A virada ecológica: entre a mimese e o mimetismo
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A virada ecológica: entre a mimese e o mimetismo

Presenciamos verdadeira virada ecológica nas artes visuais, na literatura e na filosofia.

Artur de Vargas Giorgi 8 dez 2021, 13:51

Presenciamos contemporaneamente uma verdadeira virada ecológica nas artes visuais, na literatura e na filosofia. No momento, de fato, são muitos os eventos (acadêmicos e não-acadêmicos), debates, festivais; são muitas as novas edições (em variados gêneros e diversas áreas do conhecimento), reedições, pesquisas, exposições, mostras (etc.) – ou seja, de modo notável, está em curso o pensamento de uma recuperação vivificante da natureza, que em suas formas vegetais, animais e minerais assume o protagonismo, que afinal sempre lhe coube, no mundo que compartilhamos.

É evidente, mas não custa reafirmar: essa virada ecológica não deve ser reduzida a um modismo restrito ao seleto mundo das artes e da filosofia acadêmica, como se fosse o mais novo tema ou problema que deve ser trabalhado, movimentando todo um circuito que tem o seu vocabulário, os seus especialistas, o seu público de iniciados, o seu campo de ressonância, enfim, também o seu mercado. Ao contrário, como em outras oportunidades, o que acontece é uma abertura radical desses espaços – que, ainda hoje, muitas vezes parecem, sim, funcionar autonomamente – a questões urgentes que estão colocadas em nosso tempo, para todos nós.

Quer dizer, trata-se de uma inflexão do agenciamento, às vezes tenso, entre atores e espaços sociais muito heterogêneos, numa tentativa de coordenação dos seus distintos esforços. Tais atores buscam disseminar formas de pensamento e de ação que não apenas resistam, mas sobretudo sejam capazes de reverter os inúmeros males causados pela domesticação das vidas e a exploração hiperbólica do mundo – práticas que, como sabemos, o homem do Ocidente vem levando adiante, programaticamente, já há séculos, amparado por sua razão esclarecida e suas infinitas próteses técnicas.

Nesse sentido, haveria aparentemente um mínimo consenso, um ponto de partida que vem sendo posto e reposto, de diferentes maneiras: o entendimento de que a oposição entre o homem e as outras formas de vida – ou ainda a oposição entre a cultura e a natureza – é na verdade fruto de uma razão muito arrogante, violenta em seu suposto universalismo e, no limite, potencialmente destruidora de todas as formas de vida deste planeta que em comum habitamos, em virtude das gananciosas práticas concretas que fomenta, até a exaustão.

O meu ponto aqui é preciso: essa virada ecológica – se tal fenômeno puder ser nomeado desse modo, ao menos provisoriamente – é o ápice, talvez, de uma lenta mudança que ocorreu “de fora para dentro”: foram os indígenas, os sujeitos que mais sofreram as violências aqui apenas sumariamente apontadas (e elas são tão grandes e intensas, ainda hoje, que mal conseguimos enumerá-las), aqueles que primeiro reivindicaram essa “pauta” que, na verdade, não é uma questão de “arte visual”, de “literatura”, de “filosofia”. Tais disciplinas, eminentemente ocidentais e modernas, são em tudo estranhas à cosmovisão desses sujeitos que, para serem vistos e reconhecidos, não lutaram simplesmente por esses espaços oficiais de legitimação do Ocidente, mas sim pela singularidade das suas formas de vida profundamente conectadas com a terra e o céu, com as plantas, os rios, as montanhas e os demais seres viventes.

Em Metade cara, metade máscara,Eliane Potiguara é clara a esse respeito: “O indígena brasileiro não pode ser mais idolatrado na sua cultura e arte, nas suas fotografias, nas suas artes cinematográficas, nas suas expressões literárias e orais e ser literalmente ignorado na sua condição física, humana, social e política”. A importância do ativismo por meio das artes se mostra, afinal, em razão do efeito produzido, isto é, em razão da ressonância que ele pode alcançar: “A história aqui narrada não é um caso incomum. A diferença é que, aqui, está tendo visibilidade, quando a esmagadora maioria de famílias indígenas violentadas, que continua em aldeias indígenas ou que faz parte de famílias desaldeadas ou desestruturadas, permaneceu calada, enferma, enlouquecida, isolada na sociedade envolvente”.

Sujeitos indígenas reabriram seu espaço com longas lutas materiais e simbólicas, forçando a realidade de um mundo falsamente universal e inclusivo com a pungente verdade das suas presenças ancestrais, presenças originárias que, embora habitassem estas terras muito antes da chegada de qualquer colonizador, foram sistematicamente obliteradas pelo avanço da máquina mercante colonial. Suas vozes e corpos, inúmeros hoje, ocuparam os espaços que, em geral, antes permitiam seu aparecimento apenas de maneira domesticada e passiva, como “objetos” ou temas, vale dizer, como motivo exótico, como fonte de idealização de uma imagem nacional, como recurso simbólico a ser apropriado e mobilizado nas batalhas pela modernização dos repertórios estéticos nos espaços das ex-colônias etc.

É por isso que, hoje, quando o neoliberalismo e o autoritarismo mantêm aberto o caminho para a violência redobrada contra o mundo, levando-o perigosamente ao ponto do não-retorno, não basta recorrer aos motivos das plantas, dos animais, enfim, aos motivos da “natureza” mobilizando-os em produções artísticas e filosóficas. É preciso, eu diria, colocar o pensamento que sustenta esses motivos em funcionamento, ao modo de proposições para uma comunidade possível. De outro modo, a virada para as formas situadas da ecologia pode minguar e tornar-se, mais uma vez, novo motivo para a hipertrofia do logos.

Darei um exemplo, a fim de tornar a discussão menos abstrata. Els Lagrou, discorrendo a respeito da arte indígena no Brasil, comenta os trabalhos dos Kaxinawa (grupo pano, Acre, que se autodenominam Huni Kuin, “homens verdadeiros”). Há um líder de canto masculino nas performances rituais que é chamado de txana ibu, “dono dos japins”. Lagrou esclarece: “o japim, além de ser um pássaro tecelão, é também aquele que imita o maior número de cantos de outros pássaros e animais. Mulheres aprendem cantos que as ajudam a aprender a tecer com desenho, assim como a desenvolver outras atividades produtivas da vida em comunidade, enquanto homens aprendem cantos ligados a sua esfera específica de produtividade”. Assim, “a capacidade mimética musical, procurada e emulada pelos cantores da aldeia, que absorvem as qualidades desse pássaro no rito de consagração do novo líder de canto, importa antes por causa do seu valor ‘produtivo’, do que ‘representativo’. O canto masculino torna possível a caça: ao imitar o canto dos animais, o caçador os chama para perto de si, os seduz para poder capturá-los”.

Ora, diz Lagrou, tecer e cantar são duas atividades constitutivas do cotidiano kaxinawa, e sua estética consiste em uma “arte de produzir a vida de modo próprio, kuin, ao modo dos Kaxinawa”. Também aqui se mantém uma unidade indissociável entre arte e forma de vida, entre estética e organização política da comunidade: “o japim seria o modelo de artista a emular pelos humanos, pois além das capacidades de tecelão e cantor, o japim compartilha com os humanos o hábito de viver em comunidade, um conhecimento considerado condição para qualquer outra habilidade”.

Esse exemplo poderia bastar para mostrar que, na cosmovisão de muitos povos indígenas, mais que a mimese, no sentido da reprodução numa obra de uma realidade dada a priori, importa o mimetismo: a produção de uma semelhança integrada com o ambiente; uma semelhança sustentada por vários recursos que, agenciados, estabelecem relação com a unidade do meio espiritual através da alteridade, em suas muitas formas corporais. Esse modo de assemelhar-se ao outro não repousa, no entanto, sobre a particularidade do “original” (o predicado do modelo), mas sim reforça a vasta pluralidade das subjetividades que, no mundo, vivem em contínua transformação, metamorfoseando-se; ou seja, trata-se de “um dos traços contrastivos do pensamento ameríndio”, que suporia, nas palavras de Viveiros de Castro, “uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos”.

Podemos recorrer a um exemplo mais, quem sabe ainda mais claro para o que tento expor aqui, também fornecido por Els Lagrou. “Entre os Wayana”, diz a autora, “o tipiti, prensa de mandioca, é uma cobra constritora, pois constringe como a cobra. No entanto, ele não possui cabeça nem rabo, para não se tornar um ser independente que devora humanos. O tipiti é um artefato que compartilha com a cobra a capacidade agentiva de constringir e é isto que se quer fazer com a mandioca”. O que esse e outros artefatos indígenas imitam, portanto, “é muito mais a capacidade dos ancestrais ou outros seres de produzirem efeitos no mundo do que sua imagem”.

A questão, em suma, é operatória: é preciso buscar a produção de efeitos concretos no mundo. Pois a ecologia deve ser mais do que um mero repositório de belas imagens; mais do que uma fonte renovadora de metáforas sensíveis; ou seja, deve ir além do recurso à mimese. Claro, a representação é, sim, fundamental, pois as suas formas não se separam dos modos da representatividade política de corpos, vozes, visões, pensamentos, formas de vida as mais plurais. Mas, para além disso, é preciso que a ecologia nos forneça a chave de um mimetismo potente em termos de crítica e de criação de alternativas, um modo de produção da vida comunitária sempre situado em condições específicas de coexistência.

Isso para que, no contato com a pluralidade dos viventes, a humanidade consiga aproximar-se, efetivamente, de um viver com a alteridade, isto é, de um com-viver. Não somente reacomodando as suas possíveis imagens no sistema de representação já estabelecido, mas relacionando-se de acordo com o que pode ser entendido como um princípio ético incontornável: aquele que afirma como a nossa maior responsabilidade o cuidado compartilhado de um mundo vivo e espiritualmente unido.


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