É necessário lutar contra a liquidação e a marginalização do PSOL
Um debate com a esquerda psolista frente a tática da Federação
Para quem sabe ler, um pingo do “i” é letra. O debate da Federação Partidária está em voga no mesmo momento em que parlamentares e dirigentes do campo majoritário (encabeçados por Boulos) – denominado “PSOL de Todas as Lutas” – estão sem nenhuma inibição em atividades comuns com o PT fazendo declarações que indicam apoio no primeiro turno e possível composição de um novo governo Lula, que terá Alckmin como vice e um programa declaradamente de colaboração de classes. Paralelamente, como aborda o artigo de Roberto Robaina, As baixas no PSOL e a necessidade de definição de rumos | Revista Movimento (movimentorevista.com.br), parlamentares e figuras públicas seguem deixando o PSOL em direção a um lugar mais “próprio ou próximo” do lulismo. Enquanto isso, setores da esquerda do partido, campo que o MES compõe na defesa da candidatura própria, atacam a resolução da Federação Partidária com a Rede Sustentabilidade, tendo como principais argumentos, que, este passo, tira o caráter de classe do partido e enfraquece o projeto do PSOL. Mas, por que essa posição está equivocada e por que o voto na tática da Federação foi correto?
Conforme muito bem descreveu Estevan Campos no artigo Sobre a federação PSOL e Rede | Revista Movimento (movimentorevista.com.br), esse tema está embutido na consequência devastadora da cláusula de barreira, potencializada na “reforma eleitoral” de 2021 que buscou restringir o número de partidos na partilha do fundo partidário, no tempo de TV e rádio. O fundamento principal foi a mudança da regra de aliança entre os partidos. A partir da “reforma” se apresenta a opção de Federação Partidária. Isto é, em essência, a Federação é um mecanismo da nova regra eleitoral que substitui as antigas coligações proporcionais válidas para a eleição de parlamentares. O sistema antigo valia durante o processo eleitoral e deixava de existir após as eleições. A Federação é diferente, uma vez que os partidos federados (dois ou mais) terão que estar unidos formalmente por pelo menos quatro anos. O que na prática colocará os partidos federados unidos em dois pleitos eleitorais e com bancadas comuns no parlamento.
Todos os partidos com influência social real vistos no espectro “amplo das esquerdas” estão debatendo a construção de Federações, como é o caso do PT com o PCdoB (que chegou a debater com o PSOL), PSB e PV; e do PSOL com a Rede Sustentabilidade. O que está em jogo? A resposta é simples: a superação da navalha da cláusula de barreira para que os partidos mantenham-se existindo institucionalmente e com potencial mínimo de competitividade no quadro nacional. O novo corte estabelecido com cláusula de barreira, implica na conquista de pelo menos 2% dos votos válidos em 9 Estados ou eleger 11 deputados federais em 9 Estados. Essa Lei se aplica tanto ao partido isolado quanto à Federação. Quer dizer, os partidos políticos menores com influência social poderão concorrer com maiores chances para manter sua presença político-institucional com a Federação.
Esse não é um debate menor no tocante a partidos ideológicos como é o caso do PSOL. E, notem o tamanho da questão, diante de governos distintos, a luta pela legalidade foi o principal eixo político do PCB, partido aplaudido por setores da vanguarda – lulistas e marxistas – na passagem de seus 100 anos. Acontece que para buscar a legalidade (registro formal com todos os direitos e deveres junto ao TRE), o PCB dirigido por Luiz Carlos Prestes, sobre o guarda-chuva da estratégia etapista conforme foi discorrida na coluna O nome do partido | Revista Movimento (movimentorevista.com.br), adotou táticas de conciliação com a burguesia nacional. Não foi à toa que o PCB apoiou Getúlio Vargas em 1945 (nove anos depois da prisão de Prestes e da execução de Olga Benário) e Juscelino Kubitschek depois. E na redemocratização, após a ruptura de Prestes com o partido, o PCB vacilou frente ao governo Sarney e optou pela adaptada CGT do Joaquinzão em detrimento da presença na CUT, que nascia pelos braços do ascenso do movimento operário brasileiro. Essa orientação política heterodoxa e que se mostrou equivocada, a rigor, estava balizada pelo eixo do Comitê Central desse partido, que buscava penosamente a existência legalizada e institucional do PCB no cenário partidário do país.
Evidentemente, a posição da Federação com a Rede não se enquadra, em absoluto, com os movimentos implementados pelo PCB no passado. Além disso, as circunstâncias são distintas e cada partido político de esquerda deve fazer valer sua trajetória na busca honesta de seus objetivos imediatos e históricos. Entretanto, um ponto precisa ser posto na mesa nessa breve reflexão e no exemplo histórico do PCB: quanto custa para a classe trabalhadora a marginalização de um partido socialista que abriga marxistas revolucionários em seu interior? Os cem anos do comunismo no Brasil (sem os fetiches embutidos) nos mostra que custa caro. Portanto, a Federação deve ser caracterizada, sob os holofotes de uma política independente (sem fetiches e sem dourar a pílula), como uma tática legítima para que um partido, como o PSOL, não passe a ser uma organização “semi-clandestina” no século XXI. Todavia, isto pode ocorrer? Sim. Basta uma mínima radiografia profissional dos prognósticos eleitorais nos estados para a conclusão de que a tarefa imposta ao PSOL é hercúlea. Lembrando, o PSOL já larga no pleito de 2022 com menos dois deputados federais na disputa e com um conjunto de possíveis puxadores de votos migrando para outros partidos da órbita lulista. De tal forma, a Federação acaba sendo uma ferramenta auxiliar para a superação desse desafio. Tendo, evidentemente, os fundamentos centrais de seu programa preservados nessa dura travessia.
Outro ponto em questão é com que partidos fazer a Federação, nesse quadrante o PSOL debateu com dois objetivamente: o PCdoB e a Rede. O PCdoB resolveu seguir seus passos com o PT (o que era previsível dentro da dinâmica interna dessa legenda). Já as conversas entre PSOL e Rede se desenvolveram para a aprovação da Federação em suas instâncias nacionais. Porém, algumas correntes criticam esse movimento, alegando que a Rede é um “partido burguês e de política auxiliar à direita”. Ora, o PSOL está caminhando a passos largos, de modo quase que acrítico, para apoiar a chapa Lula-Alckmin sem nenhuma contrapartida digna de nota de um programa minimamente reformista. Tal movimento se expressa de modo piorado nos Estados, já que o campo “PSOL de Todas as Lutas” defende a composição com Haddad em São Paulo e Marcelo Freixo no Rio de Janeiro. Entretanto, isso não é tudo, uma vez que Lula está articulando acordos com setores capitalistas, com parte do “centrão” em Estados e com o PSB, partido claramente liberal que não só abrigou Alckmin, mas que agrega parlamentares e lideranças regionais que apoiaram o impeachment da Dilma.
Acontece que as posições das lideranças da Rede nacionalmente são distintas das descritas acima, como é público e notório, a Rede tem como eixo partidário o senador Randolfe Rodrigues, Heloisa Helena e Marina Silva. Até pouco tempo agregava o senador LGBTQIA+, Fabiano Contarato e filiou recentemente o ex-pedetista Túlio Gadelha. Figuras públicas nacionais que enfrentam Bolsonaro. E que estarão com todo o PSOL votando para derrotar o bolsonarismo nas urnas, seja no primeiro ou no segundo turno. Embora, objetivamente, a Rede seja um partido eleitoral pequeno-burguês em sua composição, sem centralismo e programaticamente “difuso”. Contudo, não dá para transformar esse conteúdo no “rótulo de uma organização partidária da burguesia”. Em que pese as diferenças políticas – o apoio equivocado de Marina a Aécio Neves no segundo turno de 2014 é o ponto mais grave, porém Marina estava filiada no PSB (que hoje está com Lula e Freixo) – , o concreto é que setores orgânicos da burguesia preferem ter Lula como gerente de seus negócios. Paralelamente, é relevante registrar que Randolfe e Heloísa Helena não são o mesmo que Marina (que hoje tem menos peso eleitoral e interno na Rede), ambos são oriundos do PT e tiveram, cada qual com seu peso, passagem pelo PSOL. Logo, esses dirigentes e figuras públicas nacionais da Rede tampouco possuem apreço e relação com setores da classe dominante e, ao mesmo tempo, não tiveram posições de unidade de ação com a direita liberal.
De tal maneira, a Rede é num certo sentido um reflexo de suas lideranças, Randolfe, inclusive, é uma figura amistosa e de confiança do campo majoritário do PSOL, vide sua influência no Amapá, e está como um dos coordenadores da campanha do Lula. Heloísa Helena, por sua vez, preserva posição crítica à esquerda à candidatura de Lula e mantém laços de amizade políticas com o MES. Assim, por que o PSOL no estágio que se encontra internamente seria contra, por maioria, a uma Federação que ajuda ultrapassar a cláusula de barreira e, igualmente, converge, por vias diferentes, relações políticas de uma parte robusta do partido? Por outro lado, os setores da oposição de esquerda, não propõem uma saída crível para a situação concreta da cláusula de barreira e da hipótese de marginalização do PSOL. Pelo contrário, com exceção da defesa correta da pré-candidatura própria, estão engrossando os aplausos na “plateia” do PCB (que preserva em seu interior tendências neostalinistas) e do PSTU-MRT / “Polo Socialista e Revolucionário” (que julgam o PSOL como um partido da ordem).
Quer dizer, o MES que obteve 21% do congresso do partido, possui trabalho consolidado nos Estados, dirige diretórios e possui parlamentares vinculados a luta de classe, não pode ter uma posição meramente propagandista diante da cláusula de barreira, tendo em conta a atual maioria do partido (que inclui a corrente Resistência e a Insurgência que se abstiveram no tema da Federação) que contém posição de composição com Lula, Haddad e Freixo no primeiro turno. Portanto, quem não está com Lula (Haddad e Freixo…) no primeiro turno e quem não vê opção por fora do PSOL neste momento, só poderia caminhar pela resolução que ajuda o PSOL passar pela cláusula de barreira sem perder sua identidade no mérito da Federação, já que o PSOL contém mais lastro social, político e eleitoral que a Rede.
Além disso, outro ponto deve ser levado em conta (pelo menos pelos setores da esquerda do partido), a luta no parlamento não será nada desprezível em 2023, assim como não foi em 2003. Por isso, entender que a esquerda do partido pode e deve disputar os rumos de uma bancada federal que parte já se declara “pro-Lula” é fundamental. E nesse terreno está nítido que Heloísa Helena será uma aliada chave na composição de uma bancada independente, anticapitalista e de combate ao próximo governo que se desenha, que será burguês e, portanto, de choque com o projeto original do PSOL e dos interesses históricos da classe trabalhadora.
Assim sendo, a votação por maioria na executiva do PSOL, foi totalmente correta na baliza de uma tática defensiva para que o partido não caia na marginalidade política e se enfraqueça ainda mais frente a atração do lulopetismo (vista com bons olhos pelos liquidacionistas), que suga sem piedade os setores mais vacilantes e eleitoralistas do PSOL. Contudo, a posição meramente propagandista nesse caso é inócua porque ignora e/ou é indiferente para a hipótese de um partido socialista (com reformistas e revolucionários em seu interior) como o PSOL ficar sem fundo partidário, sem tempo de TV e rádio. Logicamente que esse tipo de problema para um reformista eleitoralista pode ser resolvido facilmente, basta ir para uma legenda do senso comum com fundo, TV e rádio (como muitos se desfiliaram do PSOL por projetos eleitorais). Entretanto, o genuíno programa anticapitalista e a disputa ideológica de setores conscientes da classe trabalhadora e da juventude indignada, perderá força com a marginalização do PSOL. Portanto, em que pese a luta interna em curso, a preservação do PSOL com todo seu potencial e estrutura não pode ser colocada em xeque nesse momento. Pelo contrário, o PSOL é o maior partido socialista (sob disputa) com influência de marxistas e trotskistas no Brasil. Esse fator por si só já justificaria a tática adotada que responde a dois objetivos concretos: a luta contra a marginalização, que, consequentemente, auxilia no bloqueio à pressão cooptativa do lulismo que suga substancialmente nosso partido para o oposto de seu projeto original. Quer dizer, é legítimo votar em Lula para derrotar Bolsonaro. Porém, a adesão ao projeto lulista significa como consequência lógica, a liquidação de um projeto anticapitalista para o Brasil. Por isso, a disputa por um PSOL independente das direções traidoras, dos patrões e dos governos de conciliação de classes segue sendo vigente.