Feminismo e Movimento Sindical

Feminismo e Movimento Sindical

Silvana Louzada escreve sobre a luta das mulheres no mundo do trabalho e a necessidade da construção e do fortalecimento de um sindicalismo feminista e internacionalista.

Silvana Louzada 11 fev 2022, 12:32

O Brasil começa um incipiente processo de industrialização no final do século XIX e o proletariado urbano que vai se formando era composto em grande parte por mulheres, a quem eram destinados trabalhos menos valorizados e de baixa remuneração.

Este não foi um fenômeno exclusivo do Brasil. Em todo o mundo capitalista, a partir da Revolução Industrial, a mulher adentrou o mundo da fábrica de forma precária e subalterna sem, contudo, se livrar do trabalho doméstico não remunerado[1].

Em nosso país, na virada dos séculos XIX para o XX, com a abolição da escravidão e a chegada de levas de imigrantes que, mais que a contratação de mão de obra qualificada, refletia o desejo de “branqueamento racial”[2], iniciou-se um processo de auto-organização de trabalhadores, aos moldes do que era praticado na Europa. Foram criadas ligas e associações de apoio ao proletariado como “Sociedades de Socorro Mútuo” e “Caixas Beneficentes”, especialmente nos setores mais ativos, como o têxtil, assim como estivadores. Os sindicatos eram apenas estaduais e a única entidade em nível nacional era a Confederação Operária Brasileira fundada em 1906, por iniciativa dos sindicatos do Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Bahia

Tais modelos sucederam as formas auto-organizativas de resistência que as pessoas escravizadas e libertas praticavam anteriormente. Essas novas levas de trabalhadores utilizariam instrumentos organizativos como panfletos e jornais impressos em diversos idiomas, na sua maioria de orientação anarquista, uma vez que boa parte do contingente de trabalhadores era alfabetizado, ao contrário dos trabalhadores brasileiros.

E foi nesse contexto que estalou a primeira greve geral no Brasil, em 1917 em São Paulo. Iniciada nas fábricas do Cotonifício Rodolfo Crespi, tinha as mulheres na linha de frente. Estas eram a maioria da classe trabalhadora que reivindicava melhores condições de trabalho, aumento salarial, fim do trabalho infantil e redução das cargas horárias exaustivas.

O movimento durou 30 dias e atingiu cerca 70 mil trabalhadoras e trabalhadores de todo país, tendo se espalhado por outras cidades como Rio de Janeiro e Porto Alegre. No bojo dessas lutas, as mulheres foram conseguindo que fossem incorporadas como prioritárias pautas específicas das trabalhadoras, como licença maternidade, auxílio-creche e igualdade salarial. [3] O movimento também denunciava os abusos sexuais e as más condições de trabalho a que eram submetidas as tecelãs e foi um salto na organização das trabalhadoras e trabalhadores do país.

A esse período de intensa mobilização, seguiu-se uma década – de 1920 a 1930 – de desmobilização das lutas e repressão à organização dos trabalhadores.

Com a chegada de Getúlio Vargas à presidência em 1930, através de um golpe militar, foi criado o Ministério do Trabalho e do Emprego assim como sindicatos oficiais, atrelados ao governo e que tinham como função mediar conflitos entre capital e trabalho. Os sindicatos tutelados pelo Estado e financiados pelo conjunto dos trabalhadores, graças ao imposto sindical obrigatório, mesmo para os não-sindicalizados, praticavam um sindicalismo dócil e corporativista, escamoteando a luta de classes, sempre em favor do capital.

Reflexo da luta das mulheres, em especial das “sufragistas”, o voto feminino foi conquistado na constituição de 1937. Outras importantes conquistas já haviam ocorrido na constituição de 1934 como o princípio da igualdade entre os sexos, a proibição de salários diferentes para funções iguais para diferentes sexos, assistência médica e sanitária a gestantes e folga antes e depois do parto, garantida pela Previdência Social, além da proibição do trabalho feminino em indústrias insalubres.

Essa última conquista foi eliminada com a entrada do Brasil na II Guerra Mundial, quando houve ainda o aumento da jornada de oito para 10 horas diárias.

Na segunda metade da década de 1960 e na década seguinte, as mulheres tomaram a frente de diversos movimentos reivindicativos. Protagonizaram o Movimento Nacional contra a Carestia, em 1968, a Luta por Creches em 1970, em 1974 estavam na linha de frente do Movimento pela Anistia e, em 1975, criaram os primeiros Centros de Mulheres. [4]

As décadas de 1960 e 1970 foram marcada por um forte ingresso das mulheres no mercado de trabalho, ainda em posições precarizadas e com remuneração inferior aos seus correspondentes homens, cumprindo ainda uma dupla ou tripla jornada, responsáveis que são pela reprodução da força de trabalho e cuidado com o trabalhador, sejam pais, maridos ou filhos.

Coube às feministas da segunda onda questionar e combater essa desigualdade, uma vez que as principais pautas eram o combate à discriminação de gênero, o respeito às diferenças e a igualdade de direitos entre os sexos.

A década seguinte foi de forte organização das trabalhadoras e trabalhadores organizadas/os no chamado “novo sindicalismo”, com a criação do Partido dos Trabalhadores em 1980 e da Central Única dos Trabalhadores, em 1983 e algumas reivindicações das mulheres passaram a ser incorporadas às pautas sindicais.

Com a redemocratização, o feminismo eclodiu nacionalmente trazendo à tona a discussão da sexualidade, direito do trabalho e igualdade no casamento. Foi um período muito dinâmico, com o feminismo conquistando espaços inéditos nos movimentos populares, associações de bairro e também nos sindicatos, com a criação de comissões e secretarias específicas de mulheres,[5] além da ativa participação das mulheres nas lutas sindicais, como na greve de Volta Redonda em 1988.

Esse momento marcou também, e de forma dialética, a crescente precarização das relações de trabalho, preconizada pelo modelo neoliberal em implantação no país, que atacou os instrumentos de bem-estar social duramente conquistados e atingiu duramente às mulheres.

Na década de 1990, a década neoliberal, esse panorama se agravou com a reestruturação produtiva, a flexibilização das relações de trabalho e a retirada do Estado da mediação das relações Capital-Trabalho, gerando uma fragmentação sem precedentes do sindicalismo.

O novo século se iniciou com o agravamento de velhos desafios para o trabalho feminino e para a relação do feminismo com o sindicalismo.

A redução acelerada do trabalho formal, a flexibilização das relações entre capital e trabalho em favor da burguesia e em prejuízo do proletariado, resultaram na precarização acentuada das trabalhadoras e trabalhadores, na acentuada diminuição das redes de proteção e na supressão dos direitos trabalhistas tão duramente conquistados.

O contingente do proletariado mais atingido tem sido justamente as mulheres, em especial as que se encontram na base da pirâmide e com menos organização sindical, como as mulheres negras e indígenas, camponesas e trabalhadoras informais. Conquistas como licença maternidade, acesso à creche entre outros não existem para essa parcela.

Por outro lado, as mulheres sindicalizadas e organizadas seguem enfrentando uma dura disputa em suas entidades e organizações trabalhistas.

O conjunto da vanguarda sindical e a maior parte das direções reconhecem ser fundamental a organização das mulheres e a necessidade de ampliação da representação feminina. Uma das ações afirmativas nesse sentido tem sido a instituição da obrigatoriedade de paridade de gênero nas direções dos sindicatos.

Contudo, ainda persiste uma cultura patriarcal, temerosa ao feminismo e aos seus métodos e demandas, ignorando muitas vezes a relevância das contribuições da luta feminista para o avanço das pautas sindicais, das lutas por justiça de gênero, raciais e de orientação sexual.

A teoria do sindicalismo por vezes admite que o feminismo deveria inspirar a organização sindical sem, contudo reconhecer a relevância das feministas na construção da luta e da organização sindical. [6]

Os novos tempos impõem mudanças no sindicalismo que reflitam as novas relações de trabalho e que avancem nas pautas das mulheres, raciais e de orientação sexual e isso só será possível com uma mudança radical da organização sindical em sua totalidade.

Para tal há que reconhecer e incorporar as contribuições das feministas e o entendimento do poder do patriarcado sobre as relações trabalhistas como um todo.

Sob essa perspectiva, não se trata dos sindicatos organizarem as mulheres, mas de abraçarem as conquistas organizativas do movimento feminista – que incorporou as não organizadas e informais – e transformar as estruturas organizativas sindicais em seu conjunto, estabelecendo uma nova democracia sindical, incorporando a paridade de gênero de forma ampla e promovendo a construção de novas lideranças mulheres e das minorias, que devem assumir o protagonismo da luta e da organização sindical.

E, de forma mais ampla, é imprescindível desenvolver o internacionalismo operário de mulheres investindo na organização, na defesa das pautas feministas globais e nas ações, como é exemplo a greve feminista.

Para a construção de novos modelos de trabalho, como justiça, manutenção de direitos e avanço nas conquistas sociais e trabalhistas, é imprescindível a construção e o fortalecimento de um sindicalismo feminista e internacionalista.

Como nos ensina bell hooks, o feminismo liberta até mesmo os homens do pacto de manutenção do poder do macho, que também os oprime.[7]

[1] FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo : Elefante, 2017.

[2] D’ÁVILA, Jerry (2006). Diploma de Brancura: Política Social E Racial No Brasil, 1917-1945. [S.l.]: Editora UNESP.

[3] FRACCARO, Glaucia, Os direitos das mulheres: feminismo e trabalho no Brasil (1917-1937). Rio de Janeiro : Editora FGV, 2018.

[4] PRIORE, Mary Del. História das mulheres no Brasil – São Paulo : Contexto, 2004.

[5] Ação Sindical e a Questão de Gênero: um estudo sobre a participação das mulheres nas direções da Central Única dos Trabalhadores – CUT; Élida Franco de Oliveira. Disponível em: https://ppgcs.ufba.br/sites/ppgcs.ufba.br/files/elida.pdf . Consulta em 26/01/2022

[6] WATERMAN, Peter (2002), “O internacionalismo sindical na era de Seattle”, In Revista crítica de ciências sociais. Coimbra. No 62 (Jun. 2002), p. 33-68. Disponível em https://journals.openedition.org/rccs/1298 Consulta em 27/01/2022


[7] HOOKS, Bell. O Feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro : Rosa dos Tempos, 2018.


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Pedro Micussi