O Parlamento Europeu vota por trilhar os caminhos da glória
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O Parlamento Europeu vota por trilhar os caminhos da glória

O eurodeputado de Anticapitalistas faz uma reflexão sobre a recente votação do Parlamento Europeu sobre a invasão da Ucrânia.

Miguel Urban 18 mar 2022, 10:05

Via El Diario

Há alguns dias, o Alto Representante para a Política Externa da UE, Josep Borrell, usou a tribuna do Parlamento Europeu para proferir um discurso belicista próprio do General Broulard em Caminhos da Glória. Estes militares de alta patente retrataram tão bem no filme de Kubrick, cujas bocas estão cheias de termos como bravura, patriotismo, coragem, disciplina e submissão enquanto assistem à guerra de seus escritórios. “Ninguém pode invocar a resolução pacífica de conflitos. Vamos nos lembrar daqueles que neste momento solene não estão do nosso lado”, disse Borrell em tom ameaçador e inquisitorial. Um aviso para aqueles que se opõem à deriva belicista da UE ao defender uma resolução pacífica para a intolerável invasão da Ucrânia pelo regime ditatorial de Putin.

Mas acontece que alguns de nós não temos nenhum compromisso com os partidos, regimes e governos que têm contribuído para esta situação de guerra. Nossa solidariedade é com o povo ucraniano que sofre com a guerra e com o povo russo que se opõe a ela. As e os anticapitalistas não fazem política no interesse das classes dirigentes e de seus artefatos políticos, mas no interesse internacionalista da classe trabalhadora. Esta é uma guerra imperialista trágica, que poderia ter sido evitada. Mas a lógica do imperialismo a impulsionou e nem Putin, o responsável por desencadeá-la, nem a OTAN, com sua crescente estratégia intervencionista, serão perdoados por ela. O primeiro, por atacar o povo ucraniano e tentar impor seu grande projeto imperial russo. Os segundos, por privar a Ucrânia de sua soberania, transformando o país em um peão de sua geopolítica em aliança com a elite corrupta que saqueou a Ucrânia em conluio com o Ocidente durante todos estes anos.

É lógico que aqueles que estão atualmente na Ucrânia lutando contra Putin decidam pegar em armas ou adotar outras formas de resistência civil e fazer tudo o que estiver ao seu alcance para impedir esta ocupação. A honestidade política exige que na resposta europeia reconheçamos que, diante desta guerra, existem várias posições. Por um lado, há aqueles que optaram por uma corrida armamentista e estão preparados para ir até o fim, inclusive arrastando o planeta para uma guerra total entre as potências nucleares. Uma opção que parece menos distante hoje do que há apenas quinze dias, tendo em vista a abordagem cada vez mais agressiva de Putin. Mas existem outras posições. Como aqueles de nós que estão comprometidos em apoiar os povos ucraniano e russo e, ao mesmo tempo, em parar a guerra o mais rápido possível através de um processo de negociação como única forma de deter a escalada militar, evitar um caos geopolítico ainda maior e conseguir parar este conflito antes que seja tarde demais.

As veleidades militaristas parecem ter conquistado os tapetes e escritórios de Bruxelas. Na semana passada, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução supostamente denunciando a ocupação da Ucrânia por Putin e expressando solidariedade com o povo ucraniano, algo que nós, Anticapitalistas, sempre defendemos. Mas a resolução foi muito mais do que uma condenação de Putin, pois usou a guerra e o sofrimento ucraniano como álibi para remilitarizar a Europa, propondo um aumento das despesas militares numa escalada belicista que só beneficia as multinacionais da morte e reforça o papel da OTAN como polícia mundial ao serviço da agenda de Washington, à qual as potências europeias estão subordinadas. Entre outras coisas, a resolução adotada no Parlamento Europeu declarou, e passo a citar:

“Reitera que a OTAN é a base para a defesa coletiva dos Estados membros aliados da OTAN; acolhe com satisfação a unidade entre a União, a OTAN e outros parceiros democráticos de mesma opinião para enfrentar a agressão russa, mas salienta a necessidade de fortalecer sua postura coletiva de dissuasão, preparação e resiliência; encoraja a intensificação da Presença Avançada Reforçada da OTAN nos Estados membros geograficamente mais próximos ao agressor russo e ao conflito; salienta as cláusulas de assistência mútua e solidariedade da União e apela para o lançamento de exercícios militares comuns; reitera seu apelo aos Estados-Membros para que aumentem as despesas de defesa e garantam capacidades mais eficazes, e para que utilizem plenamente os esforços conjuntos de defesa no âmbito europeu, em particular a Cooperação Estruturada Permanente (CEP) e o Fundo Europeu de Defesa, a fim de fortalecer o pilar europeu no âmbito da OTAN, o que reforçará a segurança tanto dos países da OTAN quanto dos Estados-Membros”.

Pode parecer anedótico, mas na resolução do Parlamento Europeu, a palavra paz apareceu apenas quatro vezes, enquanto termos como OTAN apareceram 15 vezes e segurança 22 vezes. Com este passo, a UE está transformando sua política teoricamente pacifista consagrada nos tratados em sua cabeça e acelerando sua ala armada e remilitarização, favorecendo um aumento dos gastos militares para pelo menos 2% do PIB de cada Estado membro, como já foi anunciado em países como a Alemanha, algo que, conhecendo a história do militarismo alemão, deveria preocupar os cidadãos europeus que estão pelo menos minimamente familiarizados com a história do continente.

Além disso, a resolução aprovada prevê o envio de armas que entram em conflito com os mesmos tratados europeus que proíbem expressamente a alocação de fundos do orçamento comum para projetos com “implicações militares ou de defesa”. Para contornar este obstáculo, está sendo utilizado o Instrumento Europeu para a Paz (criado há três anos com o objetivo de contribuir para a paz e estabilidade em áreas remotas do mundo, mas cuja primeira tarefa é, paradoxalmente, financiar 450 milhões em armas para a Ucrânia). E como este instrumento foi retirado do Marco Financeiro Plurianual e conta com uma dotação externa, ele pode contornar os Tratados Europeus que o impediriam.

Cabe perguntar-se então por que a UE decide enviar armas agora. Por que para a Ucrânia? Por que não para nenhum dos muitos outros conflitos ao redor do mundo onde a legalidade internacional também é flagrantemente violada? Me vem à cabeça o Saara ocupado ilegalmente, mas há tantos outros exemplos em que a UE olha para o outro lado na melhor das hipóteses, quando não está diretamente envolvida no apoio ao poder beligerante ou ocupante. Além disso, podemos confiar que esses carregamentos de armas irão para aqueles que mais precisam delas, a população civil sitiada, e não para os grupos de extrema-direita belicistas?

Agora, as elites políticas e econômicas europeias não se importariam de atolar o conflito na Ucrânia por anos, mesmo às custas do povo ucraniano, fortalecendo governos fantoches e, no processo, reforçando e justificando a ditadura de Putin. É por isso que eles não estão demonstrando nenhum interesse em buscar iniciativas diplomáticas e mudaram o debate e as medidas para o beco sem saída do reducionismo militar. O que não há dúvida é que esta escalada do armamento está enchendo os cofres de uma indústria militar que já ganhou mais de 24 bilhões de euros desde que a guerra começou.

Mas de volta a Bruxelas. Entre os discursos proferidos no Parlamento Europeu na semana passada estava a ideia de que a Europa nunca esteve tão unida. E a verdade é que a guerra está sendo usada com uma lógica de união sagrada e como salva-vidas para um projeto europeu que há muito vem sofrendo de uma grave crise de legitimidade. Assim, a aventura criminosa de Putin permite à UE coexistir com base em uma forte sensação de insegurança diante das ameaças externas que legitimam sua remilitarização (que é muito mais do que o aumento das despesas militares acima mencionado) e permite à OTAN diluir qualquer indício de independência política da UE enquanto recupera uma legitimidade e unidade perdidas há algum tempo, especialmente após o fracasso da ocupação do Afeganistão.

Diante da deriva militarista e belicista que está varrendo a Europa, e apesar da atmosfera macarthista de intimidação intelectual e demagogia belicista, alguns de nós decidiram levantar a bandeira de uma tradição socialista que sempre lutou pela paz e contra o imperialismo, de onde quer que ele venha. E isso não significa que eu não reconheça que não existem receitas mágicas que resolvam esta situação de repente. Ao votar contra a resolução do Parlamento Europeu, nós, Anticapitalistas, aceitamos as contradições desta posição. Mas é uma posição que adotamos coletivamente, consciente e autônoma, não condicionada pelo que as pessoas vão dizer ou por cálculos espúrios. Votamos não à remilitarização da Europa. E o fizemos porque nos recusamos a usar a invasão inaceitável e criminosa do regime tirânico de Putin contra a Ucrânia para fortalecer a OTAN e carregar a ameaça de um confronto entre as potências imperialistas sobre as vidas dos trabalhadores e operários ucranianos e russos. Dissemos não àqueles que querem nos devolver à lógica da União Sagrada do alvorecer da Primeira Guerra Mundial, obrigando-nos a aceitar novos créditos de guerra.

Pois embora seja verdade que, por enquanto, apenas uma potência lançou uma agressão e o povo ucraniano tenha o direito de resistir, armado e desarmado, e de lutar por sua soberania (algo que deveria envolver o não-alinhamento, precisamente o oposto de se tornar um satélite da OTAN ou da Rússia), não é menos verdade que na Ucrânia a OTAN está se preparando cada vez mais para intervir contra a Rússia. E isto só torna a situação cada vez mais perigosa, aumentando o risco de degeneração em um conflito aberto entre potências nucleares quanto mais tempo o conflito se arrasta.

Não se trata de não tomar partido por um ou outro poder imperialista. Porque quando se trata de transformar esta guerra de agressão em uma disputa entre impérios, os anticapitalistas não podem cair nesta armadilha binária, mas devem quebrá-la. Nossa posição está de lado, ativa e clara em favor dos povos ucraniano e russo, pela paz sem anexações, pela retirada incondicional das tropas russas da Ucrânia e pela garantia do direito dos povos, sem exceções, de decidir livremente seu futuro. A propósito, a mesma posição defendida por Trotsky e Lenin na Conferência de Zimmerwald, a quem Putin tanto atacou nestes dias por defender o direito de autodeterminação dos povos, a começar pela da República da Ucrânia, e para isso buscaremos a maior colaboração possível com as esquerdas ucraniana e russa.

E por tudo isso, a UE deve apoiar as negociações que já estão ocorrendo entre Putin e o governo ucraniano, ajudando assim a acabar com esta barbárie o mais rápido possível. Pressionar por todos os meios sobre a oligarquia russa que sustenta o regime de Putin, sancionando os oligarcas e não o povo, com medidas como a expropriação dos ativos e passivos dos milionários russos para financiar a reconstrução da Ucrânia. Isto exigirá a criação de um registro financeiro internacional, que nos permitirá conhecer os verdadeiros proprietários, uma medida que certamente não agradará às fortunas ocidentais.

A geopolítica e a realpolitik muitas vezes esquecem as pessoas. E em apoio ao povo ucraniano, a exigência de cancelar a dívida externa é hoje uma das ferramentas mais poderosas para aliviar a pressão sobre a economia ucraniana (e, aliás, sobre todos os países estrangulados por ela), sobre sua população e suas finanças, tornando possível delinear um futuro que não envolva o empobrecimento de seu povo. Uma proposta que, por razões óbvias, nenhuma das partes imperiais do conflito parece ter se preocupado muito, e ainda menos agora.

Mas além da Ucrânia, é essencial que levantemos um plano de choque social diante das previsíveis e já presentes consequências econômicas e sociais da guerra na Europa. Devemos redobrar nossos esforços em ajuda humanitária ao povo ucraniano e àqueles que fogem para se refugiar no que já é o maior êxodo da Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Isto exige uma partilha equitativa e solidária dos encargos dos esforços de recepção em toda a Europa como um todo. A crise econômica que paira sobre todo o continente também deve ser enfrentada com medidas corajosas, para que as classes trabalhadoras não tenham que pagar mais uma vez o preço por esta guerra. Para isso, além de controlar o aumento dos preços da energia e de tantos outros bens, deve haver um aumento dos salários e do poder de compra da classe trabalhadora, a fim de evitar um aumento do custo de vida. Mas não nos enganemos: o controle dos preços não é possível sem o planejamento social e ecológico da economia, nem sem a nacionalização de setores estratégicos como a energia. E, obviamente, nada disso virá por si só ou pela vontade daqueles que nos governam, mas exigirá uma mobilização ativa e consciente da classe trabalhadora.

Sabemos que o mundo está deslizando para uma crise de grande magnitude em todas as áreas e que as guerras são um momento de reordenação capitalista no qual as grandes empresas acumulam enormes lucros e ajustam as condições sociais contra a classe trabalhadora. A organização de uma resposta popular a este cenário também faz parte do Não à guerra.

O futuro do nosso século está sendo escrito hoje nas planícies ucranianas. As forças transformadoras europeias devem tomar uma posição ativa com sua própria agenda, que rejeita sem ambiguidade o projeto político imperial da oligarquia russa e da autocracia putinista, mas também a agenda militarista da OTAN e os ditames imperialistas de Washington. Para evitar o espectro de um confronto nuclear, devemos voltar a uma agenda de desarmamento e desnuclearização da Europa, colocando-a a serviço dos interesses dos povos. E àqueles que nos falam com ardor bélico e retórica belicista para colocar trabalhadores contra trabalhadores em uma guerra que eles não combaterão, lembremos que “os caminhos da glória levam somente à sepultura”.


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Pedro Micussi