Pelo direito de decidir
Nas últimas semanas, vimos o debate sobre a autonomia do corpo das mulheres esquentar novamente no Brasil, girando, principalmente, em torno de três eventos.
Nas últimas semanas, vimos o debate sobre a autonomia do corpo das mulheres esquentar novamente no Brasil, girando, principalmente, em torno de três eventos.
No dia 20 de junho, o Intercept Brasil revelou, através de uma reportagem, o caso de uma menina de 11 anos que teve seu direito ao aborto legal negado de forma extremamente violenta pela juíza Joana Ribeiro Zimmer e pela promotora Mirela Dutra Alberton, em Santa Catarina.
O vídeo da entrevista mostra como a juíza forçou a menina a manter uma gravidez de alto risco para sua vida. Depois disso, a promotora enviou a criança para um abrigo, onde ficou afastada de sua família e impossibilitada de acessar o hospital que poderia garantir seu direito ao aborto legal.
O caso repercutiu com muita força nas redes, em parte por conta do impacto do vídeo divulgado pelo Intercept, e em parte porque ecoava os inúmeros ataques que as mulheres vêm sofrendo no governo Bolsonaro. Inclusive, a semelhança com um caso anterior, no qual a ex-Ministra Damares Alves tentou impedir, por meio da mobilização de grupos ultraconservadores, o aborto legal de uma menina da mesma idade no Espírito Santo.
Apesar do grande debate evocado nas redes sociais, no qual o Juntas conseguiu se posicionar muito bem com um abaixo-assinado com mais de 300 mil assinaturas pedindo o afastamento da juíza – ela infelizmente só foi afastada do caso mediante uma promoção – o movimento feminista teve muita dificuldade de levar a mobilização às ruas com atos muito pequenos nas diversas cidades onde foram convocados.
Para piorar a semana das mulheres, uma reportagem criminosa da Metrópoles expôs publicamente o caso de Klara Castanho. A atriz colocou um bebê para adoção após ter sido estuprada, mas os profissionais de saúde que deveriam tê-la acolhido venderam sua história para colunistas de fofoca. A youtuber Antônia Fontenelle, pré-candidata pelo Republicanos de Crivella e apoiadora de Jair Bolsonaro, publicou vídeo comparando a adoção a uma “desova”, qualificando o ato como um crime, abandono de incapaz. Seus apoiadores e outros foram atrás de Klara a condenando em uma nova violência. Em função disso, Klara revelou, em uma carta em seu Instagram, toda a violência que sofreu, gerando uma onda de solidariedade entre muitas mulheres.
E para finalizar a semana, no dia 24 de junho, graças à maioria obtida durante o governo Trump, a Corte Suprema dos Estados Unidos derrubou a decisão conhecida como “Roe vs Wade”, de 1973, que garante o aborto legal nacionalmente. A mudança deve levar à proibição do aborto em pelo menos 13 estados do país e, inclusive, impor medidas de restrição do deslocamento de mulheres com averiguação de gravidez.
Apesar de não ter influência direta no Brasil, onde o aborto é legal apenas em casos de risco de vida, estupro e feto anencéfalo, a decisão reafirma a importância que o controle do corpo das mulheres tem para grupos conservadores e reacionários e respinga medo em todas nós. Há bastante tempo, o aborto tem sido utilizado por grupos de poder capitalistas para mobilizar afetos em populações conservadoras com o velho discurso de direito a vida.
A deputada Alexandra Ocasio Cortez demonstrou as contradições desse discurso, em consonância com as mobilizações de rua, que apesar de menores do que se poderia esperar, têm ocorrido nos Estados Unidos. Esses são os mesmos grupos que atacam os sistemas públicos de saúde, que atacam a vida das populações racializadas e, no caso do Brasil, os mesmo que foram contra a vacinação da população. O que está em jogo para esses grupos não é o direito à possibilidade de vida de fetos, mas o controle do corpo das mulheres.
A partir de 2011, o movimento feminista encontrou um grande folego de mobilizações, no que chamamos de quarta onda. Esse movimento reivindicou não apenas um conjunto de direitos, mas uma mudança completa da maneira como organizamos nossas vidas. O movimento feminista reivindicou uma revolução cultural e econômica, que nossos corpos fossem nossos, que o mundo que dividíssemos pudesse ser debatido e compartilhado de maneira democrática e justa.
Ainda que não se possa dizer que o feminismo de quarta onda seja socialista, e sabemos que ele é muito disputado pelo feminismo liberal, as vozes das ruas eram anticapitalistas em seu desejo de transformar tudo. E é esse desejo de transformar tudo que é combatido quando Antônia Fontenelle, Trump e o judiciário dizem que nós não podemos ter direito aos nossos corpos – porque eles sabem do que nossos corpos são capazes.
Os grupos conservadores e capitalistas vêm se organizando para acabar com as lutas das mulheres. Infelizmente, a esquerda brasileira não soube potencializar o desejo feminista, ela o encerrou em uma disputa eleitoral entre dois homens brancos, um pai dos pobres e um fascista – o que, sem dúvida, é muito diferente em certos sentidos, mas muito parecido em outros. Essa disputa encerra a conversa sobre a possibilidade de democracia real e autonomia de corpos e territórios, pelo menos por ora. Enquanto esperamos que a panela ferva e novamente comece a borbulhar o ímpeto de estarmos juntas, nas ruas, reivindicando que seja tudo diferente, precisamos consolidar nossas bases e possibilitar o surgimento de uma nova direção para o movimento feminista no Brasil para que quando a hora for certa, nós não cometamos os mesmos erros.