o avanço rumo à nova Constituição e às profundas mudanças que desencadearia. O elemento programático e a combinação indissociável entre tarefas defensivas e ofensivas estão no centro da tática da frente única no Peru.

Outro elemento importante na formação da FNDG é sua busca por capilaridade através da construção de comitês locais, combinando grupos políticos, movimentos sociais e ativistas independentes na organização territorial da luta pelos objetivos da Frente. Ainda que existam grandes disparidades entre os diversos comitês locais, esta característica dá fôlego para a construção da Frente e pode aprofundar sua democracia interna na medida que estes organismos não sejam somente reprodutores locais de políticas nacionais, mas também partes atuantes na construção geral da FNDG e de sua formulação. Como dito acima, não se trata de uma iniciativa apenas de defesa do governo, e sim uma ferramenta das bases para servir de contrapeso a um governo acossado por  pressões institucionais e que já esboça políticas de conciliação. 

Estas diversas características progressivas da FNDG também enfrentam uma série de contradições. O cansaço provocado pela intensa jornada logo após a eleição é um elemento de esvaziamento de seus espaços, e hoje a Frente enfrenta um refluxo momentâneo que representa um perigo para sua existência. Da mesma forma, a política sectária de Vladimir Cerrón e seu setor dentro do Perú Libre também contribui para a desmobilização ao desenvolver iniciativas autoproclamatórias paralelas que disputam espaço com a Frente e rompem com a unidade em escala nacional. A recente declaração de ruptura do Perú Libre com a FNDG foi um grande revés, mas é interessante notar que em muitos distritos esta posição não foi acompanhada por bases do partido que continuam mantendo relações de unidade com o Nuevo Perú e outras organizações da esquerda.

O novo gabinete apresentado por Castillo (chefiado por Mirtha Vásquez) foi montado como resposta ao perigo permanente da vacância presidencial e com certeza representa uma sinalização rumo à moderação, obrigando a esquerda a estar em alerta permanente sobre os próximos passos do governo. Mas a atitude impensável do grupo parlamentar de  Cerrón, que votou junto com o fujimorismo e a extrema-direita de López Aliaga contra o novo gabinete, sinalizou uma orientação estratégica equivocada que vai na contramão da unidade necessária para impor a agenda de transformações. No mesmo sentido está a coleta paralela de assinaturas para o plebiscito da nova Constituição, ação promovida pelo Perú Libre que objetivamente sabota os esforços unitários e pode por em cheque o próprio plescibito.      

O impasse do governo Castillo só pode ser resolvido através do aumento da pressão popular por mudanças sociais, e nesse sentido a FNDG é um espaço privilegiado para avançar porque nenhuma organização política conseguirá levar sozinha este programa adiante. O compasso de espera político e as recentes movimentações contrárias à FNDG a colocam hoje em uma situação difícil, mas já existem novas articulações que buscam sua reorganização e o aprofundamento de sua atividade. Para fazer frente aos enormes desafios colocados para a classe trabalhadora, a construção da unidade nas bases a partir de uma plataforma programática clara é a única saída.    

A esta questão se combina também a necessidade permanente da unidade de ação com outros setores políticos frente ao golpismo. Agrupamentos como o Partido Morado e outros setores representantes da pequena burguesia não sustentam um programa de grandes transformações sociais, mas podem ser aliados táticos importantes na resistência democrática ao fujimorismo e à extrema-direita, atrapalhando os planos de vacância presidencial ainda que também pressionem o governo para um caminho mais moderado. A combinação entre a construção da frente única e a unidade de ação mais ampla, realizada de forma pontual a partir das situações conjunturais, é chave para o desenvolvimento do processo político no país.    

Os simulacros na vanguarda brasileira  

Enquanto isso, no Brasil, presenciamos uma série de distorções da tática da frente única. Estas distorções culminaram no último Congresso do PSOL, no qual os campos PSOL Popular e PSOL Semente se utilizaram nominalmente da tática da frente única para aplicar uma política de aderência às direções burocráticas do movimento de massas, trocando as tarefas de exigência e denúncia imprescidíveis ao chamado da unidade pela apologia eleitoral da futura candidatura de Lula. Desta forma, praticamente sem nenhuma diferenciação da direção petista, estes setores acabaram por justificar a posição desmobilizadora das direções burocráticas em função de uma saída exclusivamente eleitoral  para o problema da extrema-direita.

Enquanto Bolsonaro se enfraquecia por defecções em suas bases da apoio, e como consequência se aproximava cada vez mais da direita fisiológica, setores honestos de esquerda simplesmente aceitaram a desmobilização proposta pela burocracia petista à serviço exclusivamente dos interesses eleitorais de Lula. Na forma declaravam-se pela unidade com independência, mas no conteúdo serviram de força auxiliar aos interesses da burocracia e justificaram a própria posição utilizando-se da tática da frente única como argumento. Esta movimentação – feita inclusive por organizações trotskistas sérias – debilitou as possibilidades de uma posição alternativa independente e culminou na “declaração” do fim das mobilizações pelo Fora Bolsonaro que partiram justamente da campanha nacional pelo Fora Bolsonaro, dirigida pelas burocracias.

No simulacro de frente única defendido pelos camaradas somaram-se diversos erros. O primeiro tem a ver com o próprio caráter da suposta frente, construída “por cima” sem nenhuma política para o desenvolvimento de comitês regionais e nenhum espaço de ampliação para além das forças hegemônicas tanto na Frente Brasil Popular como na Frente Povo Sem Medo. Organizações políticas divergentes e ativistas independentes não tiveram nenhum espaço de organização e ação política independente, estando submetidos ao calendário e às definições gerais tomadas “por consenso” entre as duas coalizações citadas acima. A planejada falta de estímulo à organização das bases teve como efeito a desmobilização através de atos burocráticos, realizados somente aos fins de semana e espaçados no tempo, com divulgação precária (muitas vezes os materiais de divulgação ficavam prontos somente alguns dias antes) e fortes características eleitoralistas.

E se as manifestações fossem realizadas em dias de semana? E se a campanha Fora Bolsonaro atuasse diariamente ao invés de mensalmente? E se fossem estimulados comitês locais? Não é possível saber se isto teria alterado o rumo das coisas, mas fica evidente que a condução deste processo foi fundamental para a desmobilização. No momento atual, no qual o mal estar social se agrava cada vez mais devido ao desemprego, ao aumento do custo de vida e a fome que já atinge grande parcela da população, não existe nenhuma mobilização unificada contra Bolsonaro porque as burocracias “decretaram” seu fim e agora jogam seus esforços nas próximas eleições.

Muitos camaradas justificaram esta política com os mesmos argumentos das burocracias devido à “dificuldade” de mobilização. Obviamente, a situação brasileira coloca dificuldades, mas de forma alguma as lutas se paralisaram. A mobilização indígena em Brasília foi uma ação histórica que tensionou o governo e a justiça (e, diga-se de passagem, foi construída totalmente por fora das direções desmobilizadoras). As greves de trabalhadores de aplicativos continuam acontecendo[3], os caminhoneiros continuam pressionando o governo[4], a Frente Nacional de Lutas realiza uma importante luta pela reforma agrária em São Paulo[5], o MTST convoca às ruas contra a fome[6], o movimento negro voltará às ruas no próximo 20 de novembro[7], entre outros processos de resistência que se desenrolam atualmente, mas simplesmente não há nenhuma data unificada de mobilização contra nosso inimigo maior.            

Esse derrotismo foi desencadeado por erros de análise anteriores – como a negação da polarização política e da crise intraburguesa, além das próprias distorções teóricas sobre a frente única – e levou setores revolucionários do PSOL à terem uma política quase exclusivamente eleitoral como resposta para a crise. E mesmo este eleitoralismo enfrenta hoje um impasse porque depende exclusivamente das movimentações do próprio Lula, afinal se seu objetivo declarado de aproximação com a direita é bem sucedido automaticamente colocará estes setores do PSOL em um situação bastante difícil. Resta então a estes camaradas “torcerem” para que os planos Lula dêem errado enquanto fazem chamados ao ex-presidente já sabendo que estes serão ignorados.      

Outro erro profundo decorrente da aplicação incorreta da tática de frente única foi a falta de um programa. A frente única se constrói obrigatoriamente a partir de um sistema de reivindicações porque foi uma tática formulada para arrastar ou desmascarar setores oportunistas a partir da unidade na luta por medidas anticapitalistas concretas. No caso brasileiro, as tentativas de unidade se deram a partir do Fora Bolsonaro, pauta que permite unidades de ação mais amplas do que os limites da própria frente única, mas não houve um só ponto programático concreto. Isso aconteceu justamente porque as prioridades eleitorais das burocracias impediam estes setores de se comprometerem com medidas radicais, sob o risco de afastarem setores centristas e de direita de suas fórmulas eleitorais para 2022. 

Por fim, as frentes que se organizaram nos últimos anos não são exemplos da aplicação da tática da frente única. Pelo contrário, são coalizões de organizações cujo critério de participação é a afinidade política com seus setores dirigentes (a direção petista na Frente Brasil Popular e o companheiro Guilherme Boulos na Frente Povo Sem Medo), logo estão fora das características inerentes à tática da frente única. Quando de sua formulação, esta tática previa que os comunistas muitas vezes seriam minoria perante os socialdemocratas na composição das frentes, mas de forma alguma isso significaria adesão política aos setores majoritários. Na Povo Sem Medo e na Brasil Popular acontece o contrário, não há diferenciação pública e quem está contra a orientação majoritária não tem espaço de atuação. Como exemplo diferente, a articulação Povo na Rua buscou romper com este dirigismo e, mesmo sendo também uma coalização de organizações (e não uma frente única), teve um papel importante na resistência a este processo de adaptação eleitoral durante a luta pelo Fora Bolsonaro.   

Para onde vamos?

A comparação entre a FNDG peruana e as movimentações brasileiras é importante porque nos dá exemplos sobre como levar a cabo a tática da frente única de forma coerente. Mesmo com todas as suas debilidades e inssuficiências, a FNDG tem em suas premissas os elementos centrais da tática formulada nos congressos da Internacional Comunista e aí estão as chaves para o seu próprio processo de desenvolvimento. Com um programa em construção, mas que já orienta necessariamente para a luta pela nova Constituição, é um exemplo de unidade que indica sua organização através das bases sociais e mira para além do próprio governo Castillo.  

No Brasil, infelizmente a tática da frente única ainda não se desenvolveu porque nunca partiu de um programa de medidas anticapitalistas nem foi construída de baixo. Suas tentativas nominais utilizaram de seu enunciado para justificar coalizões parciais ou para unidades de ação, sem uma orientação concretamente anticapitalista nem possibilidades de diferenciação. Isso faz com que, até hoje, organizações socialistas importantes caiam em uma armadilha complicada na qual são obrigadas a amenizar suas posições e reduzir seu horizonte de expectativas em prol da permanência em espaços mais amplos de suposta unidade. 

Nesse processo, vemos a força da pressão eleitoral distorcendo estas mesmas organizações a levando ao esvaziamento de um polo independente que poderia crescer ao se diferenciar das velhas experiências ligadas ao regime político brasileiro. Mas este processo ainda está em aberto e a profundidade da crise que vivemos com certeza fará a roda da luta de classes se movimentar, mesmo que tenhamos poucas condições de prever os tempos dos novos processos que virão. Apostar todas as fichas nos mecanismos do próprio estado burguês, em possíveis futuros governos progressistas, não resolverá nossos problemas como tantas experiências recentes já nos demonstraram em diversos países do mundo.  

A verdadeira unidade pelas mudanças sociais é possível, e para isso deve ser construída sem dirigismos, com possibilidades democráticas de diferenciação, a partir das bases e com um programa efetivamente anticapitalista. Esta é a essência da tática da frente única e a Frente Nacional peruana parece estar bem mais próxima disso do que as tentativas brasileiras. 

[1] O debate pode ser retomado a partir do texto “Três formas de confundir a vanguarda: um debate com a Resistência/PSOL” (https://movimentorevista.com.br/2021/07/tres-formas-de-confundir-a-vanguarda-um-debate-com-a-resistencia-psol/).  

[2] Ver o texto “Governo Castillo e o cenário de lutas sociais no Peru” (https://movimentorevista.com.br/2021/11/governo-castillo-e-o-cenario-de-lutas-sociais-no-peru/).

[3] https://www.brasildefato.com.br/2021/10/11/greves-de-entregadores-contra-apps-de-delivery-se-espalham-e-ja-duram-dias

[4] https://www.istoedinheiro.com.br/caminhoneiros-do-agronegocio-decidem-parar/

[5] https://movimentorevista.com.br/2021/11/venha-marchar-com-a-fnl-por-terra-trabalho-moradia-e-educacao/

[6] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2021/11/mtst-fara-marcha-contra-a-fome-no-sabado-em-sp-com-boulos-e-padre-julio.shtml

[7] http://www.mundosindical.com.br/Noticias/50870,Mobilizacao-contra-Bolsonaro-em-20-de-novembro-sera-luta-contra-o-racismo

     


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Pedro Micussi