Ainda sobre a federação e a defesa da independência do PSOL

Ainda sobre a federação e a defesa da independência do PSOL

Um diálogo com João Machado e a Comuna.

Estevan Campos 7 abr 2022, 20:11

João Machado, fundador do PSOL e dirigente da Comuna, publicou um artigo intitulado “Alguém consegue entender o MES?” [1], no qual abre um debate com nossa organização sobre nossa votação a favor da formação da federação entre PSOL e Rede Sustentabilidade, afirmando que não ser “capaz de compreender” nossa posição. Para avançarmos nesse debate, escrevo essas linhas.

Antes de dialogar com o texto do companheiro, vale lembrar que nossa organização já publicou dois textos sobre nossa posição, um escrito por mim [2] e outro escrito pelo camarada Leandro Fontes [3], cujos argumentos pretendo não repetir. O debate entre organizações marxistas enriquece as formulações, vejo na possibilidade de diálogo proposto por João Machado, uma excelente oportunidade para avançarmos no debate sobre a federação. Vale ainda marcar que o debate com a Comuna difere do debate com outras organizações que se posicionaram e publicaram posições contrárias à federação com a Rede, como a Resistência e o Socialismo ou Barbárie. A primeira, embora tenha publicado textos contrários à federação, se absteve na votação sobre o tema na Executiva Nacional. Aliás, até o momento, a Resistência tem sido uma base fiel de sustentação do campo majoritário do PSOL, o PTL (PSOL de Todas as Lutas), não se contrapondo aos interesses de Boulos em absolutamente nenhuma votação, mesmo naquelas sobre as quais publicam textos contrários, como por exemplo, a possibilidade de participação do PSOL em governos de conciliação de classe. Já o Socialismo ou Barbárie, parece pelos seus textos e publicações, estar “de malas prontas” para uma saída do PSOL, em direção, possivelmente, ao PSTU. Esses debates são outros, que podemos travar em outro momento.

Entrando no debate com João Machado, o companheiro apresenta alguns elementos com os quais temos acordo, especialmente quanto à caracterização do que é a Rede Sustentabilidade (nossos textos anteriores, citados acima, expressam isso). No entanto, sua argumentação apresenta três problemas centrais, sobre os quais penso ser fundamental apoiar nosso debate.

O primeiro, e principal, problema da argumentação do companheiro é colocar o “formal” acima do “prático”. Isso é expresso em duas partes do texto, as quais reproduzo abaixo:

“Se esta decisão for homologada pelo Diretório Nacional do PSOL, […] o PSOL será, para efeito da Justiça Eleitoral, pelo prazo mínimo de quatro anos, o mesmo partido que a Rede. Os dois partidos terão de apresentar candidaturas unificadas aos cargos majoritários, bem como listas unificadas de candidaturas às eleições parlamentares, pelo menos nas eleições de 2022 e de 2024. 

PSOL e Rede, que funcionarão eleitoral e parlamentarmente como um só partido, terão formalmente um mesmo programa…”

Aqui, Machado mistura um elemento verdadeiro (a apresentação de candidaturas unificadas no período de 2022-2024) com um argumento falso. E esse é o segundo problema de seu texto.

Nem mesmo formalmente PSOL e Rede serão “o mesmo Partido”. É uma distorção do significado da federação, mesmo do ponto de vista formal. Alguém se filia à federação? Não. Ativistas e militantes seguirão se filiando ou ao PSOL ou à Rede. O PSOL deixará de ter seus organismos partidários (direções, núcleos, setoriais, congressos)? Também não. A federação muda o programa do PSOL? Também não. O PSOL seguirá existindo enquanto Partido separado da Rede. Seguiremos com nossas instâncias e debates internos. Mesmo no aspecto “formal”, o mais correto seria descrever a federação como uma aliança permanente entre os Partidos e não como uma “fusão” (não seremos o mesmo Partido).

Voltando ao primeiro, e fundamental, problema. João Machado, a partir da análise formal/legal, conclui que a federação com a Rede será um passo fundamental na diluição do PSOL, o que, se fosse verdadeiro, de fato estaria em contradição com as posições do MES. Mas não é. Esse é o principal problema da argumentação do companheiro pois é um erro de método de análise. O critério para a análise das ideias, teorias e teses, para o marxismo, sempre foi o critério da prática. Florestan Fernandes, ao apresentar o pensamento político de Lênin, destacou esse aspecto da ciência marxista:

“[…] a lógica a que se submete semelhante pensamento político (e também o seu modelo de análise), não é formal nem intelectualista: é prática. Para atingir seus alvos, o conhecimento político produzido precisa ser aceito, reconhecido como verdadeiro e absorvido pelas massas, para em seguida manifestar-se através do seu comportamento coletivo. […] Temos aí todo um rol de requisitos que situam a natureza do conhecimento político, sua forma, propagação e meios de verificação numa relação direta com a prática política propriamente dita (e não com os requisitos do conhecimento científico formal). Voltamos a Marx: “A questão de saber se ao pensamento humano cabe verdade objetiva não é uma questão de teoria, mas uma questão prática”, porém com outro espírito.” [4]

A prática, portanto, é o critério. João Machado reconhece em seu texto, que o MES “tem também boas ações práticas nos embates do PSOL”, citando nossa chapa comum no último Congresso partidário, o apoio à pré-candidatura de Glauber e o lançamento de Mariana Conti como pré-candidata ao governo de SP após a desistência de Guilherme Boulos da candidatura.

Poderíamos elencar várias outras “ações práticas” que levamos adiante já no PSOL, mas vale também recordar outras batalhas, anteriores à fundação do PSOL. Penso serem dois fatos e ações práticas que permitem refletir sobre o que será uma federação com a Rede diante das preocupações apresentadas por João Machado em seu texto, que remetem à atuação parlamentar conjunta.

Uma dessas experiências e ações práticas, já no PSOL, foi o pedido de impeachment impulsionado pelos parlamentares do MES quando a direção majoritária do PSOL “marcava passo” aguardando pelo PT para ter qualquer iniciativa. A direção do PSOL não só “marcava passo”, como combateu a iniciativa impulsionada pelas parlamentares do MES (em seguida apoiada por Glauber Braga). Nesse caso, se tratava efetivamente de estarmos no mesmo Partido, nós e a direção do PTL, e isso não impediu que nossa ação prática fosse de acordo com nossa estratégia de postulação do PSOL como uma alternativa independente e anticapitalista.

Voltando um pouco no tempo, é válido lembrar do processo de fundação do PSOL. O MES, a CST e o grupo de João Machado e Heloísa Helena dentro da DS, deram a batalha contra a traição da reforma da previdência de Lula. Éramos do mesmo partido de Dirceu, Palloci, Genoíno e Lula, e nem mesmo toda a pressão do aparelho do Estado burguês e do mega aparato petista conseguiu demover-nos da posição consequente, classista, independente, de votar contrariamente à reforma neoliberal de Lula. Lembro desse episódio pois João Machado o testemunhou e sabe, possivelmente mais do que eu mesmo, o tamanho da verdadeira operação que o PT desencadeou para “segurar” Heloísa no PT.

E por que citar esses exemplos? Ora, o grande receio de João Machado, é que nós, socialistas, nos confundamos com os partidos da ordem a partir da formação de uma federação com a Rede, pois funcionaremos “eleitoral e parlamentarmente como um só partido”. Afirmo com muita tranquilidade, a partir de nossa experiência prática, que não vejo o menor risco de uma adaptação nesse sentido por conta da federação.

Bom, restaria ainda a outra “ala” do PSOL, essa sim, avançando a passos largos numa diluição programática do nosso Partido, há muito tempo, diga-se de passagem, e não por causa da federação. A começar pela campanha presidencial de 2018, quando pontos fundamentais do programa do PSOL foram abandonados por Guilherme Boulos, como a defesa do não pagamento e auditoria da dívida pública. De lá pra cá, o apagamento das linhas divisórias entre PT e PSOL só avançou por parte do campo majoritário. A última ação prática nesse sentido, foi a desistência de Boulos da candidatura ao governo do estado de SP em troca de um apoio à sua candidatura para prefeito em 2024, as seguidas declarações em que tratam um possível futuro governo Lula como “nosso governo”, dando sinais claros do que pretendem fazer na prática: ser parte do governo federal.

Pra finalizar, dois temas. Resumindo a posição do MES, que João Machado afirma “não compreender”. A federação é um movimento defensivo, pela manutenção da legalidade plena do PSOL, dentre as possibilidades de federação, a única que no nosso entender não vai contra nossa estratégia de construção do PSOL como alternativa anticapitalista é com a Rede. Com outros partidos de esquerda, como PSTU, PCB e UP, nos parece evidente que, em que pese o caráter socialista, não cumpriria o papel de contribuir para superarmos a cláusula de barreira.

Com a Rede podemos “eleger” Marina Silva, afirma Machado. Bom, nas polêmicas precisamos ser concretos. Marina Silva, que declarou sua intenção de se candidatar à Deputada Federal por São Paulo, foi candidata à presidência da República. Não me parece que seja o caso de os votos do PSOL “elegerem” Marina. Ao que tudo indica, ela sozinha deve fazer votação suficiente para retornar ao Congresso. Cito Marina Silva, pois ela é representante do setor mais à direita da Rede. É fato que os votos de PSOL e Rede se somarão nas eleições, e os votos do PSOL podem eleger alguém da Rede. Não parece ser o caso de Marina Silva, mas pode ser o caso de Heloísa Helena, pelo Rio de Janeiro. E aqui, mais do que o aspecto formal/legal da federação, há de se pôr na balança o critério da prática. Heloísa Helena estaria ou não à esquerda do possível governo Lula-Alckmin (à esquerda inclusive da bancada do campo majoritário do PSOL)? E Joênia Wapichana? Essa é a aposta que fazemos, que possamos fortalecer as posições independentes à esquerda de um futuro governo, na ação prática de nossa futura bancada. Espero que João Machado compreenda.

A nossa prática, ao longo dos pouco mais de 20 anos de existência do MES tem sido guiada e orientada pelo horizonte estratégico da construção de um partido anticapitalista com influência de massas, que tenha capacidade de ser um polo de reagrupamento das diversas organizações revolucionárias e de atração do ativismo existente, porém disperso, por um lado, e descrente da estratégia socialista, por outro. São inúmeras as causas da “crise de alternativa” e da fragmentação das organizações revolucionárias, não caberia analisá-las nesse breve diálogo. Porém, vale marcar a conexão entre nossas movimentações táticas, nossas ações práticas e seu vínculo com a estratégia do reagrupamento.

Nossa posição sobre a federação tem relação direta com essa estratégia. Por dois motivos, que no fundo são um só: reconhecemos o peso que tem no Brasil a atividade parlamentar. Não afirmo isso no sentido de alimentar ilusões com o parlamento como “espaço” para a disputa dos rumos do País, nada disso. Na situação de dispersão do ativismo, de enfraquecimento dos espaços auto organizados da classe, de uma classe dispersa, fragmentada e precarizada, a intervenção parlamentar pode ser um ponto de apoio fundamental para o reagrupamento e para a reorganização da classe, para a construção de referência e para nosso enraizamento no seio da classe. Em nossa avaliação, temos avançado no sentido do enraizamento do Partido, mesmo que ainda distantes da necessidade. Imagino que João Machado concorde com essa avaliação, já que é testemunha viva, é parte da história do PSOL desde a fundação.

Por isso “são dois motivos em um”. A manutenção da legalidade plena do PSOL é fundamental para seguirmos ocupando esses espaços e continuarmos avançando no enraizamento na classe, esse aspecto, defensivo (defesa da legalidade plena), é um. Outro, como dito anteriormente, é fortalecer a atuação prática de uma bancada de oposição de esquerda ao governo Lula-Alckmin. Heloísa, bem conhecida por João Machado, seria uma aliada nesse sentido, com um potencial de repercutir nossas posições (ainda que com divergências pontuais) com grande alcance. Como escrevi em meu primeiro texto sobre a federação, a fundação do PSOL atesta a importância da intervenção parlamentar, não fossem os mandatos de Luciana Genro, Babá e Heloísa, nossas organizações teriam imensas dificuldades de levar adiante o projeto de construção do PSOL. 

Pra finalizar, chamou atenção (e preocupou profundamente) o final do artigo do camarada. Quando fala do lançamento da pré-candidatura de Mariana Conti e afirma que “uma maior nitidez do MES […] e a correção da ininteligível posição de defesa da federação com a Rede, certamente seria ótima para a pré-candidatura da companheira Mariana”.

No início do texto afirmei que o diálogo com a Comuna é diferente do diálogo com outros setores da esquerda do PSOL, especialmente os que já indicam uma saída rumo ao Polo Socialista, animado pelo PSTU. Os companheiros da Comuna, assim como outros da esquerda partidária, são fundadores do PSOL, tal como nós do MES. Pra nós, o PSOL ainda é um Partido estratégico, não está no nosso horizonte (nem passa perto disso) uma saída do Partido. Temos que ser muito consequentes na defesa do PSOL.

O companheiro, pela forma que apresenta, condiciona o apoio à pré-candidatura de Mariana à uma mudança de posição do MES quanto à federação, isso é um erro profundo, pois abre mão de uma disputa fundamental contra a diluição do PSOL. A pressão para a adaptação do PSOL vem tanto do Estado, quanto de um de seus principais agentes, o PT (provável futuro governo), mas não só. Essa pressão de adaptação já “ganhou” adeptos dentro do PSOL, especialmente a Revolução Solidária (de Boulos) e a Primavera Socialista (de Juliano Medeiros). A desistência de Boulos da candidatura estadual foi um ato prático que avança no sentido da integração do PSOL ao projeto petista, espera como contrapartida o apoio do PT a Boulos para a prefeitura de São Paulo. O ato prático, a batalha urgente que devemos travar, é para garantir a candidatura própria do PSOL em SP. Precisamos fortalecer a campanha junto à base do Partido para impor essa candidatura (independente do nome), aumentando a pressão da base sobre a direção, especialmente sobre os setores do PSOL Semente (Resistência, Insurgência e Subverta) que, até aqui, não tiveram nenhum ato prático que se contrapusesse ao projeto de diluição do PSOL levado adiante por Boulos.

Que os companheiros e companheiras da Comuna se somem à essa batalha. As candidaturas próprias nos estados e a votação por não compor um eventual governo Lula-Alckmin são as batalhas fundamentais, que terão desdobramentos práticos, para a não diluição do PSOL no projeto petista de reanimação da Nova República. 


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Pedro Micussi